Capítulo 2

Todos já estavam sentados à mesa, que era suficientemente grande para acomodar as pessoas que lá estavam, cujo número variava entre quarenta e sessenta. Houve silêncio por alguns instantes, quebrado pela voz de quem parecia ser o monge mais graduado.
– Felizes os que têm o que comer! A comida e a bebida são dádivas dos deuses! Agradecemos a eles por isso, hoje e sempre!
– Forlon disse e assim será! – disseram todos e começaram a se servir e a conversar. O salão foi preenchido por uma variedade de sons, cheiros e vozes, que tornavam o local mais aconchegante.
Archibald, três monges e um homem que não parecia ser monge estavam perto de Kyle. Um dos monges, o que estava à sua frente, pegou uma ave no centro da mesa e lhe arrancou as duas coxas. Era um sujeito grande e gordo; usava barba apenas abaixo do queixo; tinha as maçãs do rosto avermelhadas e sorria com ternura enquanto olhava para a comida. O monge a seu lado olhou com desaprovação e disse:
– Irmão Meinard, você não acha que deveria perguntar se coxas são do gosto dos nossos visitantes?
O monge enrubesceu e apontou as coxas na direção de Kyle e do outro homem, dizendo:
– Vocês querem?
O monge que sugeriu os bons modos pressionou os dedos contra a base de seu nariz, abaixou a cabeça e fez uma cara de lamentação. Kyle conteve o riso e disse:
– Não, obrigado, eu prefiro o peito.
Archibald disse a Kyle:
– Não dê importância ao irmão Meinard; ele pode parecer um pouco grosseiro, mas é uma ótima pessoa.
O homem que não parecia ser monge disse:
– Acredito que você saiba apreciar as coxas de maneira mais adequada que eu. – e acrescentou, virando-se para Kyle: – Sr. Blackwing, é um prazer conhecê-lo pessoalmente. Meu nome é Alonzo, da casa comercial Atir.
– Prazer em conhecê-lo, Alonzo; por favor, me chame de Kyle.
– Certamente.
– Diga-me, Alonzo, o que traz você e seu chefe, o Sr. Atir, a este mosteiro? – perguntou Kyle, indicando o local onde estava sentado Atir, o chefe da casa comercial.
– Vejo que você conhece o Sr. Atir, mesmo sendo ele a pessoa reservada que é.
Kyle apenas acenou com a cabeça. Archibald comia enquanto escutava a conversa, interessado. Alonzo prosseguiu:
– Nós viemos porque o Sr. Atir é um grande amigo do mestre Landerfalt e também para trazer um carregamento do vinho Baltimore.
– Vinho Baltimore... acho que já vi uma garrafa dessas em algum lugar... – disse Kyle, pensativo.
Alonzo engoliu mais um pedaço da ave assada e disse:
– É possível, já foram comercializadas algumas em Kamanesh.
– Sim, e qual a procedência do vinho? – perguntou, muito interessado, o terceiro monge, ao beber um gole.
– Esse vinho vem do outro lado do oceano, do Reino de Dacs, trazido através de um tratado entre as casas comerciais Atir e Baltimore. – explicou o comerciante, após o que Kyle experimentou o vinho e comentou:
– Nossa, o gosto é realmente ótimo! Nunca bebi vinho tão bom!
– Fico feliz que tenha gostado. – disse Alonzo, acenando com a cabeça.
Kyle continuou comendo e ficou um tempo sem falar nada. Enquanto comia, pensava em como Alonzo lhe parecera suspeito, especialmente seu olhar, escondido atrás de olhos fundos. Seus pensamentos foram interrompidos pelas risadas do irmão Meinard, que, ao beber o quarto ou quinto copo de vinho, deu uns tapinhas no ombro de Alonzo e disse:
– Abençoado seja o vinho Baltimore! Ha! Ha! Ha...
