CICATRIZES E CUPCAKES
“Todos temos algo a esconder, usamos uma máscara, entretanto, em algum momento, ela cairá, e os segredos deixarão de ser secretos... Mesmo que não devessem sequer existir.”
— O que. Está. Acontecendo. Aqui? — A indagação de Brian confirma o fato de ele e Mandy estarem presentes, isso depois que a moça tomou a atenção dos jovens, os quais se lançaram da mesa.
— Nó-nós... — gagueja Howard, indicando ele e o rapaz atlético ao seu lado.
— Vo-vocês... — balbuciam em uníssono os dois intrusos com os olhos arregalados. Seus neurônios devem estar organizando as informações para que possam compreender o episódio.
— Não é nada do que estão pensando! — Stephan dá um passo à frente e apanha seu terno, assim como o Williams, a sua jaqueta.
— Mandy, você viu eles se beijando loucamente em cima da mesa, ou foi só eu que pensei ter visto isso? — O nervosismo do Lewis dá lugar ao seu humor sarcástico.
— Foi exatamente o que eu vi — confirma a Morrissette, cruzando os braços.
Um instante de silêncio se prolonga, fazendo o batucar dos corações dos flagrados retumbar. Recolocam suas vestes rapidamente, como se o tecido encobrisse o segredo que mantiveram por tanto tempo. O Golding suspira e toma a palavra:
— Vocês não podem fal...
— Relaxa. — O moço de cabelo platinado e corpo rechonchudo intervém na fala do loiro. Em seguida, recebe em mãos a pequena bolsinha escura que sua amiga lhe direciona.
— Não vamos contar nada a ninguém. — A moça mostra empatia. Ajeita sua peruca desarrumada e puxa mais para baixo a barra do curto vestido preto, a fim de que ele retorne ao lugar.
— Stephan — quem requisita os olhares é Howard, com um semblante inseguro que tenta maquiar usando convicção —, pode nos deixar a sós?
O capitão leva um tempo para entender em meio ao choque do ocorrido, então responde:
— Sim, sim, claro... — Congela seus orbes azuis nos olhos escuros do mais novo, como se quisesse ter certeza que tudo está bem. Desvia o olhar aos dois outros Zumbis, e, sem mais delongas, retira-se do recinto fechando a porta atrás de si.
— E-eu... Me descu... — O jovem portador de HIV tem a fala interrompida pelo abraço súbito de seus amigos.
— Vimos seu chamado pelo idlaH — relata a mais velha, ainda mantendo o abraço triplo —, corremos seguindo o indicador de sua localização...
— É, mas o rastreamento parou de repente e tivemos que procurar em quase todas as salas aqui por perto. — A revelação de Brian cessa o gesto de afeto.
Pondo as palmas nos bolsos, Howard sorri ao entender finalmente por que pareciam tão ofegantes e suas roupas se mostravam desarrumadas.
— Quando Stephan me encontrou, o chamado de alerta cessou sozinho — declara o mais novo, afastando-se ao pousar sua mão esquerda na nuca.
— E então, o que aconteceu aqui? — Mandy logo constata as ataduras e faz menção as mesmas.
— Do começo até a parte da agarração...
“A vida é recheada de desafios, momentos tristes, fardos pesados, acontecimentos ruins e notícias péssimas... É aí que podemos contar com os amigos, com os verdadeiros.”
Antes de começar o relato, o jovem propõe que saiam do laboratório, e, assim, o fazem. Enquanto andam, sem rumo, pelos corredores, o Williams se põe a narrar os últimos acontecimentos. Explica com os mínimos detalhes dentre às interferências de surtos do adolescente com olhos verdes, os xingamentos da moça e os instantes de silêncio profundo.
Andam muito antes de encontrarem, sem perceber, a porta do cômodo que consideravam um refúgio, seu quarto.
—... Não lembrei que Stephan também possuía o idlaH — esclarece o menor assim que entram e se deparam com as três camas —, então ele me encontrou, e o rastreamento foi desativado. O resto vocês já sabem... Espero ser perdoado por ter dividido nosso aplicativo particular com ele...
Howard senta na cama do meio e desce a visão até seus sapatos pretos. Os outros dois permanecem de pé, lado a lado, mantendo o suspense após o Lewis trancar a porta.
— Tá zuando, né? — indaga com os braços cruzados Mandy Morrissette, tomando a atenção do menor, o qual percebe seu sorriso mínimo. — Você está pegando o cara mais popular da escola sem nos contar e acha que vamos nos ressentir com o fato de ter compartilhado um aplicativo?!
