MILAGRE
“Querido Diário, o mais perto que cheguei de milagres foram os dias em que eu poderia ter morrido, porém fui salvo... Mesmo não acreditando tanto, acho que preciso de mais um.”
— Sai de cima de... — Antes que o inútil apelo de Howard se conclua, o zublye é arrebatado de modo brusco, sendo jogado para trás.
— Levanta! — A voz firme e aveludada furta automaticamente o olhar do moço deitado. — Vai ajudar o Bri.
Tenta forçar os músculos a erguerem-no, então pisca os olhos induzindo sua visão a alcançar um melhor foco. As pálpebras se arregalam e as pernas tremem em um misto de choque com felicidade ao avistar seu suplicado milagre.
Mandy Morrissette aparenta procurar algo em seu campo de visão. Entretanto, Howard não se oferece o tempo de entender a ditosa presença da amiga e sua linda bolsinha preta. Corre na direção de Brian Lewis e se abaixa próximo a cabeça dele, a qual arrisca elevar com dificuldade.
— Amigo, acorda! — Bofetadas leves são desferidas no rosto pálido. Inquire à mais velha: — Como, como você está aqui?
— Depois explico — a moça com tranças longas se atenta ao jovem infectado, do qual as funções não custam em retomar —, preciso dar um jeito nisto aqui.
Recusando a chance para que ele se recomponha, a senhorita desfere alguns socos rápidos no aluno que torna a desabar, dessa vez, desacordado. O jovem Williams cessa sua atenção na cena intensa ao perceber que a lutadora com curto vestido preto tem tudo sob controle. Só então, nota que ainda bate no rosto de seu amigo, aumentando a força como se imitasse os murros violentos assistidos.
— Acorda, Bri! — Seu chamado finamente desperta o platinado.
— Eu não morri..., né? — A pergunta expira sem resposta. Howard o deixa ali deitado com a parte superior do corpo ligeiramente erguida. Apressa-se em busca de algum alimento para reter a necessidade do amigo. Abre a geladeira e transita os olhos escuros pelas opções.
— Maracujá ou ameixa? — indaga o mais novo.
— Maracujá. — A voz ainda vacilante.
— Essa foi por pouco — declara ao se aproximar. Entrega a caixinha de suco junto com uma barrinha de chocolate que encontrou em alguma das prateleiras. — Muito pouco...
— Vamos sair daqui logo, apressem-se. — Mandy se apresenta ali de modo súbito, assustando o Lewis, o qual sobressalta e põem-se sentado.
— Espera, eu morri ou não? — Brian refaz sua questão com os olhos verdes arregalados e arranca sorrisos mínimos dos outros dois.
Aqueles que se encontram de pé agacham-se o suficiente até poderem selar o abraço triplo com o jovem ainda debilitado. Cheiro de suor inibe o fato de terem usado perfume nesta noite. Os músculos hesitantes arranjam forças para mantê-los ali, unidos. Olhos se inundam, e a garganta arde, mesmo que a emoção predominante seja o alívio.
— Estamos vivíssimos, por algum milagre — sussurra a mais velha, a qual não desfaz o semblante preocupado, embora tente mascará-lo. Os saltos pretos ainda jazem pendurados em seus braços, quase como uma nova forma de usar o adereço. Parte da barra de seu vestido agora envolve sua mão direita, a qual foi mordida.
Passados alguns incontáveis segundos, o abraço é rompido, e a moça recebe do amigo o mesmo tipo de mantimento que os dois outros já possuem em mãos. Então, acomodam-se no piso de cerâmicas branca e preta.
— Saúde... — Encostam as caixinhas de suco umas nas outras enquanto proferem em uníssono.
Bebem o que parece agir como um sedativo, sem muito açúcar e com efeito tranquilizante. Resultado do maracujá ou, quem sabe, seja devido ao mínimo conforto encontrado. Como se pudessem sentir novamente a vida os preenchendo, negando todo o lado ruim dela. O péssimo gosto que se assentava no paladar dá lugar ao adocicado sabor do chocolate.
“Um pedaço do paraíso neste inferno.”
— Sei que estão curiosos, então vou explicar. — A Morrissette quebra o silêncio ao encarar a ligeira indiscrição dos amigos. — Logo depois de vocês descerem pelas escadas, comecei pensar em alguma forma de... me matar... Não queria me transformar num deles.
Indica, com a cabeça, o rapaz infectado que ela desacordou e prendeu em uma das estantes, usando sua peruca de longas tranças para isso. Os outros dois se surpreendem uma vez mais com a capacidade da senhorita sem cabelo, ao mesmo tempo em que transparecem sentir muito por terem a deixado.
— Não tive tempo pra pensar na melhor morte, pois comecei a passar mal — continua, sem saber onde focar seu olhar penoso. — Por um momento, achei que fosse a infecção começando a agir, mas me lembrei de já ter passado pela mesma situação antes, quando comemos o cupcake... Aconteceu exatamente igual e, como antes, também vomitei aquele troço azul.
