Capítulo 19
CAPÍTULO 19
Uma estranha figura descia a escadaria escura em espiral. Blocos de rocha negra compunham as paredes. O homem baixo carregava dois enormes sacos. Ele ria, a cada passo, um riso rasteiro, como o som de uma serpente. Descia as escadas com um cuidado todo especial. À medida que avançava, a quantidade de luz diminuía, até que nada mais podia ser visto; apenas se ouvia o som de seus passos arrastados e ritmados, que se misturavam às estranhas risadas, que ecoavam pela longa escada. Aos poucos, a esse som acrescentou-se um lamento que vinha de baixo, o qual, quanto mais se descia, mais alto ficava.
– Hehe, hehe... Calma, minhas crianças... hehe, hehe... Kurzeki já vem... hehe, hehe... já vem...
A voz do homem era tão horrível quanto sua risada, sons que praticamente não se diferenciavam. Risos e voz formavam um discurso sofrido. Já bem próximo da fonte da lamentação, outros sons podiam ser ouvidos: sons de metal contra metal.
– Hehe... Cheguei, minhas crianças... esperem... vou acender uma tocha para poder ver vocês, meus queridos... hehe... acender uma tocha...
Largou as sacolas subitamente, mas o som de algo caindo no chão, em meio ao lamento, às dezenas de gemidos, grunhidos, sons desarticulados e arrastar de correntes, mal podia ser ouvido. Faíscas surgiam na escuridão, repetidas vezes, até que uma chama iluminou o local. Finalmente, pôde-se observar o rosto que surgiu das sombras. Uma face ligeiramente enrugada e repleta de pequenas feridas; os cabelos eram curtos e despenteados; o sorriso sinistro mostrava uma arcada de poucos dentes; nos olhos, o reflexo do brilho da tocha acentuava o olhar vago, insano e desfocado.
– Hehehe... Agora Kurzeki pode ver suas crianças... hehehe... Kurzeki estava com saudades... hehehehehe...
O homem se encontrava na entrada de uma enorme catacumba de teto curvo, que se estendia além do alcance da iluminação. Havia celas com portões de grades de ferro enferrujado em arcos. Centenas de mãos e braços passavam pelas grades e procuravam alcançar algo do lado de fora. Ele encolheu os ombros, contorceu os músculos da face e, num estalo, voltou a mover-se, aproximando-se das grades com um dos enormes sacos. Deixou-o a seu lado e estendeu a mão, fazendo a ponta de seus dedos encontrar-se com as pontas dos dedos de alguns dos prisioneiros.
– Hehehe... Vocês sentiram saudades do papai Kurzeki? Saudades? hehehe...
Ele se abaixou, desamarrou o saco, retirou um pedaço de carne apodrecida, repleta de vermes, insetos e pragas, e a entregou a uma das mãos, que se retraiu imediatamente, enquanto as outras entraram em maior agitação.
Em meio a gemidos e grunhidos, um dos seres presos, uma mulher branca e muito magra, vestida com nada mais que farrapos, o rosto deformado, lábios enegrecidos e distorcidos, cabeça quase careca e olheiras profundas, conseguiu articular uma palavra:
– F... f... fo... foom... me... fooommmeee...
– Ohhh... ohhhh... hehehe... Escutem crianças... Escutem... Ela falou com Kurzeki! – gritou o homem, muito entusiasmado. – Você está com fome, meu lindo neném? – perguntou, olhando com ternura nos olhos da moça.
– F... fooommmeee...
– Aqui está então um suculento antebraço, com um ossinho gostoso para você roer! – e foi alimentando todos, enquanto dizia: – Comam, meus filhinhos, comam... o grande dia chegará! O Mestre disse! Sim, ele me disse... tudo anda conforme planejado. Não é ótimo? – e respondia ele mesmo pelas criaturas, fazendo voz fina e estridente: – Sim, querido Kurzeki, isso é ótimo! – e, assumindo novamente a própria voz, continuava: – Comam... para não enlouquecerem! hehehehehehehe...
O estranho homem dava gargalhadas e corria de um lado a outro do corredor, levantando com ambas as mãos os panos de seu manto negro. De repente parou, sentindo um frio na espinha. Em sua mente, a voz de seu mestre lhe dizia: "Kurzeki! Pára com isso imediatamente e sobe até meus aposentos!"
– Sim, meu senhor! – respondeu Kurzeki, em voz alta.
"Lava-te antes, temos visitas!"
Kurzeki largou as abas de seu manto e foi até a parede onde havia colocado a tocha. Sob a luz distorcida do fogo, lambia suas mãos lambuzadas do sangue da carne que jogara às criaturas presas ali, que, no momento, apenas comiam.