Sua exclamação altiva o deixa confuso, principalmente por mostrar felicidade e indignação ao mesmo tempo.
— Quando iria nos contar?! — O de cabelo platinado requisita a empolgação.
— Desde quando estão juntos?!
— Ou vocês só se pegaram hoje? Depois que ele percebeu seu charme...
— Um momento! — Howard intervém na metralhadora de perguntas. — Vocês estão indignados comigo ou felizes por mim?
— Óbvio que estamos felizes! — A jovem portadora de câncer já não mais exibe sua pose embravecida.
— Agora conta tudo! — A exclamação de Brian serve como deixa para juntarem duas camas e sentarem em um círculo animado, o qual depressa encontra a seriedade.
— Bem... — Arruma seu cabelo preto que alcança os ombros, livra sua visão dos fios que insistem em atrapalhá-la, respira fundo e toma coragem. — Tudo começou quando aquelas montagens que fizeram de mim chegaram até meu pai. Sabem o quão difícil foi... Só não deixei saber que eu quase tentei mais uma vez.
Pousa as mãos em seus próprios pulsos cobertos pela jaqueta preta. No mesmo instante, Mandy o entende e tampa a boca como se impedisse um grito. O tecido oculta suas cicatrizes, lembranças de um passado obscuro, marcas dos cortes que fazia quando se sentia morto demais para continuar vivo...
•••
Com 15 anos, Howard Williams constatou que a dor física podia, por alguns instantes, fazer-lhe esquecer da dor psicológica. O tratamento do HIV não estava fácil e o preconceito que sofria o fazia sofrer ainda mais. Os leves talhes em seus pulsos lhe pareciam quase satisfatórios. Ver o sangue escorrer lembrava-o a extração do veneno de uma cobra. As mangas longas se tornaram suas companheiras fiéis após o primeiro corte.
Assim, continuou, buscando sentir a dor como a certeza da vida, enquanto viver lhe semelhava a dor da morte. Foi então que, meses depois do primeiro corte, no banheiro da escola, suas lágrimas o fizeram pensar algo: “Se a cobra não possuísse veneno, ela poderia ser como qualquer outro animal”.
Respirou fundo, segurou firme o estilete que já se mostrava banhado em carmesim e o pousou no próprio pescoço. Quem sabe se extrair todo seu sangue seria a solução? Não era ele que levava o maldito vírus? Os pensamentos da criança ressoavam, assim como o som da água da torneira caindo na pia.
“Não faça isso.” Outro garoto entrou no banheiro. “Por que não? Estou apenas fazendo um teste...” Howard sempre recordaria aquele dia, de cada sílaba dita no banheiro, pois foi como renascer.
“Eu já fiz o teste, morrer não é nada legal... A comida do céu não é muito boa, por isso voltei.” As risadas que se sucederam fizeram o menino de cabelo preto esquecer totalmente qualquer dor. A partir dali, não precisaria mais do estilete, apenas daquele garoto rechonchudo de olhos verdes que o fez sorrir e o salvou. Assim, o pequeno Howard e Brian Lewis se tornaram melhores amigos...
•••
— Você tentou se matar?! Por que não dividiu o fardo conosco, como sempre fazemos? — O jovem de cabelo platinado indaga, segurando os ombros do mais novo. — Por que não nos falou nada?! Somos seus melhores amigos!
— Eu queria... — O adolescente de íris escuras abaixa a visão. — Mas achei que era um peso que precisava carregar sozinho, então percebi ser demais para mim. Eu ainda estava pensando em... como seria uma boa forma de morrer. Foi quando Stephan Golding surgiu em minha vida e, de alguma maneira, despertou em mim um grande anseio por viver, um anseio por ele... Então está tudo bem agora.
— Tudo bem? Tá tudo ótimo! — Brian exclama. — Você foi do possível suicídio a ser o amante do cara mais desejado e popular da escola!
Gargalham até seus pulmões pedirem misericórdia.
— Mas eu não sou amante, sou namorado — debocha com orgulho, Howard. Assim, prosseguem nas risadas, sentindo a barriga começar a doer.
— Tenho uma confissão a fazer. — Mandy Morrissette recupera a seriedade para continuar. — Uma vez encontrei seu diário aberto, sem querer, li um pouco e...
— Você leu que parte?! — O mais novo alteia a voz.
