VERTIGEM

"Querido Diário, ouvi dizer que não devemos nos arrepender do que trouxe uma lição, mas e se essa lição possuir um preço caro?... Quão destrutível pode ser um bolinho azul?”

Na pele do rapaz com cabelo platinado, a palidez se torna ainda mais evidente, bem como os tremores que fazem seus membros sacudir. Talvez esta seja a primeira vez que se mostra arrependido de ter comido algo. A jovem Morrissette finalmente retoma seus movimentos, deixando a paralisia para levantar-se e correr euforicamente em direção ao banheiro do quarto. Com as duas palmas sobre a boca, não encontra tempo favorável de sequer fechar a porta que separa os cômodos.

A sudorese toma conta da pele do mais novo, o Williams sente seu corpo queimar por completo. Alguns sintomas do HIV assumem os sentidos do moço de olhos escuros. Ao ouvir o escandaloso som do vômito de sua amiga, sente uma ânsia envolver seu esôfago e estomago. Antes que possa autorizar suas ações, já ver-se levantando da cama e correndo em direção ao banheiro.

A adrenalina que havia experimentado antes regressa ao seu sistema, e ela o impulsiona sem deixar escolhas. Howard encontra sua amiga com o rosto quase enfiado no vaso sanitário enquanto expulsa tudo que tinha digerido recentemente. Constatando a impossibilidade dos dois vomitarem ali ao mesmo tempo, o jovem direciona seu corpo até a pia, esta tão branca quanto leite.

O que expele por sua boca tem um gosto ferroso, como se cuspisse sangue. Não consegue identificar o cheiro, mas este lembra algo pútrido. Recorre-lhe o medo de seus dedos quebrarem, de tanta firmeza que coloca ao segurar as bordas da pia. Entre as lágrimas evadindo de seus olhos, consegue discernir somente a cor azul-escuro escorrendo ao ralo.

Seus sentidos põem-se a tornar ao normal instantaneamente. A dor estomacal se arrefece e a ardência nos músculos também. Sente uma tontura, então segura com ainda mais força na pia. Fecha os olhos...

•••

Três anos atrás, o estudante de longos cabelos pretos caminhava em linha reta, sem rumo, por algum lugar do Oregon que não possuía conhecimento... Alguns dias antes, havia sido comemorado o seu aniversário. Três pessoas presenciaram a festa: Ronald Williams, o seu pai; Brian Lewis, seu primeiro melhor amigo; e ele mesmo, o pequeno Howard.

Uma grande dúvida permeava sua mente. Mesmo sentindo o amor dos dois por ele, o moço ainda se sentia como um fardo na vida deles. Não queria mais que seu amigo se visse forçado a fazê-lo sorrir todas as vezes que a tristeza se apresentasse. Sabia que jamais se tornaria um orgulho para seu pai, e não poderia se tornar uma decepção futura.

Ao ver somente os dois em seu aniversário surpresa, concluiu que não deveria mais ser uma pedra em seus sapatos. Teria que evitar o desapontamento. Levou alguns dias para resolver tal incógnita: ficar ou ir, o que traria mais arrependimento? No entanto, finalmente tomou coragem de enfrentar sua escolha...

Deixou de andar e só então constatou aonde sua caminhada automatizada havia o levado. Uma ponte, na qual transitavam alguns carros constantemente. A beirada do caminho parecia o convocar, e ele não se atreveu a negar o chamado. Não demorou em subir na borda alta que deveria servir para evitar algum acidente. Quanto tempo gastou no percurso até ali? Esqueceu-se de cronometrar, todavia não importava mais.

Observou toda a paisagem que o rodeava, ouviu algumas buzinas eufóricas, sentiu a brisa em seu cabelo e olhou para baixo. O movimento da água muito abaixo de seus pés o entorpeceu, uma tontura tomou seu corpo, o qual acabou desabando para frente.

