Capítulo 1

Caro Kyle, 

Como vão as coisas aí em Kamanesh? Por aqui tudo segue bem. Estou-lhe escrevendo para dizer que finalmente vou ser ordenado monge da ordem Naomir e gostaria que você soubesse... Sei que já faz três anos que não nos falamos e, quando recebi a notícia de que seria ordenado, não tive vontade de falar isso para ninguém daí. Depois me lembrei de você e de como éramos amigos... É estranho como as nossas vidas tomaram direções diferentes. Há cinco anos, nem poderíamos imaginar o que aconteceria conosco. Mudando de assunto, como vai o grande Gorum? Continua pegando no seu pé? Eu... Kyle me desculpe, mas os sinos estão tocando e tenho que me apressar, devo aproveitar que a carroça da casa comercial Atir está saindo hoje em direção a Kamanesh para enviar-lhe esta carta. Na verdade, escrevi para saber se você vai realmente ser um cavaleiro. Você vai mesmo fazer isso só por causa de seu pai?

Aguardo resposta.
Archibald DeReifos

"Ah... Archibald, você tinha mesmo que ir... ficar por aqui estava insustentável." Kyle pensava, enquanto observava seu reflexo na fonte.
A cena era melancólica, assim como Kyle Blackwing, o filho do grande cavaleiro Blackwing, um dos maiores heróis da guerra dos bestiais. Sua lenda talvez crescera por ter morrido ao salvar o Duque. Assim, ninguém nunca pôde pôr em prova sua bravura novamente.
Kyle era conhecido na cidade de Kamanesh e, de certa forma, odiava ser filho de quem era. Nem chegou a conhecer seu pai, pois só nascera após o fim da guerra. Sua mãe morreu quando era um garoto; desde então foi morar com Gorum, um cavaleiro veterano, companheiro de seu pai na guerra.
- Kyle!
A inconfundível voz de Gorum soou como um trovão. Kyle não se moveu, parecia absorto em seus pensamentos. Sua imagem refletida na água parada revelava um jovem com expressão fechada e longos cabelos negros, que cobriam parcialmente sua face; suas mãos, apoiadas na borda da fonte, assim como seu corpo bem construído demonstravam que havia trabalhado duramente.
Gorum aproximou-se e, enquanto puxava a barba, sorria e observava Kyle, que, antes tão imponente, ao lado desse gigante transformava-se em um menino fraco. Depois de alguns momentos, Gorum aproximou-se, deu um tapinha no ombro daquele que considerava seu filho e disse:
- Vamos, garoto, anime-se! Afinal, o grande festival é daqui a apenas três dias; e então?
- Ah... não sei bem, não me sinto confortável com a idéia de vestir a armadura de meu pai e receber condecorações em seu nome...
- Garoto, você me deixa espantado! Como você pode recusar uma honra tão grande e deixar escapar a oportunidade de ficar elegante diante de todas aquelas lindas jovens? - replicou Gorum, com um incansável sorriso no rosto.
- Bah... Como você consegue pensar nessas coisas... - Kyle foi interrompido por Gorum, que completou:
- E a Kiorina? Ela vai estar lá!
- O quê? Fale sério! Aquela maluca? Nem acredito que ela conseguiu ingressar na Alta Escola dos Magos! - disse Kyle, com um tom de inquietação.
Gorum, ainda sorrindo largamente, insistiu:
- Beem, mas eu acho que ela está interessada em você.
- Beem, mas eu não quero falar sobre isso! - respondeu Kyle, imitando o tom de voz.
Gorum começou a gargalhar alto. Kyle, já sabendo que nada podia fazer, pôs as mãos sobre o rosto e balançou a cabeça negativamente. Depois de alguns momentos de espera, começou a desdobrar a carta de Archibald que estava lendo e isso chamou a atenção de Gorum, que, sério, perguntou:
- O que é isso?
- É uma carta de Archibald; ele está sendo ordenado Monge Naomir...
- Eu sabia que conseguiria, depois de tudo o que aconteceu com ele e... - Gorum olhou para baixo e não completou.
- É... tudo foi muito duro, mas por isso mesmo é que estou pensando em ir até o mosteiro e buscá-lo para participar do festival.
- Kyle, que bom! Isso quer dizer que você vai aceitar receber as homenagens!
Sem saída, Kyle respondeu:
- É... claro... quero dizer... é claro que sim; você duvidou disso?
- Nunca!
Gorum ainda pensou em dizer como ele era igual a seu pai, mas calou-se, pois sabia que o jovem Blackwing não gostava dessa comparação.
Logo, Gorum começou a sorrir novamente e fazer suas brincadeiras habituais. Saíram então caminhando em direção a Tanir, uma vila no caminho de Kamanesh.
Passaram pelo moinho e seguiram a trilha até Tanir cercados de infindáveis campos cultivados com grãos. No caminho, alguns camponeses e crianças reconheceram Gorum, o que não era difícil, mesmo estando ele com roupas comuns, e acenaram para ele, que sempre respondia com sua voz forte e um sorriso no rosto.