— Então... — Howard toma a linha de raciocínio. — Uns se transformam e outros não.
— Mas por que nós? Por que nós não nos transformamos?
— É só pensar como a infecção. — Vagamente, responde a questão da moça. Brian mantém-se calado, talvez ainda debilitado para ponderar tanto. — Se você fosse um parasita ou algum vírus, gostaria de habitar num corpo... como o nosso? Nem nós mesmos gostamos disto, imagine uma contaminação apocalíptica.
— É isto então? Somos imunes aos zublyes? — O moço com hipoglicemia indaga, fazendo-os adotar o silêncio que não perdura muito. — Finalmente vi vantagem nisto.
“Existe somente uma semelhança entre cada ser humano: somos todos diferentes uns dos outros. A diversidade é vantajosa por ser a única coisa que nos une... Ao menos na teoria.”
— Tomara que realmente sejamos imunes, mas lembrem da namorada do Josh Gray e dos corpos no corredor — retruca a jovem ao deixar de lado o que comia. — Eles não foram infectados, foram comidos.
— Talvez só fossem mais apetitosos... — Tal comentário leva os olhares franzidos para o Lewis. — Desculpa. Minhas piadas nem sempre têm graça quando estou nervoso.
— Vamos sair logo daqui, senão ficaremos loucos ou morreremos. Ou ficaremos loucos e morreremos. — Howard levanta-se com cautela. Antes de se pôr de pé, averigua todo o refeitório através da grande janela envidraçada. Também olha o zublye desmaiado a poucos metros. — Você já está melhor, Bri?
— Eu diria que uns setenta e sete por cento — revela o de cabelo platinado que recebe ajuda do menor para levantar seu corpo pesado. — Mas não sei se tenho força pra derrubar esta porta.
— Não vamos sair por ela. — Mandy refuta já de pé também. — Abri-la faria muito barulho, e depois dela ainda há o almoxarifado, o que nos daria mais uma porta como obstáculo antes de conseguirmos sair.
— Mas esta é a saída mais segura — contesta o mais velho entres os rapazes.
— Na verdade, só pude chegar até aqui por que os corredores estavam vazios. Sem zublyes, pelo menos neste andar. — A moça percebe gerar curiosidade. De repente, ela apresenta ainda mais aflição em seu semblante. — Acho que... isso foi graças ao... Stephan Golding.
A revelação fisga o olhar do moreno com cabelo emaranhado. A angústia, que ainda não havia o deixado, parece retornar aos seus sentidos. Os orbes pretos marejam, assim como todo seu corpo magro transpira. O Williams tem seus tremores amparados por mais um abraço dos Zumbis.
— Ele é um herói — afirma em um murmúrio. — Levou todos ao andar de cima.
Howard questiona a si mesmo se seria egoísmo pedir ao universo por mais um milagre. Em seguida, sua mente avalia a insensatez de tal súplica, uma vez que, teoricamente, o Golding precisaria possuir algum tipo de doença rejeitável pela infecção. É como esperar e implorar que o raio caísse mais uma vez no mesmo lugar.
Não conquista a consumação do desejo, todavia cativa a empatia climática. Plagiando as suas lágrimas, uma inesperada chuva faz reverberar sua mórbida cantiga de ninar. Sem trovões, relâmpagos ou raios, somente o sonoro choro das nuvens. Tudo isto para imitar o taciturno lamento do jovem que inibe os tempestuosos gritos internos, os quais não pode externar.
— Estamos aqui com você — assegura o Lewis, quem sabe, na incerteza do que dizer em tal momento.
Incalculáveis segundos depois, o trio constata que o jovem infectado começa a despertar do desfalecimento, bastando apenas que ouçam o som baixo emitido.
— Muito obrigado, gente. — O mais novo é quem profere a deixa para que possam cessar o abraço. — Agora vamos nos apressar.
Assim fazem, não demoram em retirar-se na direção da saída, contudo, antes que deixem a cozinha, averiguam o rapaz caído e amarrado junto da estante, o qual recupera aos poucos seus sentidos. Enorme e bem iluminado, o refeitório se projeta na frente deles quando atravessam a porta escancarada. Poucas foram as vezes em que estiveram naquele local, entre seus colegas de classe. Não precisavam de mais companhias senão as dos Zumbis, pelo menos, era isso o que contavam às suas psicólogas quando o assunto era socialização.
“Como sempre, sozinhos, pois a presença dos outros nos é ameaçadora... Agora mais que nunca.”
Com passos cuidadosos e rápidos, caminham entre as mesas grandes. No entanto, não se atrevem em se aproximar do corredor de saída, pois estacionam subitamente assim que ouvem o barulho de rosnados ecoando dele. Cada vez mais altos e, inegavelmente, mais chegados. Entre a cruz e a espada, jazem sem ideia de qual rumo tomar.
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