Capítulo 17
CAPÍTULO 17
Quando saíram da cabana, a pequena vila estava imersa em caos. Silfos corriam de um lado para outro, carregando seus pertences e suas crianças. Noran e Archibald carregaram Kyle nos braços até a mula e, enquanto o colocavam sobre ela, repararam que outro silfo bastante velho vinha na direção deles. Ele andava com dificuldade, usando uma bengala para apoiar-se. Nos longos cabelos brancos, havia dezenas de tranças finas. Era magro e baixo. Tinha uma grande barba branca, coisa rara entre os silfos.
– Noran, Noran... – dizia o velho.
– Lourish!?
– Yo, yo...
Aproximaram-se, e Noran curvou-se para reverenciar o ancião.
– Lath Derore, Lath Derore...
– O quê?
– Quem você procura está numa patrulha ao norte e provavelmente ainda não sabe dos bestiais. – disse o velho e dirigiu-se a Archibald e Kiorina: – Sem tempo, sem tempo para apresentações formais! Vão, vocês me escutaram! Ao norte, ao norte! Jovem muito bonita, Mishtra. Vão, vão! Casa na árvore do pé amarelo!
– Obrigado, Lourish. – disse Noran.
– Não, você não vai... você fica, precisamos falar. – disse o velho, segurando o braço de Noran, e voltou-se para os outros: – O que estão esperando? Vão! A casa na árvore do pé amarelo! Mishtra!
O monge e a garota saíram para procurar a silfa; ficaram na vila Noran, Lourish e o inconsciente Kyle.
– Kiorina, parece que as coisas não estão nada boas... É melhor nos apressarmos. – disse Archibald, enquanto andava em passo acelerado.
Após uma caminhada apressada, já estavam embrenhados na floresta. Kiorina estava muito ansiosa, pois havia o risco de encontrar bestiais a qualquer momento.
– Isso é loucura! Como eles esperam que encontremos uma pessoa no meio da floresta, sem conhecer nada? – disse Kiorina, demonstrando muito nervosismo.
– Procure ficar calma; ficar nervosa agora não vai ajudar em nada.
– Certo, certo... para onde vamos, então?
– Shhhhh...
– O que foi? – sussurrou Kiorina.
– Acho que escutei alguma coisa. Vamos por ali.
Começou uma ventania, que trazia um cheiro ruim. Passaram por algumas árvores e, pouco tempo depois, alcançaram uma clareira. Do outro lado, puderam ver uma árvore com raízes amareladas semi-expostas.
– Que sorte! Ali está nosso pé amarelo! – disse Archibald e logo começou a gritar: – Mishtra! Mishtra! – andaram em direção à árvore, e o monge continuou: – Mishtra! Mishtra!
Kiorina parou subitamente, colocando a mão sobre o peito do jovem monge.
– Alguma coisa errada? – perguntou ele, intrigado.
– O cheiro... – Kiorina olhou dentro dos olhos dele, torceu os lábios e balançou a cabeça negativamente. Ele concordou fazendo um sinal.
Ficaram paralisados por alguns instantes, que pareceram durar uma eternidade. Kiorina sentiu suas mãos ficarem geladas e seu coração disparar; pensou em sua família, na Alta Escola, em Kyle. O mundo externo cedeu lugar a seu mundo interno. Ela se recordou de um dia em que tinha perdido a cabeça com Chris Yourdon, aluno da Alta Escola de Magia, que considerava um rival. Ele acabara de dar outra lição sobre como usar a magia convencional de forma excepcional. Dizia:
– Ah, Kiorina... Veja e aprenda... Isso se chama ter classe!
Lembrava-se de querer acertar a cara dele com um soco; aquela seria a última das muitas provocações que escutara naquele dia. Ele estava de costas para ela, coisa que costumava fazer para irritá-la ainda mais. Quando ela se aproximou com os punhos cerrados, ele se virou e disse:
– Preste atenção. Isso não é uma brincadeira. A magia não é uma brincadeira. Um dia, sua vida vai depender da criatividade em adaptar as magias que aprendemos na escola a situações de perigo.
Quando ela se deu conta, havia bestiais a poucos passos dela, correndo loucamente com espadas e machados nas mãos. Não havia contado quantos, mas vinham de todos os lados. Aquela frase voltava à sua cabeça sem parar: "... sua vida vai depender da criatividade em adaptar as magias que aprendemos na escola a situações de perigo". As palavras ecoavam; ela permanecia sem ação, enquanto os bestiais corriam desenfreadamente em sua direção. Só então percebeu que Archibald sussurrava, repetia algo, num ritmo constante. Não podia distinguir palavras; eram apenas sons ritmados, como numa lamentação. Mil coisas pareciam estar acontecendo em poucos instantes, como se todos andassem em vez de correrem. O tempo não passava. Ela imaginou se isso seria obra do monge, mas a idéia pareceu absurda e foi descartada. Observava o rosto do companheiro, sua expressão serena, os olhos fechados, sobrancelhas relaxadas, ambas as mãos à frente de corpo, segurando o bastão. Ao olhar para o outro lado, deparou-se com um bestial que levantava seu enorme machado, preparando um golpe que a atingiria. Percebeu então que havia entrado num estado de profunda concentração e que o cristal em seu colar brilhava intensamente. Fez o gesto e pronunciou as palavras necessárias e, no instante seguinte, sobrevoava o local, vendo a cena do alto. Isso aumentou seu desespero, pois havia acabado de deixar seu companheiro cercado por bestiais sedentos de sangue. Como da outra vez, o grupo era de seis bestiais, mas agora não contavam com a ajuda de Kyle.
