Capítulo 18
CAPÍTULO 18
A vila dos silfos estava tranqüila. Era possível escutar sons de pássaros cantando, o vento nas copas das árvores e o silêncio barulhento da floresta. A vila estaria completamente abandonada, não fosse por uma de suas casas, construída sobre plataformas, na copa de uma árvore com troncos grossos e retorcidos, que alcançavam os pontos mais altos da floresta de Shind. Lá estavam os últimos remanescentes da vila.
No interior da casa, havia uma perfeita harmonia entre móveis, escadas e cômodos, que se acomodavam perfeitamente às formas da árvore. Passara já um bom tempo, desde que Archibald e Kiorina foram atacados nos arredores da vila. Quando chegaram, Kyle, Noran e Lourish os conduziram àquela casa. Lourish, o silfo com quem haviam falado pouco antes de saírem, tratou o ferimento de Archibald, fazendo com que o sangramento parasse. O monge, nesse momento, dormia numa cama, descalço e sem camisa. Em volta de seu peito e passando por seu ombro esquerdo, faixas de panos se sobrepunham, formando um curativo, cujo centro estava vermelho, manchado com o sangue que perdera.
Sentada a seu lado estava Kiorina; ela umedecia um pedaço de pano numa pequena bacia de madeira que estava em seu colo e, cuidadosamente, o torcia para tirar o excesso do líquido esverdeado que o ancião, Lourish, havia preparado. A mistura era aplicada sobre a testa do enfermo monge Naomir. No olhar da jovem, podia-se ver uma enorme tristeza e, bem no fundo, culpa. Ela olhava para ele e não conseguia tirar da cabeça a idéia de que era responsável por tudo aquilo. Se tivesse usado o que aprendera de forma mais eficaz, poderia ter evitado que ele estivesse assim, ferido e correndo risco de vida.
– Como você pôde fazer isso? Você não vê? Se eu pudesse ter ido junto, talvez ele não estivesse ferido! – gritava Kyle, completamente irado, no cômodo ao lado.
Noran não respondia; apenas balançava a cabeça negativamente, olhando para baixo.
– Então é assim?! Você não diz nada? Vai ficar aí balançando a cabeça?
– Irado desse jeito, nada que eu disser vai adiantar. Sugiro que se acalme e tente pensar numa maneira de deixarmos este lugar e chegarmos a um local seguro.
Kyle não respondeu; deu as costas e, puxando a cortina que dividia os cômodos, passou para o cômodo onde Archibald estava.
– Calma, Kyle, ele vai ficar bem... – dizia Kiorina, tentando acalmá-lo.
– Puxa vida! Como esse sujeito pôde ter-me feito dormir, quando vocês mais precisavam de mim? – disse, um pouco mais baixo por causa do enfermo, mas não menos nervoso.
– Talvez Noran só estivesse querendo evitar algo pior...
– Pior que isso? – e apontava o monge, que estava inconsciente e suava muito.
– Sim. Imagine que fossem mais bestiais, vinte ou trinta. Nervoso como você estava e ainda está, poderíamos todos ter morrido nas mãos deles...
– Bah! Falar do que poderia ter acontecido não vai fazer com que nos salvemos agora. Além disso, não foram vinte nem trinta; foram apenas alguns. Por isso, se eu estivesse lá, as coisas poderiam ter sido diferentes.
Ao escutar as palavras de Kyle, a garota começou a sentir muito medo. Medo de morrer nas mãos daquelas feras, de não voltar a ver seus pais, seus amigos da Escola, medo de que Archibald morresse... O medo a invadiu. Num salto, ela se levantou, abraçou Kyle e, chorando, lhe disse:
– Ah, Kyle, estou com tanto medo... E se os bestiais nos pegarem? O que nós vamos fazer?
Ele, muito surpreso, ficou com os braços abaixados e sem ação. Sentindo as lágrimas dela em seu ombro, abraçou-a lenta e desajeitadamente. Sua raiva foi-se esvaindo, gradualmente, até que ele se sentiu vazio, sem emoções.
Enquanto isso, na sala ao lado, Lourish e Noran conversavam, muito preocupados. Lourish estava sentado em uma cadeira natural, que brotava da própria árvore, enquanto Noran andava de um lado para o outro.
– O senhor acha que ele está certo? – perguntou o jovem ao ancião, com uma preocupação que nasceu das duras palavras que o cavaleiro lhe dissera há pouco.
O velho tossiu e, com a voz rouca, respondeu:
– Pode ser que sim, pode ser que não. O futuro é sempre incerto, assim como um passado que não aconteceu...
– O que está feito está feito! – definiu Noran, dirigiu-se à janela do outro lado da sala e colocou a cabeça para fora, procurando alguém.
Lourish, ao perceber a preocupação do jovem, disse:
– Fique tranqüilo. Fique tranqüilo quanto a Mishtra; ela sabe cuidar de si. Caso aviste algum bestial, nos avisará.