Em algumas crises de ansiedade, sentia uma grande dificuldade em respirar, então, na sua concepção, afogar-se não deveria ser tão diferente. Entretanto, o destino traçou algo diferente para ele.

Uma mão macia segurou seus pulsos e rapidamente envolveu seu corpo pelas costas, impedindo que a queda acontecesse. O jovem Williams foi puxado para trás até que desceu do batente, e virou-se a fim de averiguar quem o tinha salvado enquanto sua visão embaçada tornava ao normal.

“O que estava pensando em fazer?” Indagou uma bela senhorita com cabelo longo em tranças, sua pele rica em melanina mostrava uma saúde exímia. Não houve outra resposta senão: “É meio obvio, não?” A moça não custou em compreender a situação e se pôs a pensar em frases de apoio.

“Tem certeza disso? Deve ter alguém te esperando, te procurando... As pessoas que te amam.” Ela ainda o segurava com intuito de servir como sustento em uma possível tontura, e para impedi-lo de fazer alguma besteira. Talvez fosse um tremendo erro dizer tais palavras a uma pessoa que não se sentia amada, mas isolada. Por sorte, não era o caso de Howard. “Estava fazendo isso exatamente por causa das pessoas que me amam.”

“Então eles querem que faça isso? Por que, com certeza, você deve ter perguntado, não é?” A interrogação irônica fez o rapaz perder a firmeza nas pernas, contudo encontrou apoio no abraço súbito da senhorita de gentileza imensa que completou: “Assim como quem nos ama vive pela gente, devemos viver também por quem nos ama.” A partir dali, a vida tomou outro significado ao jovem. Naquele dia, Howard ganhou uma melhor amiga, Mandy Morrissette...

•••

“Vertigem: atordoamento que faz sentir um movimento inexistente... A mente, muitas vezes, pode agir como a vertigem, fazendo-nos enxergar uma realidade traiçoeira. A solução vem com muito autocontrole, ou com a ajuda de verdadeiras amizades.”

A tontura do Williams se esvai junto com a água da torneira levando o vômito dele para o ralo da pia, e com a descarga limpando o vaso sanitário. Abre os olhos, então constata um braço ao seu lado e a mão do mesmo posta sobre o acionador da água.

— Você está bem? — A indagação requisita seu olhar, e este se dirige ao espelho à sua frente. No reflexo, fita a si mesmo e a amiga abatida. Os fios de cabelo em trança, que antes repousavam na cabeça dela, não mais ornamentam seu estilo, deixando o couro cabeludo exposto.

— Que droga foi essa? — O rapaz inquere quase em um sussurro. Sem demora, junta as mãos para pegar um pouco da água jorrando da torneira e molha seu rosto. Também coloca um pouco dela na boca no intuito de cessar o gosto horrível experimentado.

— Essa é uma boa questão... — pronuncia massageando as costas do amigo. — Que droga tinha naqueles bolinhos?...

— Bem... — Howard pondera suas futuras palavras, então dá espaço para a senhorita lavar a face também. — Só espero que não seja algo que vicie, porque meus medicamentos já são drogas suficientes.

— Vomitamos quase até as tripas..., isso deve resolver qualquer vício. — Assim que a moça enxuga a cara, sua mente estala em uma lembrança. — Bri!

Com a exclamação servindo como deixa, e um barulho reconhecível soando como chamado, os dois se retiram do banheiro às pressas. Encontram o rapaz de cabelo platinado vomitando, o corpo volumoso de bruços sobre a cama, e sua cabeça para fora da mesma. Expulsa todos os doces que havia comido recentemente. Os que observam a cena apresentam um irrefutável espanto ao visualizar o aglomerado azulado se espalhando pelo chão.

— Ajuda ele, rápido! — Mandy ordena como uma líder.