Todos riram, pois o irmão Meinard era muito carismático, apesar da falta de modos. Kyle começava a compreender como Archibald conseguira sua ordenação. Talvez, ele tivesse idealizado as condições para ser um Monge Naomir.

***

Na manhã do dia seguinte, os sinos do mosteiro soaram alto, acordando Kyle. Ele achou estranha a sensação de acordar em um mosteiro. Lembrou-se de que ainda não havia contado a Archibald a razão de sua vinda, ou seja, convidá-lo para ir ao festival em Kamanesh. Decidiu fazê-lo logo que o encontrasse. Seus pensamentos foram interrompidos pelas batidas fortes na porta e uma voz fraca que dizia:
– Vamos, meu jovem, está quase na hora do culto matinal!
"É aquele velho estranho, Ourivart." pensou Kyle e respondeu:
– Já estou indo, bom homem.
– Bom homem? Meu nome é Ourivart! Será que é tão difícil ser chamado pelo nome? – resmungou o velhinho.
– Desculpe-me, Sr. Ourivart, não acontecerá novamente. – disse Kyle, enquanto abria a porta.
– Sim... sim... – murmurou Ourivart e conduziu Kyle pelos corredores do mosteiro. O passo de lento Ourivart, marcado pelas fortes batidas do seu bastão no chão, deixaria Kyle entediado, não fosse a beleza dos detalhes em cada parte.
Depois de passar por corredores que pareciam um labirinto, Kyle e Ourivart saíram do mosteiro pela parte de trás. Kyle ficou confuso e perguntou:
– Onde será o tal culto, Sr. Ourivart?
– Fale menos e apenas siga-me, jovem. – disse Ourivart, dirigindo-se à beira do que parecia ser um abismo.
Ventava muito. O planalto de Or, onde ficava a floresta de Shind, podia ser visto dali. Além disso, via-se a estrada que levava ao Baronato de Fannel.
Chegaram à borda do que parecia ser um corte exato no meio da montanha. Kyle pôde então ver uma escada na cor das pedras, descendo verticalmente.
– Segure meu bastão, jovem Blackwing. – disse Ourivart, que se posicionava para descer a escada.
Enquanto ele descia, Kyle achou estranho o modo como o velho o chamara. Ao prender o bastão em seu cinto, pensou: "Será que esse velho conheceu o meu pai?" Kyle distraiu-se, olhando o infinito; pensava na experiência de estar num mosteiro com pessoas tão diferentes.
– Blackwing! – a voz de Ourivart misturava-se com o vento e soava como um chiado distante: – Blackwing!
Kyle percebeu o chamado e desceu rapidamente. Enquanto descia, mal podia acreditar que aquele velho pudesse tê-lo feito, devido à dificuldade do trajeto. Olhou para baixo e percebeu que a escada não ia muito longe, terminando dezenas de metros antes do chão. Viu uma abertura na rocha de onde saía a mão de Ourivart, segurando a escada, no fim da qual havia apoios que garantiam a segurança na entrada na caverna.
– Vamos, é quase hora! – disse Ourivart, ao pegar o bastão das mãos de Kyle.
Desceram por uma escada de pedra. Nas paredes, havia pinturas com figuras míticas e, igualmente espaçadas, mãos esculpidas em pedra, saindo das paredes, que já não pareciam as de uma caverna, mas de uma construção.
Enquanto desciam, começaram a escutar cânticos, cujo volume aumentava à medida que se aproximavam, até que chegaram a um salão.
A imagem e os sons formavam uma cena magnífica. Era um salão da altura de uns quinze homens. Havia uma fraca luz proveniente da abóbada, que balançava como se refletida em água. O mais impressionante, no entanto, eram as sete enormes estátuas, que representavam Forlon, Ecta e seus cinco filhos.
– Oh, Forlon, deus dos céus e pai de todos, abençoe esta cerimônia em tua honra! – disse o mestre Landerfalt, de pé no altar, com os braços abertos, e continuou: – Estamos felizes, pois houve boa colheita este ano em todo o reino e o povo não há de sentir fome.
