Capítulo 23
CAPÍTULO 23
Apesar de o sol não ter nascido, já havia claridade suficiente para andar sem tocha ou lamparina. Cedo assim, Kyle, o segundo de sua família a ter o título de cavaleiro Blackwing, estava nos estábulos da cavalaria, onde também ficavam alguns dos cavalos da nobreza, próximo ao castelo do Duque. Havia chegado bem cedo para tratar de seu cavalo, serviço que poderia ser feito por um pagem, não fosse a questão que ele fazia de cuidar pessoalmente de sua montaria. Era animal maduro, talvez até já tivesse passado de seu auge, mas ainda assim, um belo e bom cavalo, para o qual Kyle preparava o alimento, enquanto pensava. O cheiro dos estábulos o agradava e andar por entre as baias o deixava bastante à vontade. Em pouco tempo, havia terminado a mistura que daria a seu cavalo e o deixaria comendo, para ver como estava o dia fora dos estábulos. Ao aproximar-se do portão, deparou-se com uma figura, montada em um grande cavalo, que não pôde identificar. O homem e sua montaria aproximavam-se do portão lentamente. Kyle somente via sua silhueta contra a gradação de tons avermelhados do alvorecer.
– Kyle Blackwing? É você, rapaz? – disse o homem.
– Sim... – respondeu, num tom desconfiado. Ao perceber que se tratava do Duque, porém, se retratou: – Digo, sim, sou eu, senhor, a seu serviço! – e se ajoelhou.
– Levante-se, rapaz! Deixemos isso para oportunidades mais formais. – disse o Duque, pois não gostava dessas manifestações.
– Sim, eh... quero dizer, sim, senhor!
– Trabalhando cedo assim, meu jovem?
– Sim, eu gosto de tratar pessoalmente da minha montaria.
– Muito bem. Venha aqui fora, vamos conversar um pouco.
Kyle apressou-se para alcançar o nobre, que o esperava. Estava vestido com calças de montaria marrons, um espesso casaco de pele cinza e botas negras até os joelhos. Ao sair dos estábulos, um vento muito frio cortou o rosto de Kyle, como uma navalha. Ele observou a colina e o caminho que levava ao castelo, cobertos por uma fina camada de neve.
– Kyle?
– Senhor?
– Você sabe o que significa ir para uma guerra?
– Sim, senhor, é ter de lutar para defender nosso reino e de nosso povo da ameaça dos bestiais, em favor de nosso querido Rei!
– Isso é o que se deve falar em público, o que representa o que há de correto, mas não é isso que estou perguntando. – disse o Duque, alisando seu farto bigode com as mãos, um gesto que lhe era característico.
– Não? Então o que é, senhor?
– Você nem imagina, não é?
– O quê? – Kyle começou a coçar a cabeça, como costumava fazer quando ficava confuso.
– Que estar numa guerra significa lutar continuamente pela sobrevivência. No seu caso, é ainda mais que isso, já que tem a responsabilidade da vida de vários soldados em suas mãos! Você já parou para pensar nisso, meu jovem? – disse, com os olhos fixados no vazio, como se imaginasse algo.
– Acho que sim... digo, sim, mas...
Foi interrompido pelo Duque:
– Você faz bem em cuidar da sua montaria, pois, numa guerra, jovem Blackwing, sua vida e a de sua montaria são como uma. Além disso, terá de cuidar muito bem de seus soldados, compreende?
– Acho que sim.
– Muito bem. Vamos andando, há algo que eu gostaria de lhe mostrar. Vamos até os estábulos.
Caminharam colina acima em silêncio. Ambos pareciam refletir, certamente sobre coisas diferentes. Chegaram até um cercado de madeira circular e amplo, dentro do qual havia terra batida e lama congelada em pequenas poças. O Duque desmontou e apoiou o pé direito nas madeiras do cercado; pediu a um rapaz que estava próximo aos estábulos que trouxesse o que haviam combinado. O garoto, que vestia um grosso casaco de pele de animais, partiu prontamente.
– Senhor, posso fazer uma pergunta?
– Claro.
– Lá embaixo, quando falou da guerra, o senhor usou um tom estranho, como se... foi como Gorum costuma falar da guerra. Por quê?
O Duque abriu um pequeno sorriso e seus olhos se cerraram levemente, parecendo haverem-se fechado, pois eram muito pequenos.
– Acredita que eu nunca estive numa guerra, não é mesmo?