***

A cidade de Kamanesh havia sido fundada há mais de duzentos anos por um membro da família real, que decidiu deixar a capital do reino, Lacoresh. Seu nome era Forbald Kaman, primo do rei Corélius IV. Ele fundou, às margens do rio Montiguá, uma pequena vila, chamada Abilos, que veio a se tornar a grande Kamanesh anos depois. A cidade tornou-se a sede do Ducado de Kamanesh; no centro da Praça da Meia-Lua, foi erguida uma estátua em honra do velho Duque.

Logo pela manhã, a praça já estava cheia de pessoas indo e vindo, armando suas barracas, preparando-se para a feira da Meia-Lua, famosa em todos os cinco baronatos. O grande sucesso dessa feira devia-se ao fato de a praça estar junto ao porto de Kamanesh, de onde chegavam e saíam muitas embarcações pequenas e alguns navios.

Mesmo antes de o sol nascer, Kyle já estava na praça, comprando os mantimentos necessários à sua breve jornada no mosteiro onde seu amigo de infância Archibald DeReifos seria ordenado monge Naomir.

Os monges Naomir eram uma facção da Real Santa Igreja, da qual eram conhecidos como a força de trabalho. Ou seja, quando existiam serviços sagrados a serem executados, quem os executava eram os monges dessa ordem, treinados inclusive para lutar, se necessário. Também aprendiam os sagrados ofícios.

Kyle pensava como seria possível que alguém com o gênio tão tempestuoso como seu companheiro Archibald pudesse conseguir uma ordenação, já que eram fundamentais para os serviços sagrados a calma e a frieza. Mas os deuses sabem o que fazem, e provavelmente, seria uma experiência válida para ele, que talvez tenha, por fim, aprendido com os monges a ficar em harmonia com a vida.

Depois de uma hora, Kyle já estava na estrada para o norte, ao longo do rio, que levava ao mosteiro. A jornada fora tranquila, e ele pensou muito sobre tudo o que estava acontecendo e em quem ele estava para se tornar. Os sons de fora da cidade sempre faziam-no pensar melhor.

Finalmente, ao entardecer, Kyle avistou o mosteiro em cima de uma colina. Era uma construção realmente bela. A luz do sol poente refletida em cristais encravados nas altas muralhas dava àquela visão um toque especial. Kyle aproximou-se da grande porta do mosteiro e pôde ver que a muralha, os portões, as colunas, tudo era esculpido com motivos religiosos. Após observar os detalhes por alguns segundos, puxou uma corda que fez soar um sino. Em seguida, em uma das portas que ficava ao lado de um grande portal com mais de seis metros de altura, abriu-se uma janelinha na altura dos olhos de Kyle. Ele mal pôde ver os olhos de quem estava do outro lado.

- Quem é você e o que quer? - disse uma voz fraca e rouca.

- Meu nome é Kyle Blackwing. Vim para ver Archibald DeReifos.

