Capítulo 21

CAPÍTULO 21

Naquela noite, fazia muito frio. Era um sinal de que o inverno daquele ano seria rigoroso. Kyle estava nos arredores da cidade em uma patrulha, enquanto Gorum estava em casa com os estrangeiros, Noran e Mishtra.

A silfa havia-se recolhido, pois não se sentia muito bem. Estavam no andar de baixo Gorum e Noran. Na noite anterior, conversaram bastante, mas tiveram que parar, pois Gorum havia sido chamado pelo Duque, a quem acompanhou durante todo o dia. Agora, teria folga até o dia seguinte.

Gorum segurava um espeto de ferro e remexia as toras de madeira da lareira, tentando colocá-las sobre o fogo, a fim de aumentar o calor. Noran enchia sua caneca com vinho e observava o gigante, ajoelhado, mexendo e remexendo na lareira.

– Já não é o suficiente, meu bom Gorum? – perguntou o estrangeiro.

– Quê? – virou-se parcialmente para Noran.

– Eu perguntei se já não estava bom.

– Ah, sim... – Gorum se levantou e se dirigiu à mesa.

Noran bebia vinho, sem olhar para Gorum. O cavaleiro sentou-se e perguntou:

– E a mocinha? Ela não é muito de falar, é?

– Na verdade, não; ela é muda... – disse Noran, com pesar.

– Eu sei, só estava fazendo uma piadinha... – disse Gorum, sorrindo.

Noran não gostou muito do tipo de humor, mas acabou rindo também, talvez por causa do jeito de Gorum.

– Sabe... às vezes é difícil manter o bom humor.

– É verdade, mas eu sempre procuro fazer com que as pessoas fiquem mais alegres...

– Eu notei... Ontem você não parou de contar casos, um atrás do outro, todos muito divertidos.

– A vida não é uma comédia?

– Às vezes, sinceramente acho que sim.

– Eu admiro pessoas com bom humor, como o senhor.

– Por favor, eu não sou nenhum nobre para ser chamado de senhor. Chame-me de Gorum.

– Certamente, "senhor". – disse Noran, num tom irônico.

– Ha, ha! Pensei que o homem de bom humor era eu!

– E é, o senhor tem toda a razão!

– Hahaha! Puxa, estou rindo muito alto, assim vou acordar a mocinha...

– Isso não teve graça.

– Ei, você sabe que é só uma brincadeira, não sabe?

– Sim, mas o fato é que ela é muda, mas não é surda!

– Então, vamos mudar de assunto! – disse Gorum, meio desconcertado.

– Concordo!

E conversaram noite adentro. Por causa do frio, tiveram que colocar mais lenha na lareira muitas vezes e abriram várias garrafas de vinho também. Conversaram muito. Gorum falou sobre a época da guerra e sobre o pai de Kyle, Armand Blackwing. Contou como foram as lutas e disse o quanto temia essa nova guerra. Recordou-se de como era bom quando Kyle ainda era um garoto e enchia sua oficina com seus amigos barulhentos. Noran, por sua vez, falou de seu mestre Kivion, que havia morrido recentemente, e de Tisamir, sua cidade natal. O tempo passava rápido, assim como o vinho descia por suas gargantas. Num certo momento, já de madrugada, ficaram ambos sem assunto. Nesse instante, Noran teve uma idéia: entrar na mente de Gorum para tentar entender como ele era capaz de dizer tanta bobagem. Talvez por causa da embriaguez, Noran foi longe demais. Quando percebeu, já havia entrado na mente do cavaleiro, que, por estar embriagado, não ofereceu resistência. Noran tomou um tremendo susto e derramou a bebida que segurava. Ainda que por um breve instante, pôde ver o terrível passado de Gorum. Viu como perdera sua esposa, Rayssa, e sua filha, Wanda, diante de seus olhos. Viu como seu amigo Armand morrera nas mãos de seu próprio irmão, Tarne, a quem, dolorosamente, matou instantes depois. Viu, por fim, como ele se sentia culpado e impotente com relação àquilo tudo.