A cerimônia prosseguiu, e todos rezaram pela volta dos deuses a este mundo. Pediram sabedoria a Uraphenes, o mais sábio, e iluminação a Leivisa, deusa da luz.
Kyle notou que esse culto diferia dos demais. Nele se pedia a volta dos deuses e também que houvesse pouca dor e morte. A cerimônia, apesar de seus muitos detalhes, logo acabou. No final, todos foram na direção oposta à que Kyle e Ourivart chegaram e subiram outras escadas.
Ao seguir o grupo, Kyle notou que o caminho levava ao jardim interno do mosteiro, o que o deixou confuso e intrigado. Por que o velho quis levá-lo por um caminho mais longo e perigoso? E por que ele fora levado ao culto, enquanto Atir e Alonzo não? Seus questionamentos foram interrompidos pela chegada de Archibald.
– O Mestre liberou-me das tarefas que deveria realizar nesta manhã para conversarmos, pois ele acha que você deseja partir na carroça de Atir, que sai após o almoço.
– Sim, é o que provavelmente farei. – disse Kyle, um tanto inseguro, e acrescentou: – Na verdade, eu vim convidá-lo para ir ao festival e à minha cerimônia de ordenação de Cavaleiro da Segunda Ordem.
– É? Puxa, não sei o que dizer! Há tanto tempo não vou a Kamanesh!
– Diga que sim!
– Não depende de mim... Você sabe, tenho que consultar o Mestre.
– Certo, falaremos com mestre Landerfalt imediatamente! – disse Kyle, tentando animar seu amigo.
– Devo falar com o Mestre sozinho. Vá ao refeitório, estão servindo o desjejum.

***

Archibald andou pelos corredores do mosteiro, os quais aprendeu a diferenciar bem, apesar de muito parecidos. Toda a sua vida fora um erro. Mas ele sentia que tinha uma responsabilidade, uma missão, um propósito. Pensar que poderia ir a Kamanesh novamente depois de três anos lhe dava arrepios. Chegou até a porta do escritório do mestre Landerfalt e bateu.
– Pode entrar.
Archibald hesitou um pouco antes de posicionar-se em frente à mesa de seu superior.
– Irmão DeReifos, queira sentar-se. – disse tranquilamente o Mestre, enquanto examinava uns papéis sobre a mesa. Landerfalt era um senhor de idade; longos fios compunham sua barba branca; seus olhos eram claros, as sobrancelhas, grossas, o olhar, plácido. Ele entrelaçou os dedos, apoiou as mãos sobre a mesa e disse:
– Diga-me, o que o traz aqui, irmão?
– Eu gostaria de pedir permissão para ir a Kamanesh.
– Posso saber com que propósito?
– Acompanhar a ordenação de Kyle, meu amigo de infância, a Cavaleiro de Segunda Ordem.
– Quer dizer que o jovem Blackwing está seguindo os passos do pai! Humm... Sim, eu acho que você deve ir.
– Obrigado, senhor! Mas, se me permite... – hesitou Archibald.
– Prossiga.
– Por que o senhor disse deve ir, quando poderia dizer pode ir?
Mestre Landerfalt esboçou um sorriso e disse:
– Rapaz, você é muito perceptivo!
Houve silêncio por um momento. Landerfalt ficou sério e disse:
– Archibald – havia tempos o Mestre não o chamava assim – lembra-se de quando você chegou aqui, trazido por seu amigo Kyle e seu tutor Gorum?
– Sim. – foi uma resposta que quase não saiu.
– É certo que você sofreu um trauma muito forte, mas, a meu ver, você se recuperou bastante... – Landerfalt parou por um momento e levantou-se – Acho que você deve ir. Apesar de estar-se comportando muito bem aqui dentro destas paredes, gostaria que ficasse em contato com outras pessoas novamente. Veremos se você se sairá bem.