Noran virou-se e ficou quieto por alguns instantes, olhando uma escultura de madeira, uma coleção de formas geométricas que se sobrepunham verticalmente ao lado da porta. Lourish observou-o em silêncio e finalmente disse:
– E então? É ela a escolhida de Kivion?
Noran olhou para o velho e fez um sinal positivo com a cabeça:
– Sim, eu fiz contato assim que ela chegou.
– O que você vai fazer? Levá-la de volta a Tisamir?
– Acredito que não, pelo menos neste momento...
– Entendo. – disse o velho e começou a tossir. – Eu preciso ir, você sabe...
Noran aproximou-se e estendeu a mão para Lourish. O velho olhou-o nos olhos e finalmente agarrou-lhe a mão. Noran ergueu-o. Ao levantar-se, Lourish deixou escapar um gemido de dor. Era a implacável idade que agia sobre seu corpo.
Noran, sentindo que talvez não o visse novamente, abraçou o velho silfo por alguns instantes. Afastaram-se, e o velho disse:
– Força, meu jovem. Lembre-se de nossa conversa; é uma grande mudança, mas os valores precisam permanecer, não importa quão duro seja o caminho. – e foi deixando o local, sem dele sair. Caminhou em direção à porta. A cada passo, sua imagem ia-se desfazendo, até que, quando tocou a maçaneta e abriu a porta, havia desaparecido por completo.
Noran ficou olhando com grande admiração. Apesar de já ter escutado de seu mestre os grandes feitos que a magia pode realizar, nunca havia testemunhado algo tão impressionante. Não havia tempo para reflexões, no entanto; precisava agir. Virou-se e puxou a cortina que separava os cômodos. Ficou parado na porta e observou que Kyle e Kiorina estavam ajoelhados ao lado da cama, prestando penitência aos deuses. Pediam pela vida de Archibald. Não teve coragem de interromper e ficou a observá-los.
**********
Estavam prontos para sair da vila dos silfos. Haviam deixado tudo o que carregavam para trás, dividindo o peso das coisas essenciais entre si; poupavam a mula para levar Archibald.
Kiorina estava bastante inquieta por Mishtra não lhe ter dirigido uma palavra sequer desde que se encontraram. Ela já havia feito dezenas de perguntas, mas não obtivera resposta para nenhuma.
– Ei, será que você pode me responder? Você não fala com humanos? Talvez seja meu cabelo... O corte é incompatível com o de uma dama? Talvez eu devesse vir morar no mato e viver como bicho para me comunicar com você!
Mishtra virou-se para encarar a jovem maga. Lançou um olhar congelado a seus olhos verdes. O olhar profundo de Kiorina perdeu-se nos olhos negros da silfa.
Noran, percebendo o que estava para acontecer, interferiu:
– Kiorina, já basta! – disse severamente. – A razão pela qual ela não responde é apenas uma, mas é muito forte: Mishtra é muda!
Aquelas palavras acertaram a cabeça de Kiorina como um raio. Ela ficou tão constrangida, que não sabia para onde olhar. Enrubesceu-se; queria sumir dali. A silfa continuava encarando a garota, com os olhos apertados, mas seus olhos não mais encontravam os dela.
– Eu...eu... sinto muito... – gaguejava Kiorina, sentindo-se péssima.
Mishtra deu um pequeno salto; assustou-se ao perceber uma voz dentro de sua mente: "Mishtra, por favor, perdoe a menina. Ela é jovem e imprudente, ainda tem muito o que aprender."
Ela pensou: "Você pode ler meus pensamentos?"
"Sim, posso." – respondeu, mentalmente, Noran.
"Quer dizer que podemos conversar sem palavras?"
"Sim."
Isso ocorreu num breve instante, e Kiorina estava nervosa demais para perceber qualquer coisa. Permanecia sem ação diante da silfa. Mishtra estendeu a mão e, com delicadeza, a colocou sobre o ombro de Kiorina, que lentamente voltou a olhar nos olhos dela. Mishtra então fechou os olhos por um momento e balançou a cabeça positivamente, com muita suavidade. No fim, a forte e delicada expressão de Mishtra demonstrava que ela havia perdoado a garota, mesmo sem dizer nenhuma palavra.
Kyle, acostumado ao gênio de Kiorina, pouco se importava com o que estava acontecendo. Em vez disso, cuidava dos detalhes finais para a partida e ajustava as placas de metal da armadura sobre o peito e braço direito. Queria deixar a vila antes do anoitecer e montar acampamento na floresta fechada.
– Vamos! Vamos com isso de uma vez! – disse Kyle. – Não podemos perder mais tempo! Vamos para Kamanesh imediatamente!
Com isso, Kiorina afastou-se de Mishtra e começou a caminhar na direção de Kyle; partiram floresta adentro.
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