Capítulo 11

CAPÍTULO 11

Depois do dia em que foram atacados, os três não conversaram muito. Já haviam deixado a floresta de Shind. Agora parecia ser a parte mais difícil da viagem, pois estavam a subir e descer montes, que ainda eram suaves, característicos do início da cordilheira de Thai. No início, as subidas e descidas foram facilitadas pelas trilhas e estradas que pegaram, enquanto atravessavam o baronato de Fannel, cuja faixa territorial era bem estreita. Eles reabasteceram seus suprimentos na vila de Kêner e depois em Liont, a capital. Liont era uma cidade muito bonita, às margens do singular rio Aluviris, que não desaguava no mar, mas penetrava no planalto de Or, percorrendo vias subterrâneas.

Entre as principais atividades do baronato de Fannel, estavam a ourivesaria, trabalhos com pedras preciosas, vinicultura, mineração, além de escolas e oficinas de escultura e pintura. Vários trabalhos, como esculturas para praças, castelos e igrejas, eram encomendados aos mestres artesãos do baronato e suas companhias.

Estavam a caminho da cidade oculta, que, aliás, deixara de ser realmente oculta há bastante tempo, sendo assim chamada por costume ou mesmo por uma questão histórica. Seja como for, hoje era uma cidade muito importante como ligação do reino dos humanos com os territórios dos anões, que vivem mais ao norte, na parte central da cordilheira de Thai. Lendas antigas dizem que Tisamir, a cidade oculta, foi construída pelos antigos anões.

Em um passado longínquo, houve algum laço entre os humanos e os anões. As relações formais, porém, deixaram de existir há muitos e muitos anos, sendo Tisamir o único lugar onde ainda existiam anões vivendo juntamente com humanos, ainda que poucos.

Nos dois dias de caminhada após a luta com os bestiais, Kyle esteve muito calado, pensando em como quase perdera a vida e em como tirara, com as próprias mãos, três vidas. Até aquele dia, só havia matado animais e, mesmo assim, nunca gostou de fazê-lo. Mesmo tendo aqueles bestiais o intuito de matá-los, Kyle sentiu-se mal por ter-lhes tirado a vida.

As imagens daquela batalha não lhe saíam da cabeça; recordava-se de cada momento, com todos os seus detalhes. Podia ver o olhar de ódio nos olhos vermelhos dos bestiais com que lutara. Lembrava-se do mau cheiro deles e principalmente de seu sangue escuro. Tudo parecia vermelho.

Naquela manhã, as mãos de Leivisa, a deusa da luz, já haviam trazido o sol. No entanto, o tempo foi-se fechando, ameaçando chuva.

Kiorina também não estava nada falante, algo fora do normal. Talvez porque ela acreditasse que, na verdade, a viagem seria uma aventura; depois, no entanto, de ter que lutar por sua vida, começou a sentir-se um pouco culpada pelo desejo de que coisas emocionantes acontecessem. Tinha saudades de casa e sentia-se mal por ter saído brigada com o pai. Lembrava-se da comida de Dora, de sua cama, das aulas e dos colegas da Alta Escola, até mesmo de Ector. Apesar de sentir-se assim, não dizia nada a seus amigos. Não queria que a vissem como uma garota fraca e mimada.

Archibald percebia que, cada vez mais, questões sem respostas surgiam em sua mente. Começava a ficar um pouco nervoso com o fato de não encontrar respostas para nenhuma de suas perguntas. Às vezes, desejava nunca ter deixado o mosteiro. Como não podia mudar seu passado, aceitou tal fato como uma oportunidade de crescimento, assim como considerava a viagem. Quando percebia seu próprio nervosismo, logo procurava controlá-lo, não permitindo nunca que durasse mais que alguns instantes. Se aprendeu algo em seu treinamento com os monges Naomir, foi a ter paciência. Ele quebrou o gelo:

- Vocês acham que será fácil encontrar esse tal Kivion?

- Ah, sim. Pelo que o mestre Heirich me disse, ele é bem conhecido em Tisamir.

Silêncio. Os três continuavam a subir a trilha por entre as montanhas, soprava um vento frio. O assunto ainda não rendia muito entre os três. Só depois de algum tempo, veio a réplica:

- É mesmo? O que faz esse Kivion em Tisamir? - Archibald insistiu no assunto.

- Ah ... não sei bem. Acho que ele é membro de uma comunidade de pensadores ou alguma coisa do tipo.