Archibald não respondeu, apenas abaixou a cabeça. Aquelas palavras o amedrontaram.
Landerfalt pegou papel, pena, sentou-se e começou a escrever. Repetia em voz alta:
– Caríssimo irmão Weiss, estou-lhe enviando esta mensagem para justificar a presença do jovem que aí está. Seu nome é Archibald DeReifos. É possível que se recorde dele. Gostaria de que você lhe arranjasse um alojamento e o aceitasse como novo membro de sua paróquia.
Landerfalt ainda escreveu mais algumas sentenças em silêncio, fechou a carta e selou-a com o carimbo da ordem Naomir. Levantou-se, entregou a carta a Archibald e disse:
– Bom trabalho em sua nova ocupação, irmão DeReifos! Espero vê-lo em breve!
Archibald agradeceu e saiu. Ficou desnorteado sem saber o que fazer. Mais tarde, deu as notícias a Kyle, que não pôde esconder a surpresa. Ficaram conversando até a hora do almoço, durante o qual mestre Landerfalt pediu a Archibald que se levantasse e anunciou:
– Irmãos, hoje foi decidido que o irmão DeReifos deve deixar-nos.
Criou-se um murmúrio. Landerfalt prosseguiu:
– Deve deixar-nos, pois vai partir para um serviço sagrado. – fez uma pausa, olhou para todos e continuou: – Vai partir para Kamanesh. Apesar de todas as coisas boas e o bom tempo de convivência com os irmãos daqui, sabemos que existem novas provações que os deuses nos impõem. – pegou uma taça e acrescentou: – Proponho um brinde ao irmão que nos deixa. Que sua nova missão seja bem cumprida!
Todos elevaram seus copos ou taças e disseram:
– Ao irmão DeReifos!
– Você quer dizer alguma coisa, irmão DeReifos? – disse mestre Landerfalt.
– Irmãos! – começou Archibald, tremendo um pouco – É engraçado dizer irmãos, pois vocês sabem que nunca tive, de fato, um irmão. No entanto, agora sei que, se tivesse, ele seria como vocês. – parou por um momento, olhou para baixo e disse para si mesmo: "O que estou dizendo?... Eu não sei!" Balançou a cabeça e continuou em voz alta: – Aqui encontrei um propósito para minha vida e gostaria de agradecer a cada um de vocês por isso! A mestre Landerfalt, por todos seus ensinamentos; ao irmão Meinard, por não deixar o tédio tomar posse deste lugar; enfim, a todos, pois, se fosse citar cada um, ficaria aqui até amanhã. – parou, suspirou e finalizou: – Obrigado! Espero vê-los em breve!
Todos se aproximaram e se despediram. Kyle sentiu-se culpado de toda aquela cena e de seu amigo sair do mosteiro por causa de sua visita.

***

Logo após o almoço, foram feitos os preparativos para a partida. A carroça dos comerciantes foi carregada com cristais que eram extraídos daquelas colinas e trocados por vinho. Partiram horas depois.
A carroça era puxada por dois cavalos muito bons. Para descer as colinas, entretanto, era prudente sair dela, permanecendo apenas o cocheiro, Sadi.
– Sr. Atir, é um prazer conhecê-lo pessoalmente! – disse Kyle.
– Igualmente. – respondeu Atir, rapidamente, pois só alguns minutos de caminhada já lhe haviam tirado o fôlego.
Atir era um homem de idade avançada; usava barba grisalha, curta; era ligeiramente gordo; na cabeça, um turbante, algo realmente extravagante para aquela região; como se não bastasse, no olho esquerdo havia uma espécie de lente, a qual, às vezes, se desprendia, ficando pendurada por uma corrente de ouro presa a um brinco que havia em sua orelha. Era realmente um sujeito singular.
– Diga me... Blackwing... o que ouvi falar sobre seu pai é verdade?
– O senhor não estava em Kamanesh na época?