— Ela, eu não sei, mas eu li ele todinho... — A serenidade irônica do rapaz com hipoglicemia furta a atenção daqueles que expressam incredulidade. — Que foi?! É meu melhor amigo! Passa mais tempo escrevendo aquilo do que conversando comigo. Eu preciso entendê-lo, saber pelo que está passando!
Tornam a sorrir enquanto o Williams balança a cabeça negativamente, então a senhorita retoma a palavra:
— Então agora finalmente sabemos quem é o “Olhos Azuis” a quem você tanto se refere no diário.
— Usei esse apelido pra que ninguém descobrisse nossa relação se, por acaso, alguém pegasse meu diário. — A última parte, Howard esbraveja com repreensão e certo humor.
— O que importa agora é que um de nós está namorando! — O de cabelo platinado se joga para cima dele e o abraça.
O moreno conhece seu melhor amigo mais do que a si mesmo, entende que aquele abraço não é apenas um “estou feliz por você”, mas também um “me desculpe por não tê-lo ajudado quando precisou de mim”. Um pedido de desculpas que não verbalizaria com intenção de não remoer uma dor do passado.
— Meus parabéns, senhor Golding. — Ao pronunciar, Mandy se junta ao abraço, apresentando o mesmo intento do outro. Seu comentário proporciona risadas que logo cessam quando tornam aos seus lugares nas camas juntas. — Precisamos comemorar isso com um brinde!
— Obrigado pela empolgação, gente — o mais novo agradece a animação que insiste em lhe contagiar —, mas não estou com muita vontade de voltar para aquele aglomerado de adolescentes que já devem estar todos bêbados.
— Acho que tenho algo aqui... — Brian força a mão dentro do bolso de sua calça. O visível esforço que faz gera expectativa. — Só um momento...
Seja lá o que tenta retirar, proporciona certa dificuldade. Assim que sua palma fechada se mostra outra vez, ela abre e apresenta alguns doces amassados. O semblante convicto do rechonchudo se desfaz ao constatar as expressões de incerteza e julgamento dos outros.
— Se não querem, sobra mais pra mim — conclui e coloca uma das guloseimas na boca após tirar do invólucro.
— Bem que sua mãe disse que garotas são mais responsáveis... — A Morrissette enuncia com mistério enquanto toma para si sua bolsinha que está ali sobre a cama também. — Estavam quase acabando, então peguei três pra que pudéssemos experimentar...
A moça de pele rica em melanina retira da bolsa três coisas envolvidas por guardanapos. Entrega um a cada amigo seu, e os rapazes não demoram em descobrir o que é.
— Cupcakes! — Bri exclama com a boca já livre do doce que mastigava antes.
— Espera! — Receoso, Howard Williams interfere na ação dos outros dois. Antes de se explicar, fita uma vez mais o pequeno bolo azul em suas mãos. — Victor, ele contou sobre um boato de que esses bolinhos foram encomendados pelo Josh, e que o mesmo poderia ter colocado algum tipo de droga neles.
Segundos de silêncio são cronometrados pela mente do jovem de dezoito anos, até que seu amigo toma a palavra:
— Vocês perceberam se alguém parecia chapado?
— Só vi aquele grupo no corredor quando estávamos procurando o Howard — lembra a moça de íris cinza —, eles pareciam drogados.
— Sim, mas eles também estavam literalmente fumando, então não contam. — A entonação humorística do comentário restaura um clima sem a tensão do assunto: drogas. — E então?
O rapaz Lewis leva seu pequeno bolo até o meio do trio sentado, como se sugerisse um brinde. Seguindo a deixa, os outros dois o imitam.
— Saúde! — pronunciam em uníssono. Os dentes ilustrando os sorrisos que exibem.
Mordem a massa azulada com muita vontade. Uma explosão de sabores envolve a língua deles. É como sentir um beijo. Sem gosto esquisito ou resultados colaterais, apenas um incrível sabor. Voltam a conversar enquanto terminam a degustação. Fazem algumas piadas sobre efeitos de drogas e tornam a falar do namoro do mais novo.
“Dizem que a vida é uma escola, mas não uma pública e sim uma particular... Para aprender é necessário pagar um preço, o qual, na vida, não se sabe quão custoso pode ser.”
Não mais que quinze minutos se passam até a barriga de Brian emitir um som engraçado que os faz rir. Posteriormente, Mandy coloca um das mãos entre os seios e pressiona a outra sobre a boca, assim, paralisa de repente. Howard sente seus nervos arderem violentamente. Os olhos dos três Zumbis tremulam na incerteza de qual preço teriam que pagar em seguida.
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