Archibald estava extremamente concentrado; no outro encontro que tivera com os bestiais não estava preparado. Seu fracasso em lidar com eles na outra ocasião fez com que treinasse todos os dias para um novo encontro. Procurou lembrar-se de tudo o que aprendera no mosteiro, pois o dia de colocar seus conhecimentos em prática havia chegado. Percebia que eles eram muitos e estava preparado para aquele que provavelmente seria seu último combate.
Desta vez, teve tempo de evocar força, agilidade e resistência extras, necessárias para derrotar seus inimigos. O primeiro deles estava à sua frente e se preparava para acertá-lo com uma espada serrilhada e suja. Como vinha correndo em sua direção, esperou até o último instante para atingir, com um golpe certeiro e violento, usando a ponta de seu bastão, a garganta do bestial, que, sentindo muita dor, tropeçou e rolou pelo chão, largando sua arma para levar ambas as mãos à garganta. Archibald teve que pular por cima do corpo, que continuou rolando por mais alguns instantes.
Nesse momento, o bestial que havia dirigido uma machadada à Kiorina preparava seu machado para atingi-lo. A fera gritava nomes e maldições em sua língua e lançava para Archibald um olhar de ódio sem fim. O monge girava seu bastão rapidamente, demonstrando grande habilidade. Seu oponente, que segurava o machado com as duas mãos, golpeou no sentido horizontal; girou todo o seu corpo com o movimento, como se fosse rebater uma pedra com um bastão. Archibald teve que pular para trás a fim de evitar o golpe, que não foi certeiro por apenas um palmo. Enquanto isso, os outros bestiais, que vieram com menor velocidade, aproximavam-se perigosamente de Archibald.
Kiorina sentia-se cansada, havia usado muita energia para criar o encanto que lhe permitia voar. Sabia que, se fizesse mais alguma magia, não seria capaz de continuar voando. No entanto, alguma coisa precisava ser feita. Mergulhou em direção ao bestial, que golpeou o ar com seu machado. Agarrou-o pelas costas, tentando impedir que tentasse atingir Archibald novamente. A criatura, porém, era muito forte e difícil de segurar; uma chacoalhada foi suficiente para retirar a garota de suas costas, mas a distração bastou para que o monge Naomir pudesse desferir um golpe certeiro na cabeça da fera. A criatura tombou inconsciente.
Archibald mal teve tempo de virar-se e defender-se de um golpe que veio por trás e, em seguida, desviar-se de outro vindo de sua esquerda. Eram dois bestiais que chegavam ao mesmo tempo. Sabia que, não fosse a agilidade e força extra com que estava contando, não teria vencido os outros dois, mas, nesse momento, não podia fazer outra coisa senão desviar-se dos golpes.
Kiorina foi projetada para trás e encontrava-se caída no chão. Com um impulso de suas pernas, porém, voltou a voar, evitando outro bestial que se aproximava.
Mais um bestial juntava-se aos dois, que tentavam ferozmente atingir o monge. A situação estava cada vez mais difícil. Entre uma defesa e uma esquiva, Archibald gritou:
– Fuja, Kiorina, fuja!
Ela se afastou um pouco deles e aterrissou, atraindo um dos bestiais para sua direção.
Enquanto isso, Archibald lutava desesperado contra três deles, ao mesmo tempo, até que o inevitável aconteceu: um dos bestiais que carregava uma maça atingiu-o no estômago. O golpe foi tão violento, que o arremessou para trás. Ele caiu sentado, sem largar seu bastão. Antes que pudesse levantar-se, outro, que carregava uma espada, deu um golpe vertical, trazendo todo o peso de seu corpo consigo. Archibald colocou seu bastão contra a espada, segurando-o com as duas mãos. O golpe atingiu o bastão com violência, quebrando-o, e continuou sua trajetória para atingir o rapaz no ombro esquerdo, atravessando as grossas vestes de couro e arrancando-lhe sangue. O monge gritou de dor; sua voz ecoou pela clareira, preenchendo a floresta com o horror da batalha.