Saltou da cadeira e sentiu-se muito mal por ter violado as memórias do cavaleiro. Sentia-se tão mal, que teve náusea. O choque fez com que ele ficasse praticamente sóbrio novamente. Correu em direção à porteira, onde havia feno sobre o chão, e vomitou.

Gorum, vendo aquilo, começou a caçoar dele, sem perceber o que estava realmente acontecendo.

– Hahaha! Vejam só! O letrado homem de Tisamir não agüenta tomar algumas doses de vinho! Hahaha!

Quando Noran se sentiu melhor, dirigiu-se de volta à mesa, com uma expressão bastante séria. Sentou-se, encarou Gorum nos olhos e disse:

– Preciso pedir desculpas a você.

– Puxa vida! Não precisa, isso não foi nada! Acontece com todo mundo!

– Eu não estou falando sobre ter vomitado na sua oficina.

– Então sobre o que é?

– Entenda, Gorum, o que vou lhe contar não é o tipo de coisa que falo todos os dias para qualquer um.

– É mesmo? Manda! – disse Gorum, ainda em tom de brincadeira.

– Em Tisamir, minha cidade natal, não estudei apenas História e Letras. Estudei algo muito mais profundo: as artes mentais.

– Artes mentais? Isso é algum tipo de pintura? – disse, enquanto puxava sua grande barba negra.

– Não, são maneiras de usar a mente. Algo que poderia ser visto por alguns como magia.

– M-m-agia?

– Não é magia. É a capacidade de realizar feitos com a força do pensamento, mas pode ser interpretada como magia.

– Hahaha! Você quer que eu acredite nisso? Que se você pensar, por exemplo, em fogo, uma chama seria criada?

– Não exatamente, apesar de isso ser possível na teoria. Na verdade, quero dizer que, com a mente, podemos, por exemplo, ver os pensamentos de outro ser vivo.

– Hahaha! Nossa, Noran! Como você consegue contar uma anedota dessas e ficar com a expressão tão séria? Você é realmente um profissional!

– Por favor, não diga coisas assim, em memória de sua esposa Rayssa e sua filha Wanda.

Quando Gorum escutou aquilo, parou de rir no mesmo instante.

– Como você sabe o nome delas? Quer dizer que você pode mesmo ler mentes? E o que isso tem a ver com você pedir-me desculpas? – perguntou, confuso e surpreso.

– Certo, eu preciso pedir perdão porque, num descontrole meu, entrei na sua mente e vi suas memórias...

– E o que você viu?

– Vi as memórias que estavam na superfície de sua mente e que se repetem constantemente. Vi como você perdeu sua esposa Rayssa e sua filha Wanda para os bestiais, vi seu amigo Armand, morto por seu irmão, Tarne, e vi que você teve que matá-lo para impedir a morte do Duque.

Ao escutar aquilo, Gorum não disse nada; apenas olhou suas mãos sobre a mesa e balançou a cabeça negativamente.

– Eu entendo, não há perdão para tal coisa. Portanto, vou-lhe fazer uma proposta. Vou-lhe contar um triste fato do meu passado, para que, a partir desta noite, nós compartilhemos esses segredos e se crie um laço entre nós.

Gorum não olhou Noran, nem disse nada; apenas aceitou a proposta, fazendo um sinal. Bebeu mais um gole do vinho.