– Todos sabem que o senhor...
O Duque soltou uma larga gargalhada. Sem entender bem, Kyle começou a rir também. Logo o Duque parou e olhou seriamente nos olhos do jovem cavaleiro.
– Sabe, Kyle, na verdade, eu lutei na guerra dos bestiais há vinte anos...
Como se não houvesse entendido ainda o que acabara de ouvir, Kyle replicou:
– O senhor lutou na guerra?
O Duque apenas acenou com a cabeça. Kyle, nesse momento, vendo a verdade nos olhos do Duque, surpreendeu-se.
– Mas como, senhor? Quero dizer...
O galope de um cavalo o interrompeu. O rapaz havia aberto uma das portas que saía dos estábulos diretamente para o cercado onde estavam apoiados o Duque e o jovem. Era um lindo animal de pelagem avermelhada, com uma mancha branca na testa e pequenas listras também brancas e horizontais no pescoço. O cavalo galopava vigorosamente, levantando lama e terra em seu caminho.
– Este é um dos meus cavalos, bastante jovem ainda, tem pouco mais de dois anos. É o resultado de uma cuidadosa seleção de linhagem dos mais fortes cavalos de toda a região.
– Ele é lindo, senhor! – estava realmente encantado.
– É um presente.
– Para quem, senhor?
– Você se parece mesmo muito com seu pai, mas precisa captar as coisas mais depressa. – ele sorriu e finalizou: – É para você, meu jovem!
Kyle ficou tão surpreso, que perdeu a ação. Mirou o cavalo com grandes olhos e, em seguida, o Duque.
– Mas...
– Sem mas, rapaz!
– Obrigado, senhor, não sei o que dizer...
– Muito bem. – disse o duque e montou em seu cavalo. – Então não diga nada! – virou o cavalo e preparou-se para partir.
– Por favor, espere, senhor! – pediu Kyle.
O Duque diminuiu o passo, e Kyle continuou:
– E quanto àquela conversa sobre a guerra?
– Fica para outra ocasião... – deu com as esporas no cavalo, disparando em direção ao castelo.
Kyle ficou observando o Duque e sua montaria se afastarem cada vez mais, até que foi interrompido por um cutucão em seu braço. Quando se virou, viu o rapaz que havia trazido o cavalo.
– O senhor é o cavaleiro Blackwing, não é?
– Sim, sou eu, garoto.
– Gostaria de que eu preparasse o cavalo para o senhor?
– Por favor.
– Senhor?
– Sim.
– Eu gostaria de me tornar um cavaleiro como você.
– Você não sabe o que está falando, garoto. Fique com os cavalos, que é melhor. – disse, sem dar muita atenção.
– Senhor, será que eu poderia ficar cuidando do seu cavalo?
– O que quer dizer com isso, garoto?
– O senhor sabe, acompanhá-lo na guerra, cuidar do seu cavalo e de suas coisas, ser seu escudeiro...
– Qual é seu nome?
– Meu nome é Pallico, mas pode me chamar de Palix, é como me chamam.
Kyle olhou-o, avaliando sua força. Não passava se um rapazote. Pele branca, olhos curiosos e cabelos negros, lisos, num corte de cuia.
– Palix, você ainda é muito novo para ir à guerra; além disso, não tem treinamento militar básico.
– Isso quer dizer que não tenho chance?
– Por enquanto, não, mas, dependendo do andamento da guerra...
– O quê? O quê?
– Se a guerra não acabar logo, você terá chance. Precisarão de reforços e haverá lugares onde serão recrutados jovens ansiosos para defender o Reino, como você, que receberão treinamento.
O rapaz ficou em silêncio e depois disse:
– Isso seria ótimo!
– Ótimo!? Sabe o que isso significaria? – disse, severamente.
O garoto balançou a cabeça negativamente.
– Significaria, Palix, que muitos desses jovens estariam prestes a se encontrar com a morte, é o que isso significaria! – disse, aos gritos.
– Desculpe, senhor... desculpe incomodá-lo... – o garoto foi saindo, cabisbaixo.
Kyle olhou para o céu e viu os primeiros raios de sol daquele dia, o dia do início da guerra para ele e seus homens. "Será que exagerei com aquele pobre pagem?" – pensava, enquanto descia a colina para buscar suas coisas nos estábulos da cavalaria. "Talvez... mas agora ele vai pensar duas vezes antes de se meter em confusão..."
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