Capítulo 20
Havia uma multidão na Praça da Meia-Lua, como há muito não se via. Além de dois pelotões completos de soldados, com cavaleiros à frente, em formação, homens, mulheres e crianças espalhavam-se por toda a parte; pairava um insuportável clima de nervosismo. Todos esperavam a chegada do Duque, que havia convocado uma reunião com todos os cidadãos de Kamanesh. Havia rumores de uma invasão de bestiais ao Condado de MontGrey e de que eles poderiam chegar a Kamanesh a qualquer momento.
Kyle havia recebido o comando de um dos pelotões que estavam na praça. Nervoso, esperava a chegada do Duque e dos cavaleiros da primeira ordem.
O murmúrio começou a aumentar, anunciando que o Duque se aproximava. A multidão abria espaço para ele e dez de seus cavaleiros, que vinham montados e vestidos com roupas de gala. O Duque usava uma túnica negra com botões prateados e, presa aos ombros, uma longa capa vermelha. Os cavaleiros vinham vestidos com armaduras e também usavam capas vermelhas. Cada um deles carregava uma longa lança, com flâmula vermelha na ponta, e a apontava para o céu. Entre os dez cavaleiros, estava o gigante Gorum.
Atravessaram a multidão e chegaram onde havia um espaço reservado à comitiva, em frente à estátua que homenageava o fundador da cidade. O Duque desmontou, e um terrível silêncio se fez. Ele subiu os degraus da escada improvisada e ficou de pé no pedestal sobre o qual a estátua de seu ancestral se erguia.
O murmúrio voltou, pessoas tentavam perguntar sobre os bestiais, se haveria uma guerra. O Duque Dwain demorou um pouco para falar, gesticulando e pedindo silêncio. Finalmente disse:
– Cidadãos de Kamanesh, convoquei esta reunião para esclarecer algo muito importante. Resolvi vir pessoalmente, pois fiquei preocupado com os boatos, que se espalham rapidamente. Vim pôr um fim neles! – fez uma pausa e gesticulou com as duas mãos. – Eis que novamente nosso povo se vê em situação difícil. Uma invasão bestial é iminente! É novamente hora de pedirmos força e coragem a nosso querido deus Aianaron, as bênçãos de Forlon, a compaixão de Ecta e a sabedoria de Uraphenes! Neste momento, dois de nossos batalhões estão fora da cidade, montando guarda, e mensageiros foram enviados a todas as partes do Reino. Apesar de a situação parecer crítica, venho aqui, diante de todos, tranqüilizá-los. Em primeiro lugar, não é verdade que o Condado de MontGrey tenha sido tomado pelos bestiais. A capital, as cidades e vilas vizinhas estão intocadas. No entanto, eles se apoderaram das cidades e vilas da parte ocidental do Condado. Duas forças principais dos bestiais foram detectadas. Uma delas está na parte ocidental do Condado de MontGrey; a outra, na sua porção oriental, do outro lado da floresta de Shind. Pelo que nossos informantes foram capazes de descobrir, não parece haver avanço em nossa direção, mas sim a formação de um cerco a Grey, capital do Condado. Apesar de não parecer que nossa cidade e nossa terra estejam ameaçadas pelos bestiais, temos uma obrigação para com nossos irmãos do Condado, que se encontram em grandes dificuldades. Vim dizer-lhes que nossos fortes estarão recebendo jovens interessados em lutar por nosso povo; eles receberão treinamento, equipamento, comida e um soldo de oito moedas de prata por mês. – nesse momento, houve grande murmúrio, pois oito moedas não era muito dinheiro. O Duque subiu a voz: – Além do soldo, os soldados que se destacarem poderão receber uma premiação especial ao voltar da guerra: um lote de terra para fazer dela o que bem entender!
O murmúrio voltou, dessa vez muito mais forte que antes. Um lote de terra custava muito dinheiro, e somente os nobres possuíam terras, já que as herdavam. Ocasionalmente um comerciante muito rico conseguia comprar terras, e então um título menor de nobreza lhe era concedido. Depois dessas palavras, o Duque não conseguiria voltar a falar e, como se já soubesse disso, começou a descer do pedestal. Antes de terminar, porém, parou e olhou por um instante a estátua de seu ilustre ancestral, um pioneiro. Sentiu-se um pouco mal por ter que lidar com toda aquela situação, sabendo que adiante seus problemas somente cresceriam. Às vezes, desejava ser como seu antepassado, um pioneiro que desbravou terras e criou lendas.