Howard corre até seu amigo de pele pálida e corpo trêmulo. Segura os ombros do Lewis por trás esperando estabilizá-lo e trazer tranquilidade. Enquanto isso, a moça afasta o carpete preto que jaz ali perto e põe-se a abanar o jovem com as mãos. Por causa da hipoglicemia, a qual está ligada diretamente a alimentação, vomitar tem um efeito pior no Brian, pois ele perde a glicose que estabiliza seu organismo.

— Bri, expira, inspira. — O Williams usa sua voz para acalmá-lo e mantê-lo acordado também. Perderam as contas de quantas vezes o moço já desmaiou por carência de açúcar no sangue. — Estamos aqui com você.

 — Obrigado, gente — sussurra o debilitado. Respira fundo e toma impulso com os braços na intenção de afastar-se da borda do acolchoado. Recebe apoio do amigo em se posicionar sentado na cama unida àquela em que estava. — Primeira vez que meu estomago rejeita doce...

— Howard, ajude-o a comer alguma coisa. Tenho que limpar este vômito antes que ele nos mate, asfixiados... — A Morrissette mostra mais uma vez sua liderança e se dirige ao banheiro.

— Gostando de ser um jovem normal? — Com sarcasmo, indaga o mais novo ao vasculhar os bolsos apertados do amigo.

— Ha, ha, ha! — Reproduz uma risada inegavelmente irônica em reposta. — Jovens normais... não vomitam por causa de um bolinho.

— Quase desmaiando e ainda encontra forças pra ser irônico? — Pega duas barrinhas de chocolate, retira uma do invólucro e entrega ao Lewis debilitado.

— Assim que eu terminar isto aqui, vamos embora — dita a mais velha, regressando ao quarto. Com um rodo e pouca água, ela se põe a puxar a fedorenta mistura vomitada no chão, conduzindo-a até o banheiro. — Tenta melhorar logo, Brian, precisa ligar para sua mãe vir nos buscar.

— Ela não pode saber de nada que rolou aqui — alerta assim que engole o último pedaço da segunda barrinha. O açúcar parece lhe conceder mais saturação e devolve gradativamente seus sentidos.

— Nem nós sabemos ao certo o que aconteceu aqui... — Howard reflete, observando o aglomerado azul que é levado pela amiga.

— Comemos bolos estragados e amassados pela bolsa da Mandy. Foi isso. — O de cabelo platinado comenta com obviedade.

— Ou era real o boato da droga nos cupcakes — retruca aquela ainda dentro do banheiro.

— Se for isso, muito obrigado, Deus, por nos ter feito vomitar. — O rapaz mira seus olhos verdes no teto ao agradecer.

— Amém. — Os outros dois pronunciam, a moça, em tom mais alto.

“Uma vez perguntei ao Brian por que também agradece pelas coisas ruins. Ele disse que coisas boas nos fazem bem, mas são as ruins que nos obrigam a melhorar.”

— Se chegássemos drogados em casa, provavelmente seriamos deserdados e iriamos morar embaixo de alguma ponte — diz o Lewis, exagerando no drama.

— Tudo certo — a Morrissette retorna até eles com a peruca de tranças posta outra vez sobre sua cabeça —, já tá na hora de ligar para Branca vir nos buscar.

— Ok. — Os dois amigos levantam da cama e se aproximam mais da moça. Assim, os olhares se voltam ao celular em que o adolescente caça o contato de sua mãe.

No entanto, antes que ele conclua sua procura, algo preocupa a prudência do Williams:

— Estão ouvindo? — cochicha a indagação como se estivesse sendo observado. Logo recebe dois olhares de negação e estranheza misturadas. — Escutem direito.

Em uma escola tão grande, cada parte sua parece manter uma distância considerável em relação às outras. O silêncio que reverbera entre eles exemplifica isto com perfeição, uma vez que a poluição sonora do salão festivo não ousa sequer chegar ali. Ainda assim, não dariam tanta atenção ao som remoto quando um barulho mais próximo reivindica a audição deles.

— Perece com... — A senhorita tenta identificar o som que aumenta.

— Um gemido — completam os outros dois.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top