– Não. – respondeu Atir, fazendo um sinal para descansarem.
Todos pararam e se sentaram em uma rocha arredondada. Atir continuou:
– Eu saí de Kamanesh dois anos antes de começar a guerra e só voltei cinco anos depois de ela ter acabado. Sendo assim, não pude presenciar os feitos de seu pai, embora me lembre vagamente dele.
– Acredito que boa parte seja verdade, mas, o senhor sabe, o povo sempre aumenta muito as coisas.
– Eu entendo...
Tomado pela curiosidade Archibald perguntou:
– Sr. Atir, eu poderia saber onde o senhor esteve durante todo esse tempo?
Atir olhou para cima, abriu a boca, balançou a cabeça sutilmente e disse, saudoso:
– Ah... aqueles tempos! – fez uma pausa, sorriu e continuou – Fiz muitas viagens, meus jovens, fui aonde vocês não podem imaginar...
– Por exemplo... – insistiu Archibald, muito interessado.
– Você já ouviu falar nos reinos bárbaros?
– Sim, um pouco. Quando era pequeno, gostava de ir ao porto, em Kamanesh, escutar as histórias dos marinheiros.
– Quer dizer que o senhor realmente esteve nos reinos bárbaros? – quis saber Kyle.
– Sim. É o lugar mais perigoso de todo este mundo! Fui atrás de fama, tesouros e glória, mas encontrei uma realidade bem diferente... O lugar é...
Atir foi interrompido por um barulho, que assustou a todos: o relinchar apavorado dos cavalos e pedras rolando. Levantaram-se sobressaltados e viram, dezenas de metros abaixo, a carroça virada, envolta por muita poeira. Atir pôs a mão sobre a testa para bloquear o sol e ver melhor o que havia acontecido. Kyle, Alonzo e Archibald correram na direção da carroça, a fim de prestar socorro. Chegando lá, viram o cocheiro levantando-se e os cavalos se contorcendo, tentando ficar de pé. Alonzo e Archibald ajudavam o cocheiro Sadi, enquanto Kyle tentava soltar os cavalos da carroça.
– Estou bem, estou bem. – repetia Sadi, sem parar; mas parecia o contrário.
Kyle gritou:
– Me ajudem com os cavalos! Acho que eles estão sentindo muita dor!
Logo, Archibald chegou para o auxílio, e conseguiram soltar o primeiro cavalo, que se levantou rapidamente. O segundo, no entanto, não se levantou ao ser solto. Archibald sentiu-se nervoso com o olhar desesperado do animal. Alonzo e Sadi chegaram e tentaram levantá-lo.
– Vamos garota! Fique de pé, fique de pé! – repetia Sadi.
Com a ajuda de todos, a égua ficou de pé. Estava muito nervosa. Havia uma lasca de madeira perfurando seu lombo. Archibald pôs as mãos sobre o ferimento e disse a Kyle que puxasse a estaca quando fizesse um sinal. Enquanto isso, Sadi tentava acalmá-la. Archibald fechou os olhos e murmurou algo. O murmúrio transformou-se em palavras ritmadas:
Tsu ergo neem, Tsu ergo neem, Tsu ergo neem...
Finalmente, Archibald fez o sinal e Kyle puxou a lasca. O animal não deve ter sentido dor alguma, pois nem se mexeu. Saía muito sangue. Archibald direcionou uma de suas mãos para o céu e ficou repetindo:
Tsu forni ebdo den, Tsu forni ebdo den...
O sangramento começou a diminuir, até que parou. Depois disso, Archibald afastou-se, dando dois passos trêmulos para trás, e caiu sentado. Balançou a cabeça e disse com a voz fraca:
– Precisamos de um pano grande para enfaixar o ferimento.