- Entre! - disse a voz, enquanto destrancava a porta, fazendo muito barulho.Surgiu a imagem de um velho, com o rosto muito enrugado e feio, apoiando-se sobre um bastão.

- Entre... vamos... vai ficar aí parado, olhando?

Kyle ficou um tanto desconcertado, pois não esperava ver alguém tão feio. Ao entrar, perguntou:

- Diga-me, ancião, qual é o seu nome?

O velho olhou com seu único olho, fez uma careta e disse:

- Ancião? Mais respeito, meu jovem! Ah! essa juventude...

- Eh... desculpe-me... ah... quero dizer...

- Bem... Bem... Tudo bem. Meu nome é Ourivart.

Os dois chegaram a um jardim interno do mosteiro com uma fonte do tipo chafariz no centro, ricamente ornamentada.

- Sente-se aqui, sente-se aqui e espere. - disse Ourivart.

Kyle sentou-se, desprendeu a bainha de sua espada do cinto, colocando-a ao seu lado. Enquanto esperava, anoiteceu. Então, surgiram luzes das mãos de diversas estátuas que rodeavam o jardim e que ficavam suspensas nas varandas à sua frente.

Aquele lugar lhe fez recordar o bosque do Duque, atrás do palácio em Kamanesh, e como ele e Archibald, Archie, como costumava chamá-lo naqueles dias, roubavam frutas no pomar que ficava no centro do bosque. Era muito divertido e emocionante esconder-se das patrulhas e comer as frutas, que tinham um gosto especial. Gosto que Kyle nunca mais experimentou.

De repente, Kyle reparou que Archibald estava na sua frente. Surpreendeu-se ao vê-lo, após tantos anos, vestido daquela maneira: um traje completo de monge Naomir, com listras brancas e beges, manto e gorro peculiar. O rosto ainda era o mesmo. Os cabelos castanhos escapavam por todos os lados daquele gorro, que parecia desajeitado em sua cabeça. Havia algo diferente em seu olhar, uma certa maturidade talvez.

Kyle levantou-se imediatamente e estendeu a mão. Archibald não respondeu imediatamente; esperou. Kyle franziu a testa. Logo, Archibald estendeu a mão, deu um sorriso e colocou sua outra mão sobre o ombro de Kyle. Nada disseram por alguns instantes. Então, Kyle mentiu:

- Você ficou bem com essa roupa!

- Kyle, eu sabia que ia dizer isso, você não muda nunca! Sempre tentando falar a coisa certa da maneira errada! - disse Archibald, sorrindo e balançando a cabeça negativamente.

- Tudo bem, eu realmente achei que o chapéu ficou meio desajeitado...

- Ótimo, isso me parece mais verdadeiro!

Archibald começou a andar, gesticulou para que Kyle o seguisse e falou:

- Vamos! Conte-me as novidades! Você deve ter mais para contar do que alguém que raramente sai deste lugar.

- O que gostaria de ouvir?

- Fale-me sobre Gorum.

- Ah... Gorum continua daquele jeito, contando piadas o tempo todo e fazendo as pessoas rir... - disse Kyle sorrindo, pois o simples fato de falar sobre Gorum já era engraçado.

- E você, continuou o treinamento? - perguntou Archibald, mais interessado.

- Sim. Sabe como é Gorum, não consigo dizer não a ele, principalmente quando fala sobre meu pai...

- Mas você não parece muito feliz com isso... - disse Archibald, enquanto destrancava a porta que dava acesso ao refeitório.

Ao abri-la, ambos sentiram o cheiro da comida. Kyle, especialmente, não conseguiu conter um suspiro, pois estava faminto. Percebendo o silêncio de Kyle, Archibald disse:

- Pensei que você estaria com fome. Por que não aproveitamos para jantar?

Já havia muitos monges, acólitos e alguns visitantes no refeitório. Então, Archibald aproximou-se da mesa e apresentou seu amigo como Kyle Blackwing, filho do cavaleiro Blackwing. Todos o cumprimentaram. Sentaram-se então à mesa.

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