– Foi há muito tempo, em Tisamir. Eu era apenas um garoto e gostava muito de uma garota. Ela era realmente linda. Era filha de um rico comerciante. Seu nome era Giordana. Apesar de nos conhecermos, ela não me dava muita atenção, pois eu era apenas um garoto magro e pobre. Nessa época, começava a descobrir meus dons mentais: conseguia perceber as emoções das pessoas e, se fizesse muito esforço, ver alguns de seus pensamentos. Sempre que me encontrava com ela, não conversávamos muito, somente trivialidades. Certo dia, quando nos encontramos no bosque que fica no centro de Tisamir, tive uma idéia. Resolvi tentar colocar na cabeça dela que eu era uma pessoa boa e interessante para se conversar. Parece que funcionou, pois, depois daquele dia, passamos a nos encontrar e a conversar muito. Em pouco tempo, começamos a namorar sem seus pais saberem. Algum tempo depois, fui notado por um dos mestres do Ermirak, o conjunto de escolas de Tisamir. Seu nome era Kivion, de quem já lhe falei. Fui imediatamente admitido lá. Pouco tempo depois, eu e Giordana tomamos coragem e contamos nosso namoro a seus pais. Eles aceitaram, pois, se havia sido aceito no Ermirak e estava sob a tutela de um mestre tão importante quanto Kivion, seria um pretendente adequado para sua filha. Passaram-se duas estações; nosso namoro tornou-se noivado. Nos amávamos muito e queríamos nos casar. Foi quando comecei a notar que ela também possuía dons mentais, mas que eles estavam apenas despertando. Fiquei um pouco receoso a princípio, pois, se ela pudesse ler minha mente, poderia descobrir que eu havia implantado uma sugestão na sua. Algum tempo depois, levei-a para ver os mestres no Ermirak. Ela também foi admitida. Estudamos juntos. Meu medo de que ela descobrisse algo fez com que eu dedicasse boa parte dos meus dias procurando esconder, cada vez mais fundo na minha mente, minha violação à mente dela. Persegui isso tanto, que, um dia, acordei sem recordar que havia feito tal coisa. Essa foi a época mais feliz da minha vida, pois estudávamos juntos, e eu já não me sentia culpado por ter sugerido a ela que gostasse de mim. Tempos depois, casamo-nos. Houve uma grande festa para nós, um dos casais mais felizes de Tisamir. A comunidade ajudou-nos a construir nossa própria casa. Casados, passamos a compartilhar amor corporal, entregando nossos corpos um ao outro. Giordana teve a idéia de experimentarmos algo que talvez nunca tivesse sido experimentado antes: queria que, enquanto nos amássemos, compartilhássemos nossas mentes. Assim fizemos. Foi a experiência mais maravilhosa de minha vida. Senti-me completamente unido a ela. Meu prazer e o dela eram comuns a nós dois, a sensação de união era incrível! Chegou um instante, porém, em que ela se queixou de que não podia sentir-me inteiro, que minha mente não estava totalmente aberta para ela. Disse-lhe que não se preocupasse, que, da próxima vez, eu faria um relaxamento profundo e abriria mais minha mente. Ocorreu que, durante esse novo compartilhamento, a barreira que mantinha meu segredo se rompeu. Ela viu o que eu havia feito e sentiu-se terrivelmente traída. Eu, que estava em sua mente, senti toda a sua dor. Senti-me terrível por ter causado tanta mal a quem eu tanto amava. Esse sentimento também foi compartilhado. Sentimos juntos toda a dor e rompemos nosso contato mental. No fim, ela saiu e disse, chorando bastante, que nunca mais deveríamos nos ver. Foi a última vez que nossas mentes se uniram.

Quando terminou de contar, Noran tinha lágrimas nos olhos. Olhou para Gorum e reparou que havia lágrimas nos olhos dele também. Estava começando a esfriar, pois já não colocavam lenha na lareira há algum tempo. Nesse momento, escutaram ruídos do lado de fora da porteira, que se abriu. Era Kyle, trazendo seu cavalo. Surpreendeu-se ao ver Gorum e Noran ainda acordados. A fraca luz do novo dia entrou com ele, além de um vento muito frio. Kyle, bem perto da porteira, exclamou:

– Puxa, que cheiro horrível! Alguém vomitou aqui?

Gorum começou a rir e Noran logo o acompanhou. Gorum disse:

– Vamos, garoto, pare de reclamar e feche essa porteira de uma vez! Está frio, você sabe?

Kyle balançou a cabeça e fechou a porteira. Aproximou-se e começou a tirar de cima de si as peles que vestia.

– Como estão as coisas? – perguntou Noran.

– Escuras e frias, nada mais...

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