0.1

O caminho até a morte pode ser doloroso, e não existe um “mas” após isso.



A luz da lua caía sobre as ruas estreitas naquela madrugada de outono.

As casas similarmente construídas em alvenaria contrastavam com o piso de tijolos escuros que asfaltavam as vias. Os postes tentavam fazer o trabalho de ajudar na iluminação, mas a falta de cuidado e conserto por parte governamental acarretou em alguns possuindo suas lâmpadas falhando ou já totalmente apagadas.

Tudo parecia contribuir para o terror daquela noite.

Don Roman não era lá o lugar mais indicado para alguém estar vagando fora de casa após o breu noturno cobrir cada canto da cidade. Pelo menos, não depois do número alto de ataques que passaram a ocorrer nos últimos anos, espalhando o assombro na população que não sabia se tantas mortes cruéis eram de fato causadas por ursos.

Um toque de recolher foi adotado e chegava a ser considerado crime a quebra deste, entretanto, a juventude era conhecida por seus atos rebeldes.

Foi a rebeldia que atiçou Yeoreum a pular a janela do próprio quarto quando a casa silenciosa indicou que o restante da família já dormia. Foi convidada para uma festa e a jovem não queria perder a oportunidade de finalmente beijar Henry Parker, o filho do delegado.

Sequer pediu permissão para os pais, sabendo que seria negado e ainda escutaria infindáveis discursos sobre como a cidade andava perigosa naquele horário.

Então, fugiu, sem grandes empecilhos.

O relógio marcava quinze para às uma da madrugada quando Yoongi foi acordado pelo incômodo da bexiga apertada. Após sair do banheiro no corredor estreito, impediu seu corpo de prosseguir até seu quarto quando os olhos cruzaram a porta fechada do cômodo privado da irmã mais nova.

Passava o dia trabalhando na fábrica de tecidos no centro comercial e, quando chegava, raramente encontrava a garota fora do quarto. Era uma jovem que gostava de estudar, já que planejava fazer faculdade na capital do país, ele e os pais falavam com orgulho. Por isso, evitava incomodar ou atrapalhar os estudos de Yeoreum.

Mas, como em outras noites, sentiu necessidade de ir até a menor e vê-la.

Reconhecia que ultimamente estava muito ausente como irmão mais velho e, da forma que podia, tentava consertar isso. Como entradas furtivas no quarto de porta branca, com o intuito de verificar o sono alheio e finalizar com um beijo casto na testa límpida.

Os pés se moveram lentamente até seu mais novo destino, evitando fazer barulho que acordaria não só a caçula da casa como os pais no cômodo próximo. Também foi cuidadoso ao adentrar o espaço tomado pela cor rosa e um cheiro doce característico do ambiente bem cuidado, espremeu os olhos ao fitar a cama de solteiro e avistar um relevo coberto pelo lençol aconchegante.

Batucou os dedos na maçaneta, satisfeito apenas em ver a irmã, entretanto, a mente ficou inquieta e uma sensação estranha circulou em seu corpo, como uma premonição de que algo estava errado.

Bocejando, se aproximou do móvel acolchoado e se inclinou sobre o que deveria ser o corpo adormecido de Yeoreum, saltando assustado ao encontrar um amontoado de travesseiros servindo como distração.

O coração pareceu parar um milésimo antes de ricochetear com força sua caixa torácica. A confusão sendo substituída pelo medo e raiva pela notória escapadela da irmã.

— Droga, Yeorie!

Praguejou enquanto disparava para fora do quarto e buscava o seu para vestir o tronco despido e calçar os pés livres de qualquer proteção, como gostava de ficar em seu descanso. Jogou um casaco contra o ombro direito no momento exato em que a mãe pisou na entrada do cômodo, preocupada com a movimentação do primogênito.

— O que está fazendo? — quis saber, vendo o rapaz apressado em amarrar os cadarços da bota escura. — Aonde pensa que vai?

— Yeoreum saiu.

— O quê?! — Se olhassem bem, teria como visualizar a alma saindo do corpo de Hyejin naquele instante.

— O quarto dela está vazio e tinha travesseiro embaixo dos lençóis, ela deve ter fugido para algum lugar — respondeu, se apressando para o corredor com a mulher desesperada em seu encalço. — Vou até a casa dos Foster, talvez ela esteja com a Julli. É a melhor pista.

— Você não pode sair sozinho por aí, vou chamar seu pai!

— O chame para lhe fazer companhia, ele ainda está reclamando de dor na coluna — contrapôs, tremendo um pouco ao destrancar a porta de entrada. O frio lhe atingiu antes mesmo de colocar os pés para fora da residência. — É bom que tenha alguém em casa, caso ela retorne enquanto a procuro.

— Meu filho, por favor, tenha cuidado — pediu, dividida entre impedir que Yoongi saísse das paredes seguras de sua casa ou apoiar aquela ideia de buscar pela irmã fujona.

Não que pudesse cumprir a primeira opção, notou ao assistir o moreno dar passadas rápidas pelas ruas vazias do bairro nobre. As mãos já um tanto enrugadas pelo tempo taparam a boca trêmula pelo choro preocupado, temendo pela segurança dos filhos.

— Os proteja, meu Deus — o sussurro irrompeu para fora e foi levado ao vento, se espalhando como uma brisa invisível e esperançosa de que tudo ficaria bem.