- Pensadores?

- Não, não é bem isso, foi outro termo que o Mestre usou, não me lembro bem. Mas o importante é procurá-lo no lugar que eles chamam de Academia.

- É verdade que Tisamir não tem um senhor, como o duque Dwain, em Kamanesh, ou o barão Fannel, em seu baronato? - Kyle intrometeu-se.

- Sim, a cidade é independente do Reino de Lacoresh e tem governo próprio. Parece-me que eles têm algo como um conselho de juízes. - disse Kiorina com um pouco de dificuldade, fazendo sinal para parar. - Vamos descansar um pouco...

**********

Finalmente, ao cair da tarde, a expedição liderada por Kiorina chegou aos arredores de Tisamir, o que ficou claro quando começaram a encontrar pessoas circulando pelas trilhas que levavam à cidade. De início, estranharam as vestimentas dos cidadãos de lá: longos mantos de cores fortes e chapéus de tecido, que cobriam suas cabeças. Avistaram um paredão vertical altíssimo, no qual havia um par de grandes gaiolas que subiam e desciam. Era uma montanha enorme, com paredes que se inclinavam negativamente e se pareciam muito com os bancos usados na Taverna da Lua, os quais eram como cilindros de madeira entalhados na lateral, lembrando a lua crescente e a decrescente, de um lado e do outro.

Ao encontrar os primeiros grupos, sentiram-se como verdadeiros estranhos, pois eram ignorados pelos passantes. Depois, Archibald lembrou-os de que fazia parte dos costumes do povo dessa cidade não fazer alarde com a chegada de estranhos. Provou isso quando perguntou a um passante sobre a cidade e ele lhe respondeu normalmente, sem ignorá-lo.

Para chegar em Tisamir, ainda seria necessário subir uma parede vertical de grande altura. Um feito difícil mesmo para os mais bem treinados na arte de escalar. No entanto havia um mecanismo construído pelos antigos, que levava as pessoas de cima para baixo e vice-versa.

Nesse ponto, foram abordados diretamente por guardas, que perguntaram sobre as intenções e a procedência do grupo. Foi-lhes pedido que deixassem suas armas antes de subir. Também deixaram sua mula em um estábulo que ficava por perto, e só então subiram.

Entraram juntamente com outras cinco pessoas numa espécie de gaiola, presa a uma série de cordas muito grossas, que subiam até o topo do paredão. Durante a subida, ficaram deslumbrados com a vista que surgia diante de seus olhos. Podiam ver os montes pelos quais passaram e, ao chegar perto do topo, puderam ver a floresta de Shind inserida no planalto de Or e as planícies do reino de Lacoresh. Aquela visão era tão ilógica que causou surpresa nos três: como poderia ser uma coisa dessas?

- Oh, Forlon! - murmurou Archibald.

Se eles conseguiam ver tudo aquilo dali, como seria possível que não vissem a montanha de lá? Ficaram quase como se estivessem em transe e assustaram-se quando o mecanismo parou, chacoalhando a gaiola em que estavam.

- Calma, forasteiros, não precisam se preocupar, o transporte é seguro! - disse um dos homens que subia juntamente com eles.

Só então deixaram de olhar a paisagem e olharam o homem. Ele se cobria inteiramente com um manto laranja, que só deixava o rosto de fora. Sua fisionomia era muito diferente do que estavam acostumados a ver em outros homens. Seu nariz era achatado, pele bronzeada, barba longa e lisa e olhos profundamente azuis. Ele sorriu e disse:

- Sejam bem-vindos a Tisamir!

Então o homem que estava na frente deles saiu com um dos braços erguidos a meia altura, mostrando a cidade. Foi difícil para os viajantes acreditar no que viam. Era uma escadaria levemente circular que descia por mais de trezentos degraus. Levava a uma cidade de arquitetura bem diferente do que haviam visto até então, inclusive das construções do reino vizinho de Homenase.

