Capítulo 22

Uma semana havia se passado. Os cidadãos de Kamanesh e arredores estavam muito agitados. Muitas tropas foram formadas e esperavam a comitiva que estava na capital, discutindo a guerra. As notícias vindas do Condado de MontGrey não eram nada animadoras. Havia bestiais por toda a parte, e sua principal cidade, Grey, encontrava-se sob cerco.

Ao contrário do calor da agitação da cidade, o tempo era cada vez mais frio, culminando na primeira neve daquele inverno. Mesmo com as ruas e telhados cobertos de flocos brancos, as pessoas se negavam a permanecer em casa. A neve era um fator extra de preocupação para o reino, pois, se houvesse uma organização por detrás dos exércitos dos bestiais, seria possível concluir que a ocasião para o ataque fora cuidadosamente escolhida.

Nos corredores externos da Santa Catedral de Kamanesh, Archibald era acompanhado por Kiorina em uma pequena caminhada. Há apenas dois dias recomeçara a andar. Caminhava com dificuldade, devido às fortes dores que sentia. O ferimento havia cicatrizado, mas ainda doía. Não vestia os trajes tradicionais, mas uma calça confortável e uma espécie de manta por cima das faixas de pano que envolviam seu peito. Para os pés, sandálias de couro com sola de madeira, que faziam com que seus passos fossem bem delineados e audíveis. Andavam vagarosamente lado a lado, passando por baixo das largas colunas que se erguiam muito além de suas cabeças. Uma fria brisa invadia o corredor, trazendo pequenos flocos de neve que entravam através dos portais.

– Nossa, que frio! – disse Kiorina, esfregando as mãos nos braços. – Você não está com frio?

Archibald olhou calmamente ao redor e acabou fixando o olhar nas pinturas do teto, que mostravam batalhas colossais entre deuses e demônios, com cores muito fortes e variadas e, ao redor das cenas, que ficavam em áreas retangulares, uma decoração profusa, com motivos geométricos. Respirava pela boca, expelindo, por causa do frio, muita fumaça. Kiorina o observava, pacientemente.

– Não, não sinto frio... – respondeu finalmente e voltou a andar; comentou, com indiferença: – Desde que recobrei minha consciência, venho-me sentindo estranho... na verdade, não tenho tido muitas sensações...

Kiorina adiantou-se um pouco e, colocando-se na frente do monge, disse:

– Ei, não fique assim, anime-se um pouco!

Archibald mirou os claros e perfeitos olhos verdes de Kiorina. Observou a expressão de menina em seu rosto e o belo sorriso, que tentava animá-lo. O jovem monge, no entanto, não mudou muito sua expressão. Disse, pressionando os olhos:

– Animar-me? Com uma guerra acontecendo, como poderia?

Ela olhou para baixo por um instante, quase vencida. Voltou a encará-lo e disse:

– Mais um motivo para se animar! Você acha que teremos chance numa guerra se estivermos todos de moral baixa?

Archibald balançou a cabeça negativamente e disse:

– Então deveria me animar, diante das mortes que estão por vir? Já posso ver soldados perdendo a vida nas frentes de batalhas, enquanto suas mulheres e filhos ficarão lutando para sobreviver sem eles. Poderá haver uma crise interna, por falta de recursos, levando à morte muitos camponeses, que não suportarão o inverno rigoroso nessas condições!

Kiorina finalmente olhou para fora, através de um portal. Respirou o ar gelado que ali penetrava. Sentia-se enfraquecida.

– Não se preocupe comigo. – disse o monge, colocando as mãos nos ombros da ruiva. – Não me desanimo por completo. Tenho tarefas a realizar, tarefas divinas, necessárias em tempos de dificuldade.

Ela segurou seu braço com força e disse:

– Você tem certeza de que vai ficar bem?

Ele confirmou com a cabeça e perguntou:

– Alguma coisa errada? Do jeito que você falou...

– Na verdade, não sei bem porque me escolheram, mas terei de partir numa nova viagem.

– Viagem? Para onde?

– Mestre Heirich pediu-me para não contar a ninguém, mas... – ela fez uma pausa. Andaram em direção ao portal e pisaram numa fina camada de neve que entrava nos corredores. Olhando para o jardim coberto de neve, prosseguiu: – Partirei para Xilos...

– Xilos? Seu mestre está louco? Isso fica no condado de MontGrey, próximo do Pântano Cinzento, de onde vêm os bestiais!

– Ele me advertiu quanto ao perigo, mas disse ser pouco provável uma invasão da cidade nos próximos dias, já que estão se concentrando no cerco a Grey.

– Qual é o motivo de uma viagem perigosa como essa agora e por que você?

– Como eu já lhe disse, não tenho certeza, mas parece que nasceu nessa cidade, há poucos dias, um bebê que sofre do mesmo mal que Armand, o filho de Jeero.

– Outro com olhos completamente negros?

– Hum, hum.

– Você vai sozinha?

– Não, iremos Noran, de Tisamir, Mishtra e eu.

– Mishtra? A silfa que fomos procurar? Como isso aconteceu?

– Mestre Heirich pediu para falar com o estrangeiro e, após a conversa deles, o próprio Noran veio dar-me as notícias.

– E Kyle?

– Parece que ele só está esperando ordem para levar seus homens à guerra.

– Seus homens? – disse Archibald, muito surpreso.

– É... você não sabia? Ele recebeu o comando de um pelotão.