**********
Nem todos puderam comparecer à reunião e, se todos fossem, não haveria espaço. Kiorina estava no vestíbulo da sala de reuniões da Alta Escola dos Magos. Lá dentro, havia contado a seus mestres, várias vezes, tudo o que acontecera em sua viagem. Mesmo com as janelas fechadas, ela podia ouvir as vozes que vinham de fora. A cidade estava muito agitada e cheia de pessoas. Muitos habitantes das vilas que cercam Kamanesh deixaram suas casas, procurando proteção na cidade.
Kiorina se preocupava com o estado de saúde de Archibald. Durante a viagem de volta, sua condição havia piorado e ele foi levado às pressas à Santa Catedral de Kamanesh, onde receberia cuidados. Desde aquela manhã, quando ela e seus companheiros o deixaram, não tivera mais notícias. Pensava que não tivera tempo de ver seus pais, já que precisou ficar o dia inteiro na Escola. No entanto, pediu a seu colega Ector para avisá-los que estava bem. Pensava que aquilo deveria ser a primeira coisa realmente útil que Ector faria em sua vida.
Seus mestres há pouco pediram-na que saísse; queriam discutir sobre o que havia contado. A aprendiz esperava ali fora, pois tinha a sensação de que era isso o que eles queriam. Pensava: "E daí? Eles não disseram nada! Eu vou dar uma volta... E mesmo que tivessem mandado... veja o que aconteceu... é tudo culpa minha!" Enfim, decidiu-se levantar e sair. Andava pelos corredores internos da Alta Escola. Caminhava elegantemente, sem se esforçar, simplesmente por não poder evitar esse andar. Não conseguia parar de pensar que, por culpa sua, Archibald estava ferido e poderia até... "Droga! Não foi culpa minha! É culpa do mestre Heirich! Se ele não nos tivesse mandado..." Logo depois, pensou no porquê de serem enviados a Tisamir, a doença do filho de Jeero. Pensou em culpar o bebê, mas então percebeu que descobrir de quem era a culpa não ajudaria em nada.
Ao virar a esquina, olhou para o corredor e viu a última pessoa que queria ver naquele momento ou em qualquer outro: Chris Yourdon! Pensou em dar meia volta, mas, se assim fizesse, estaria apenas demonstrando para aquele idiota que não podia encará-lo, o que não era bem o caso. Levantou a cabeça e seguiu em frente. Observou-o aproximar-se. Não parecia diferente, vestia uma túnica acinzentada, e seus cabelos compridos, soltos, balançavam no ritmo de seu delicado andar de garoto. Ele, apesar de ser mais velho, tinha uma aparência muito jovial e delicada.
– Minha querida ruivinha, Kiorina de Lars! – disse alto, ainda longe, num tom sarcástico.
Ela não respondeu e continuou andando.
– Puxa! Você está de volta mesmo? Como isso pôde acontecer? Eu pensei que finalmente os mestres haviam tomado uma decisão sensata ao expulsá-la da Escola!
Ela ficou furiosa e pensou em mil e uma respostas. Podia dizer que não havia sido expulsa ou mesmo que estava numa missão especial para o mestre Heirich... No fim, resolveu não falar nada.
Chris olhou-a passar e acabou ficando curioso. Começou a segui-la, fazendo perguntas.
– Ei! O que está havendo? Já sei! Você falou besteira demais e um dos mestres retirou sua voz como castigo!
Ela ignorou o comentário e continuou andando, mais rapidamente.
– Não? Então vejamos... Os mestres a proibiram de falar comigo, por causa de nossa briga na chuva!
O rapaz, pela primeira vez, ficou intrigado. Pensava: "Está aí! Aconteceu uma coisa inédita! Eu tentei, ao máximo, irritá-la e não consegui sequer uma palavra! Tem alguma coisa realmente errada..."
– Ahá! Descobri! Vamos... eu já entendi! Pode desfazer a ilusão, Ector! A brincadeira realmente foi muito engraçada!
Só então Kiorina parou. Olhou Chris de cima a baixo, torceu os lábios em desprezo, virou-se e continuou a andar.
– Então é você! O Ector, ou mesmo qualquer outro, não poderia criar essa sua cara de desprezo com tanta perfeição! – quando tomou distância, ficou perplexo. Nunca havia visto Kiorina se comportar daquela maneira. Resolveu segui-la. – Ei! Kiorina! Espere aí! – disse e deu largos passos a fim de alcançá-la. Finalmente, emparelhou-se a ela. – Kiorina, espere... o que está havendo?