Enquanto isso, Yoongi mantinha seus sentidos alertas, os olhos sempre vagando por onde passava na espera de encontrar Yeoreum e não algum urso selvagem — ou seja lá o que andava dizimando a população da sua cidade natal —, se obrigando a guardar qualquer vestígio de medo e focar em sua missão.

Era uma busca cega, sabia, mas tinha um bom ponto de partida.

Julli Foster era amiga de infância da garota sumida e morava há não muitos quarteirões dali. Como boas confidentes, se não estivessem juntas, Julli certamente saberia onde a amiga estava.

Com o plano em mente, dobrou a esquina que levaria ao penúltimo quarteirão antes do casarão almejado, tremendo sob o casado azul quando o frio se misturou com um arrepio causado pelo receio de caminhar por uma viela mal iluminada. Um poste piscava inconstante, como se batalhasse arduamente em seus últimos momentos apenas para iluminar o caminho daquele homem desconhecido e amparado apenas pela esperança de encontrar a irmã.

O som do vento parecia tão alto quanto a briga de um grupo de gatos que chegou a presenciar uns minutos antes, agora sendo acompanhados pelo barulho das falhas preocupantes daquele pobre poste e um choro baixo do que em algum momento eram gritos altos de pedidos por socorro.

Yoongi sentiu as mãos gelaram primeiro que o restante do corpo, estagnando logo abaixo da luz precária do condutor elétrico.

A mente rebobinou lembranças com imagens e áudio da sua infância, fazendo uma retrospectiva do primeiro choro que ouviu da sua irmã após serem apresentados quando os pais retornaram da maternidade com o embrulho rosa nos braços. Da garotinha de três anos birrenta que chorou alto quando seu irmão não quis compartilhar o biscoito que era dele e ela poderia pegar outro, mas queria aquele. Dos nove anos, doze, quinze, dezoito e o até então mais recente, aos vinte e dois anos, quando abraçou um Yoongi deitado na maca de um hospital após um acidente de trabalho.

Foram muitos anos presenciando Yeoreum Min respirar, sorrir, agir e chorar para não reconhecer que aquele som sôfrego encenado naquele beco porcamente iluminado — e cuidado — vinha de sua irmã.

Sua irmã, chorando, em um beco qualquer.

Uma lufada de ar pareceu o suficiente para dar forças ao corpo de estatura não muito alta, jogando-o sem pensar muito em direção às lamúrias da aparentemente vítima.

Yoongi não tinha uma das melhores visões e a escuridão ali dentro não ajudava muito a enxergar muita coisa, mas quando a retina se acostumou com o novo ambiente, foi captando aos poucos as silhuetas jogadas próxima a uma caçamba de lixo.

O corpo menor ainda se debatia quase sem forças abaixo do agressor, que grunhia satisfeito fazendo o que Yoongi não conseguiu ver, todavia, pouco se importou antes de avançar para tirá-lo de cima de Yeoreum.

— Solta ela! — bradou, segurando os ombros alheios na intenção de afastá-lo da garota que agora chorava por ouvir a voz do irmão, esse que foi simplesmente arremessado contra a parede.

A força imposta era absurda, e o primogênito dos Mín sequer teve tempo de recuperar o fôlego perdido pelo impacto quando foi levantado pelos cabelos. Se agitou, horrorizado com o olhar do seu atroz: um vermelho vibrante com pupilas encolhidas que deixavam as íris ainda mais horripilantes.

Teve a cabeça forçada para o lado, sentindo o nariz gélido se arrastar pela tez do seu pescoço, respirando fundo na área com uma satisfação absurda.

A esse ponto, Yoongi já havia desistido de fugir do homem de força anormal, decidido a manter seus olhos sobre a figura sombreada da irmã jogada no solo sujo. Ainda conseguia ouvir o choro dolorido da garota, junto aos chamados pelo nome do irmão, como se assim pudesse salvá-lo daquilo que nem ela conseguiu escapar.

— Yoongi… — o chamado agora veio do desconhecido, que mostrou também ouvir Yeoreum. — Yoongi. Yoongi. Yoongi.

— Deixa-a ir, por favor, deixa-a ir — se viu pedindo, apertando as unhas contra a palma das mãos fechadas em punhos.

Estava apavorado.

Queria chorar, gritar por alguma ajuda e correr de volta para casa. Se enfiar entre os braços protetores de seus pais e se resguardar ali. Mas sentia que isso não seria possível, então gostaria de poder dar essa chance para Yeoreum, não chamaria por sua vida, mas pela da irmã e isso pareceu divertir o desconhecido.

— Mas é claro que eu vou deixar — o murmúrio foi depositado junto a um apertão contra o pescoço do Min. — Vocês dois vão sair daqui hoje, não se preocupe.

Yoongi não entendeu e sequer teve tempo para pensar sobre, pois teve o pescoço atacado por presas. Arregalou os olhos, tentando afastar o corpo maior que o seu, tudo isso enquanto sentia o sangue sendo sugado com uma facilidade que o deixou abismado.

Doía como o inferno e o que durou poucos minutos pareceu uma eternidade, até seus sentidos se perderem junto com a consciência.

Do lado de fora daquele beco, o poste parava de lutar e deixava sua luz apagar, parecendo inclinado a seguir os passos dos dois irmãos e se entregar à mortalidade. Um sinal não indicado de que, o que um dia foram receptáculos de luz e vida, agora nada mais eram que pontos de sombras espessas.

Em casa, uma mãe chorava por sentir a partida irreversível dos filhos.

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