Kyle cortou um pedaço da lona da carroça, depois de olhar para Atir, que havia consentido com um aceno. Enquanto cortava o pano, pensava em como havia sido surpreendente o que seu amigo fizera. Ele, antes tempestuoso, irresponsável e inconsequente, agira rapidamente e de maneira formidável. Além disso, fora capaz de realizar encantos sagrados! Levou a lona, cortou-a em tiras e começou a enfaixar o animal com a ajuda de Sadi e Alonzo.
Depois de algum tempo, parando para avaliar a situação, Sadi disse que havia sido um acidente. No entanto não puderam seguir viagem, pois duas das rodas da carroça estavam completamente destruídas. Atir sugeriu que formassem acampamento, enquanto Sadi iria até o mosteiro conseguir uma roda extra, pois tinham apenas uma de reserva. Sadi saiu ao anoitecer, depois de ajudar a desvirar a carroça e montar uma barraca. Alonzo acendeu uma fogueira; Atir trouxe mantimentos de dentro da carroça e disse, sorrindo:
– Sabe, um homem prevenido vale por dois!
Kyle achou estranho que ele estivesse sorrindo após os danos que sua carroça sofrera. Adivinhando o que Kyle pensava, Atir acrescentou:
– Foi sorte! Nenhuma das caixas contendo cristais se abriu com o choque. Nada foi perdido.
Prepararam a comida e sentaram-se ao redor da fogueira. Comiam sem conversar; podia-se ouvir apenas a fogueira estalando, sons de insetos e o vento.
Kyle olhou para Alonzo e viu seus traços de magreza, através do contraste provocado pela escuridão e a luz da fogueira. Alonzo parecia distraído, com os braços apoiados em suas pernas. Finalmente, o silêncio foi quebrado por Archibald:
– Sr. Atir, fale mais sobre suas viagens ou sobre os reinos bárbaros.
Atir fez cara de cansaço e disse:
– Rapaz, nada me daria mais prazer, mas sinto a força da idade me impedindo de acompanhá-los numa conversa.
Archibald demonstrou decepção, e Atir continuou:
– Sabe, meu jovem, estou feliz por você ter vindo. Se não fosse por você, uma de minhas éguas favoritas estaria morta neste momento. – fez uma pausa para respirar e concluiu: – Portanto quero fazer um convite especial para que você e Blackwing venham à minha casa jantar. Lá conversaremos sobre minhas viagens. Agora, se me dão licença, vou-me recolher.
Alonzo acompanhou-o e desejou uma boa noite a todos.
Archibald e Kyle responderam, mas não foram dormir. Depois de um tempo, talvez como um costume antigo, eles se deitaram lado a lado, olhando as estrelas, da mesma forma que costumavam fazer quando crianças.
– Lembra-se de quando ficávamos conversando à noite, no terraço da oficina de Gorum? – perguntou Kyle.
– Sim.
– Sabe, depois daquela época, nunca mais subi lá.
– Você se lembra de que a Kiorina sempre aparecia e ficava falando que ia ser uma grande feiticeira? – disse Archibald, rindo, e continuou: – São engraçadas essas coisas tolas que pensamos quando somos crianças!
Kyle começou a rir e disse:
– Pois é, mas já faz mais de um ano que ela foi admitida na Alta Escola de Magia!
Archibald parou de rir imediatamente e disse:
– Deixe de brincadeiras! Eles nunca iam aceitar alguém como ela.
– Mas é verdade! Eu também não acreditei quando soube.
– Puxa, então ela deve realmente estar diferente, deve ter amadurecido!
– Isso é o que mais me intriga, ela continua a louca de sempre, não consigo entender, já me perguntei mais de mil vezes e não encontro a resposta.
– Por Uraphenes, acho que as coisas mudaram mesmo!
Kyle cruzou as mãos, apoiou a cabeça sobre elas e respirou fundo, dizendo:
– Você nem imagina quanto, meu amigo.
Conversaram por mais alguns momentos e caíram no sono ali mesmo, sob as estrelas, sem perceber... Havia sido realmente um dia muito cansativo.

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