Ela continuou, ignorando-o.
– Dá para parar de me ignorar? Você está começando a me deixar preocupado. – disse, num tom bastante sério.
Ela parou e virou-se.
– O que você quer? – disse, friamente.
Ele a olhou cuidadosamente.
– Você está bem?
– Não é da sua conta, mas, não, eu não estou bem! É só isso? – respondeu ela, impaciente.
Chris olhou dentro dos olhos de Kiorina. Ao contrário do que esperava, ela continuou olhando para ele. Olhos nos olhos, Chris começou a sentir-se desconfortável diante dos grandes olhos verdes de Kiorina; finalmente, desviou o olhar. Pela primeira vez, não sabia o que dizer a ela.
– Sim? – ela insistiu.
– Não... é só... olha, me desculpe... – mal terminou de falar, ou melhor, balbuciar aquilo, virou-se e saiu em passo acelerado. Esse havia sido um dia de primeiras vezes para Chris Yourdon e Kiorina: a primeira vez que ele perdia, a primeira vez que ela ganhava.
**********
Archibald manteve-se desacordado desde que chegara às instalações da Santa Catedral de Kamanesh. Estava deitado em sua cama, sob o olhar cuidadoso de seu superior, o irmão Weiss. Suava bastante, mas alguém que estivesse ali não poderia notar, pois o quarto estava mal iluminado, havendo apenas uma vela sobre a mesa.
– Ah, meu jovem... – sussurrava o velho – não é interessante? Você se encontra novamente no limiar da vida! Limiares... você sempre se deu muito bem com eles...
O homem aproximou-se e tocou a testa do jovem monge Naomir com a palma da mão, que se molhou com o suor. O rapaz mexeu-se um pouco e resmungou algo incompreensível.
– Será que ele pode me ouvir? – ponderou o velho monge. – Por via das dúvidas, é melhor não falar nada...
Começou a recitar um cântico e colocou a outra mão sobre a cabeça do jovem. Permaneceu alguns minutos concentrado, com os olhos fechados, sem fazer ruído algum.
– Não, ele não pode me ouvir... – sussurrou. Levantou-se e afastou-se de Archibald. Andava de um lado a outro do pequeno quarto. – O que devo fazer com você, caro irmão DeReifos? Deixá-lo morrer? Trazê-lo de volta? Ah, o irmão Landerfalt fez um tremendo trabalho com você, meu jovem! É realmente espantoso! O que foi preparado e cultivado com cuidado durante anos pode, no entanto, desmoronar facilmente... e de desmoronamentos eu entendo! Curioso... apesar de ter pedido que fosse poupado, você foi o único a voltar ferido... Acho que isso é um sinal de que não posso confiar muito naquele imprestável! – balançou a cabeça, como se estivesse tendo um calafrio. Ficou parado por alguns instantes. Aproximou-se novamente do jovem. – Claro... isso pode ser muito divertido... e, melhor, muito produtivo! Sim! Sim, meu caro irmão DeReifos! Você, meu jovem, é uma semente ruim e não pode escapar do seu destino... Não hei de precisar de um grande esforço... – tocou a testa do monge com a ponta dos dedos e concentrou-se por uns momentos. – Vamos, meu jovem, acorde! Está na hora! Já faz muito tempo... é hora de voltar!
Archibald começou a mover-se lentamente de um lado para o outro. Seu rosto tinha uma expressão agoniada. Gemeu um pouco e balbuciou algo.
– Jovem DeReifos, acorde! – dizia o velho, dando tapinhas no rosto de Archibald.
Finalmente, o rapaz abriu os olhos e parecia não conseguir focalizar nenhuma imagem.
– Onde estou? Kiorina! Onde está Kiorina? – sua voz vinha arrastada, como se estivesse embriagado.
– Calma, meu jovem, calma! Procure não se esforçar muito! Sua amiga está a salvo!
Fazia muito esforço para falar, mas precisava saber o que estava acontecendo.
– Irmão Weiss? Estou em Kamanesh?
– Sim.
– Mas como?
– Archibald, procure descansar. Pela manhã conversaremos.
– Pela manhã? – perguntou, quase sem energias.
– Sim, pela manhã.
– Mas... e... ah... – não conseguiu mais falar; voltou a dormir.
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