Momentos depois, Kurzeki estava muitos andares acima, em um grande aposento. A sala era decorada com diversas máscaras e estátuas penduradas nas paredes. A luz provinha apenas de um lustre, com dezenas de velas, que ficava no centro, sobre uma grande mesa de madeira, rodeada por cadeiras com encostos muito altos. No fundo, havia uma sacada, através da qual era possível ver o céu noturno, estrelado, e por onde entrava uma brisa que sacudia as pequenas chamas, tornando trêmulo o ambiente.
Kurzeki, mais limpo, mas com os cabelos extremamente despenteados, arranjava sobre a mesa pratos e copos feitos de um metal cinzento e fosco, que dava a impressão de sujeira. Quando escutou atrás de si o barulho de passos bem ritmados, virou-se para encarar seu mestre.
– Mestre, está tudo pronto... – disse e abaixou a cabeça, desviando o olhar.
– Ótimo! Dize-me, Kurzeki, tu te divertistes alimentando os carniçais?
– Sim...
– Muito bem...
O homem aproximou-se e colocou sua enorme mão sobre a cabeça do servo. Sua pele era branca, as unhas, grandes, semitransparentes e lustrosas. Acariciou a cabeça do servo, olhando-o de cima, pois era tão alto, que a cabeça de Kurzeki ficava abaixo de seu peito.
– Retira-te agora. Quando precisar de ti, chamar-te-ei.
**********
Mais tarde, Kurzeki estava na cozinha, preparando a comida de seu mestre. Suava bastante, devido ao forte calor que emanava do fogão. Trouxe mais lenha, abriu a tampa de metal do fogão e cuidadosamente colocou a madeira. Sobre a chapa havia diversas panelas, feitas com o mesmo metal fosco dos pratos e copos. Estava quase pronto.
"Kurzeki – escutou em sua mente – pode trazer-nos a comida!"
Colocou uma parte do conteúdo das enormes panelas em bandejas e foi, escada acima, em direção à sala de jantar. Entrou e viu que havia dois homens sentados à mesa com seu mestre. Nenhum deles lhe era estranho. Eram o velho caolho e cabeludo e o velho careca e manco. Não guardava bem os nomes nem precisava, pois raramente falava com eles, que não se incomodavam com sua presença. Deixou as bandejas e foi até um pequeno armário, de onde retirou uma grande garrafa de vinho. Enquanto servia, escutava:
– Isso é ótimo! Quer dizer que tudo está funcionando como planejado! – disse o anfitrião.
– Sim. Dentro em breve teremos que redobrar nossa atenção, pois será a fase mais delicada. – disse o velho a quem Kurzeki se referia como careca e manco.
O outro, que fazia alguns gestos com as mãos sobre a mesa, comprimindo uma contra a outra, disse:
– Sim... mas algo me incomoda.
– O que, meu velho amigo? – disse o anfitrião.
– O discípulo de Kivion!
– Hahahaha! Preocupas-te além da conta! – vendo, porém, que seu interlocutor nem sequer sorriu, refletiu e disse: – Talvez...
– Você acha que deveríamos nos livrar dele? – perguntou o outro.
– Creio que vocês não sabem com quem ele está associado.
– Não tive tempo para detalhes...
– Com o filho de Blackwing...
– Como isso sucedeu? – perguntou o anfitrião, muito surpreso.
Quando o caolho começou a explicar, Kurzeki escutou em sua mente: "Tragas mais..." – e saiu. Resmungava:
– Hehehehehe... carniçais... grande dia... hehehehe... Blackwing... carniçais... hehehehe... guerra... sangue bom... carniçais... Kurzeki bom... hehehehe... – momentos depois, quando trazia mais comida, voltou a escutar:
– É um belo plano, meu caro amigo! – disse o mestre de Kurzeki.
– Sim... Então, meus caros, de agora em diante, não devemos mais nos encontrar! Só voltaremos a nos ver no Conselho dos Sete, para discutirmos a terceira fase de nosso estratagema. – disse o velho careca.
– Certo! Mas dessa vez temos de nos superar, pois eles já enfrentaram meus bestiais duas vezes e se safaram em ambas. Na próxima, isso não poderá acontecer! – disse o outro.
– Um brinde ao nosso Lorde do Submundo!
Os três levantaram seus copos e beberam. Enquanto isso, Kurzeki os observava, com prazer. Resmungava baixinho para si mesmo:
– Lorde do Submundo... hehehehe... Lorde do Submundo...
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