Kiorina, sentindo uma forte revolta dentro de si, fez com que dezenas de pequenas pedras e gravetos que a cercavam flutuassem. Com um grito, arremessou-os com velocidade incrível em direção ao bestial que vinha em seu encalço, o qual, ao ver isso, cobriu o rosto com os braços. Uma série de pedras e gravetos atingiram a fera, abrindo feridas principalmente em seus braços e pernas, que não estavam protegidos por armadura. Kiorina continuava gritando, e mais objetos foram arremessados em seu oponente, até derrubá-lo. Quando ele caiu, aconteceu o mesmo com ela, que se ajoelhou e apoiou as palmas das mãos no solo. Estava exausta.
A gritaria e o efeito do feitiço fizeram com que os três bestiais que combatiam Archibald parassem e observassem por um instante. No momento em que o bestial atingido por fragmentos e a feiticeira foram ao chão, o bestial que atingira o monge com uma espadada caiu. Os outros que permaneciam de pé tentavam entender o que havia acontecido. Um deles levantou a mão esquerda apontou na direção da árvore de raiz amarelada, gritando:
– Nor kitê tairug!
Num piscar de olhos, uma flecha atravessou seu crânio, entrando por um dos olhos.
À meia distância dali, na direção da árvore de raízes amareladas, encontrava-se uma figura feminina, segurando o enorme arco com que acabara de disparar a flecha. O bestial, demonstrando toda a extensão de sua irracionalidade, começou uma corrida em direção à moça, erguendo sua espada e gritando coisas incompreensíveis.
De forma precisa e ao mesmo tempo graciosa, a arqueira executou uma seqüência de movimentos rápidos. Retirou uma flecha da aljava que carregava nas costas, preparou-a, tencionando o arco ao seu extremo, e soltou a corda. Com isso, o bestial tombou, rolando no mato baixo até parar próximo à sua executora.
Kiorina olhou para a frente e surpreendeu-se com a cena: nenhum bestial de pé. Finalmente reparou na jovem silfa, com um arco nas costas, cruzando a clareira rumo a seu companheiro caído. Com um esforço muito grande, ela conseguiu levantar-se e caminhou com dificuldade em direção a Archibald. Ao aproximar-se, observou a silfa com as mãos cheias do sangue de seu companheiro desmaiado, pressionando o ferimento na esperança de parar o sangramento.
– O corte está muito fundo? – perguntou Kiorina à desconhecida, que só poderia ser Mishtra.
A silfa olhou nos olhos da garota e balançou a cabeça positivamente. Levantou-se lentamente, levando a mão direita à cintura e sacando uma faca. Pulou na direção de Kiorina, que se assustou, ficando sem ação. Percebeu então que a facada não era destinada a ela e sim ao bestial que estava atrás. Recuperava-se do golpe que havia recebido na garganta.
Mishtra caiu em cima dele e esfaqueou suas costas repetidamente, impedindo-o de alcançar sua espada, a poucos palmos de distância. Kiorina espantou-se com a ferocidade da silfa e ficou em silêncio. Agora estava toda suja de sangue. O sangue de Archibald misturava-se ao sangue do bestial que acabara de eliminar. Levantou-se, passou por Kiorina que a observava com olhos arregalados e foi até o bestial que Archibald havia derrubado com um golpe na cabeça. Agachou-se e, num movimento seco, cortou-lhe a garganta. Depois, fez o mesmo com o que Kiorina havia derrubado. Enquanto Mishtra se ocupava em verificar se todos os bestiais estavam devidamente mortos, Kiorina tentava estancar o sangramento de Archibald, rasgando e amarrando uma parte de sua roupa em volta do ferimento.
Nesse momento, ele começou a recobrar a consciência e a murmurar alguma coisa incompreensível. Kiorina apertou fortemente a mão dele e tentou acalmá-lo, dizendo que estava tudo bem. A silfa aproximou-se e agachou-se ao lado dele. Procurava alguma coisa dentro de uma bolsinha.
Enquanto isso Archibald, que enxergava imagens enevoadas, conseguiu identificar Kiorina, por seus cabelos ruivos. Ao olhar para silfa, sua visão foi clareando; viu uma moça com cabelos dourados e traços faciais muito finos, perfeitamente modelados, como os das esculturas que tinha visto em Tisamir. Ela procurava algo. Seus olhos se encontraram e ela trouxe o que segurava até seu rosto. Era um frasco destampado contendo um líquido transparente que tinha um cheiro muito forte. Ao cheirá-lo por alguns instantes, ele voltou a desmaiar.
Kiorina olhou para ela, cerrou os olhos e disse:
– O que você fez com ele?
A silfa não respondeu, apenas começou a puxá-lo com força, colocando-o no colo.
Kiorina viu que ela havia levantado o monge cuidadosamente e concluiu que não lhe faria mal algum. A silfa deu as costas a Kiorina e, com esforço, começou a carregar Archibald, inconsciente, na direção da vila dos silfos. A garota observou a estranha carregar seu amigo; reparava na força dela e em seus músculos bem construídos, que, ainda assim, compunham um conjunto bem feminino. Logo pôs-se a caminhar atrás dela e tentou puxar assunto novamente. Depois de mais de três perguntas sem resposta, resolveu ficar quieta e apenas seguir andando.
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