– Quantos homens ele comanda?

– Acho que uns cinqüenta, não sei bem, mas é apenas um dos pelotões da segunda companhia, que é comandada por um cavaleiro de primeira ordem, algo assim...

Archibald ficou pensativo por alguns instantes. Não sentia o frio; na verdade, ao mesmo tempo em que conversava com Kiorina, lutava contra sua sensibilidade térmica e a controlava. Começou a pensar na silfa, que estava em Kamanesh. Imaginava como havia chegado ali. Imagens começaram a vir à tona. Via diante de si um belo rosto feminino. Seria a dona daquele rosto que encontrara duas vezes na floresta de Shind? Teria sido ela quem o salvara do primeiro ataque dos bestiais no início de sua jornada e quem reencontrara depois, antes do alvorecer, quando voltava de Tisamir? As imagens se misturavam; havia nelas muito sangue, gotas de sangue no rosto da silfa. Apesar de ter pensado nisso por não mais que um instante, Kiorina percebeu que seu amigo estava distante e perguntou:

– Archie? Você está me ouvindo?

Não houve resposta. Ela insistiu, dessa vez tocando em seu braço:

– Archie!?

– O quê? Ah, sim... deve ser difícil ter sob sua responsabilidade a vida de muitos, numa ocasião de guerra... – respirou fundo e disse: – Bem, minha cara, nosso tempo é curto, o irmão Weiss me espera. Tenho tarefas a realizar.

– Puxa, o irmão Weiss não lhe dá folga!

– É apenas o jeito dele, trabalho sempre, sempre trabalho...

– Posso acreditar que você vai ficar bem?

– Fique tranqüila... – puxou-a pelos ombros, olhou em seus olhos e disse, num tom bastante sóbrio: – Prometa-me que tomará muito cuidado em sua viagem.

Ela não respondeu com palavras, mas seu olhar disse que sim. Abraçou o amigo, cuidando para não machucá-lo, e se despediu. Saiu da Catedral e olhou a rua quase vazia. Um vento frio soprava, trazendo pequenos flocos de neve, que, progressivamente, cobriram seu grosso casaco de pele de urso, feito especialmente para ela, na tecelagem de seu pai. Em pouco tempo, havia chegado à oficina de Gorum. Bateu na porta e gritou:

– Gorum! Abra a porta! Está frio aqui fora!

Silêncio. Kiorina dava pulinhos e esfregava os braços com as mãos, vestidas com luvas de veludo vermelhas.

– Ei, é sério! – e tornou a bater.

Finalmente escutou o barulho do trinco e das cordas do mecanismo que abria a porta. Entrou rapidamente, fugindo do frio. Ao fechar a porta atrás de si, sentiu o calor vindo da forno da forja. Procurou Gorum com os olhos, mas viu Mishtra, que foi quem lhe abriu a porta.

– Onde está Gorum? – perguntou, enquanto tirava o casaco de pele.

A silfa fez um sinal de negação com a cabeça.

– Ele saiu, então?

Ela confirmou com um aceno.

– E Noran?

Nova negação.

– Saíram juntos?

A silfa confirmou novamente e foi até o forno, onde havia uma panela com água fervente. Derramou seu conteúdo em uma chaleira e misturou bem com uma colher de pau. "Uma maneira estranha de se preparar chá..." – pensava Kiorina. Mishtra trouxe-lhe uma xícara cheia de um cheiroso chá, da qual uma grande quantidade de vapor emanava.

– Obrigada.

Enquanto tentava beber o chá com dificuldade, devido à sua alta temperatura, observava as ações da silfa. Seus movimentos, mesmo os mais simples, eram muito elegantes. Seria para impressioná-la? Não. Ela agiria da mesma forma, ainda que estivesse só. Não parecia muito à vontade, no entanto, com as coisas da casa. Por exemplo, não costumava sentar-se nos bancos ou cadeiras; pegava um pano, estendia-o cuidadosamente no chão e sentava-se sobre ele, ora com as penas cruzadas, ora de lado, com os joelhos juntos. Estava agora com as pernas cruzadas, segurando uma caneca de madeira com chá, a qual balançava e soprava, fazendo o vapor se espalhar. Finalmente, começou a beber, enquanto olhava a ruiva, suas mãos, seus cabelos e olhos. Kiorina tentava imaginar o que Mishtra estaria pensando naquele momento. Elas se estudavam, enquanto bebiam chá. Kiorina estava incomodada com observação insistente da silfa. Virava a cabeça de um lado para outro, mas também parecia um animal curioso. Para ela, a silfa era um mistério, não havia como imaginar o que se passava em sua cabeça. Para quebrar o gelo, disse:

– Parece que Gorum e Noran se deram muito bem, não é?

Mishtra fez que sim e se levantou para pegar mais chá. Ofereceu a Kiorina, que aceitou, agradecida. Serviu-se também e voltou a sentar-se. O olhar triste da silfa contagiou Kiorina, que começou a entender o que estava acontecendo.

– Você sente falta de sua casa?

Mishtra olhou para baixo e acenou levemente a cabeça.

Aquilo fez Kiorina pensar que também sentia falta de sua família e gostaria de ir para casa. Decidiu, porém, ficar. Não se sentiria bem deixando Mishtra sozinha. Resolveu ficar e fazer-lhe companhia.

– Você gostaria de escutar uma história?

Mishtra olhou para Kiorina com um interesse especial e fez que sim.

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