Apesar de, ao redor da montanha, a vegetação ser muito escassa, no seu interior havia abundantes jardins que se integravam às construções de forma harmoniosa. As casas, templos e torres eram todos construídos com as rochas da montanha e pintados com cores fortes e variadas e tinham formas geométricas as mais diversas. Talvez aqueles padrões geométricos fossem a única coisa familiar para eles, pois já haviam visto algumas peças de cerâmica produzidas em Tisamir sendo vendidas em Kamanesh. De início, ficaram atordoados com o resplendor da visão, mas o deslumbramento foi quebrado por uma voz de criança:

- Sejam bem-vindos a Tisamir! Meu nome é Hildo. Vocês já têm um guia? - disse um garoto que aparentava ter uns dez anos. Vestia camisa e calça cinza, amarrada na cintura por um cordão branco. Era quase careca, com poucos cabelos negros cortados rente à cabeça. Tinha pele bronzeada e olhos semitransparentes.

- Hildo, não é? - confirmou Kyle. - Será que você pode nos levar a uma estalagem para passarmos a noite?

- É claro, senhor... - o menino tinha um curioso olhar inquisitivo.

- Kyle, Kyle Blackwing. Esses são Archibald DeReifos e Kiorina de Lars.

- É um imenso prazer conhecê-los! - disse o garoto, fazendo um gesto de reverência.

- É bom conhecê-lo também, Hildo. - disse Kiorina sorrindo, mostrando que havia gostado muito do garoto.

- Então vamos indo! - disse Hildo já de costas, descendo a escadaria.

Desceram, deslumbrados com a beleza da cidade. Era uma vista tão bonita, que, naquele momento, esqueciam-se de todos os seus problemas. Archibald pensava no sotaque que as pessoas de Tisamir tinham. Achava engraçado como a mesma língua podia soar tão igual e, ao mesmo tempo, tão diferente.

Enquanto Archibald entretinha-se em seus devaneios, Kiorina puxava assunto com seu novo e jovem guia.

- Diga-me, Hildo, você nasceu aqui mesmo?

- Huh, huh! - disse, sinalizando positivamente com a cabeça.

- E você conhece algum anão?

- Huh, huh! - repetiu o gesto. - Tenho até alguns amigos entre os anões. - olhou para ela e perguntou: - Você nunca viu um anão?

- Já vi em livros, mas pessoalmente não. - disse, levantando os ombros.

- Se você quiser, eu lhe mostro alguns. Eles são poucos por aqui... - o garoto parou para cumprimentar um homem que subia. Fez um gesto com as mãos e disse: - Darnak, senhor!

- Darnak, Hildo! - respondeu o homem, que continuou subindo. Era alto, de pele clara, careca e calçava chinelos que subiam até as canelas, onde terminava seu manto branco. O que chamava mais a atenção era uma mancha no centro da testa, logo acima dos olhos. Uma bolinha vermelha.

- Diga-me, Hildo, quem era aquele homem? - perguntou Kiorina, interessada.

- O nome dele é Rainarg.

- Aquela mancha em sua testa quer dizer que ele é um vidente? - perguntou Kiorina, lembrando-se da vidente que ela e Kyle haviam consultado no festival em Kamanesh.

- Vidente? - disse Hildo, surpreso. - Vocês de Lacoresh têm cada idéia!

A mudança no tom de voz do garoto chamou a atenção dos outros dois, um que observava os jardins da cidade, outro absorto em seus pensamentos.

- Não, ele é um membro da Ermirak, por isso é que teve sua testa tatuada. - explicou Hildo.

- Quer dizer que ele é um membro da escola de Tisamir? - Archibald intrometeu-se.

- O que chamamos Ermirak não é bem uma escola, mas um conjunto de escolas.

- Quer dizer que vocês têm muitas escolas por aqui? - perguntou Kyle, enquanto amarrava seus cabelos.

- Ah, sim, todos em Tisamir recebem boa educação. - o garoto parou de descer os degraus e indicou com os dedos um conjunto de cinco construções proeminentes. - Aquelas são as cinco escolas, cada uma destinada a um tipo de conhecimento. - indicava com um gesto cinco palácios que se erguiam ao redor do bosque, no centro da cidade.

Archibald achava aquele lugar e seu povo fascinantes. Não compreendia por que, enquanto em seu reino o povo era deseducado e pobre, aqui todos pareciam educados e ricos.

Nesse momento, já haviam terminado de descer a escadaria e observavam que a cidade organizava-se em plataformas niveladas. Havia uma extensão de uma dúzia de casas e então um novo conjunto de lance de escadas que descia à altura de duas casas. Novamente, uma extensão de uma dúzia de casas e mais um lance de escadas. Isso se repetia por mais de dez vezes até o centro da cidade, onde havia um grande bosque.

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