Livro 2 - Era Maldita. 1: Castelo do espigão.

Toc-toc-toc, bateu-se na porta. Öfinnel rezou aos deuses que não fosse aquele sacerdote encrenqueiro.

- Sou Röfir - se apresentou o ancião de barbas longas. - venha comigo, imediatamente.

Öfinnel seguiu seus passos e indagou - Senhor Röfir, o que...

Ele o interrompeu - fez bem em enviar o bilhete, mas não devemos conversar aqui.

Prosseguiram. A esta altura, o rei desconfiava que estava fora de Vellistrë e apesar da ideia parecer absurda, sentia que podia estar em outro continente. Seria aquele lugar o castelo de Merrin, em Flana, cidade capital dos reinos do norte(1)? Mas como teria chegado ali? Teria ficado desacordado por tanto tempo?

Röfir o conduziu até uma área externa do castelo. Era um paredão que se fundia a um precipício. Dava para ver um belo vale verdejante dali e os contornos de uma cordilheira no horizonte. Nada que o rei reconhecesse como sendo sua terra. O tempo estava fechado e ali ventava muito. Desceram uma escadaria de madeira que estava afixada a partir das grandes rochas imbricadas que formavam a parede do castelo. Abaixo, viram dois outros sacerdotes mais jovens carregando um saco que parecia pesado.

- Não se preocupe - disse o velho Röfir - eles estão comigo.

A escada levava a um grupo de cavernas que ficava logo abaixo da base do castelo. De lá vinha um zumbido incomum. Röfir falou algo com seus ajudantes e estes foram ao fundo da caverna. Diante deles ficou o saco que carregavam e seu conteúdo parecia ser uma pessoa embrulhada. Röfir puxou o tecido revelando o rosto do rapazinho que, mais cedo, levou o bilhete a Röfir. O rei ficou chocado.

- Está morto?

- Não, mas se ficar aqui colocará em risco nosso grupo. Afinal, você acabou envolvendo-o nisto com a entrega daquele bilhete.

- Mas o que deverei fazer, senhor Röfir?

- Irá levá-lo consigo. O rapaz será problema... Uma boa opção seria atirá-lo do alto quando estiver longe daqui.

- Atirá-lo do alto? - a ideia era desagradável - Longe daqui? Mas como?

Neste instante o zumbido se intensificou. Era como se um enxame de insetos estivesse ali. Do fundo escuro da caverna emergiu uma enorme criatura sobre a qual havia uma sela e rédeas.

- Mas o que é isso? - perguntou atônito.

- É uma tan'ala. Talvez já tenha ouvido falar nas Moscas-dragão...

- Ah sim, mas não imaginei que fossem tão grandes...

Röfir agia com urgência e ordenou aos ajudantes - Coloquem-no na tan'ala.

- Agora, Rei Öfinnel, o senhor deverá guiar a tan'ala até o templo de Triox-lon, além daquelas montanhas.

- Eu? Guiar esta criatura? Deve estar brincando...

Röfir respondeu apenas flechando-o com o olhar.

- Certo... Mas como?

Röfir estendeu sua mão enrugada e deu-lhe um anel. Havia um brasão circular com o desenho de quatro asas de inseto. - Com este anel, você pode comandar a tan'ala com as palavras: decole, pouse, para o alto, para baixo, para a direita e para a esquerda. O controle não é muito preciso, mas suficiente.

- Mas como vou encontrar o templo?

- Não vai ser difícil. Além das montanhas existe um grande lago. Siga por cima do lago até avistar uma ilha na qual está o Templo de Triox-lon.

- Obrigado, Röfir. É bom saber que ainda há pessoas boas nos reinos de Merrin.

- Não me agradeça ainda. É muito importante que cumpra uma missão antes de retornar às suas terras.

- O que?

- Uma armadilha foi criada no Templo de Triox-lon. Alguns figurões do exército dos elfos estão prestes a serem eliminados. Lá foi criado um falso nexo que na verdade é um meio de eliminar todos que estiverem no templo e a própria ilha da face deste mundo.

- Entendo. Como evitar isso?

- Você deve convencê-los a não tentar realizar rituais para desativar o nexo.

- Certo. E quanto esta guerra? O que está havendo? O que Merrin quer com isso?

- A guerra já é inevitável e tememos pelo pior. Não acreditamos que seja mais uma questão entre o Rei Merrin e os elfos. Isto agora tomou proporções ainda maiores. Merrin acha que está no controle e que as legiões de demônios que convocou dos abismos servirão a seus propósitos. Mas alguns entre nós pudemos perceber que é o contrário que ocorre. Nós fomos ludibriados pelos demônios para agir em seu favor e quando nossa utilidade terminar, seremos todos consumidos por sua selvageria. Será mesmo o fim do mundo.

- Isto não é uma boa perspectiva...

- Não é. Contamos com o senhor para contrapor esta loucura.

- E quanto a Iral? - ele imaginou-o apodrecendo naquela cela, ou coisa pior.

- Espero que seu sacrifício não seja em vão.

- Não será. Eu lhe prometo, não vou descansar enquanto não colocar um fim nesta guerra.

Os dois assistentes terminavam de amarrar o rapaz no alto da carapaça. Öfinnel sentiu-se enjoado. As roupas de Iral estavam ficando mais apertadas contra seu corpo. Teve que rasgar a roupa que apertava como se quisesse o esmagar. Voltara a sua velha forma.

- Vista isso. Sua jornada pelos ares será gélida. - O velho sacerdote o auxiliou oferecendo uma grossa manta de lã que vestiu por cima da vestimenta esfarrapada de Iral.

Öfinnel ficou satisfeito de voltar à sua forma original. A primeira coisa que fez foi tatear e coçar sua barba, ainda estava rala, mas crescendo.

- O tempo corre majestade. - disse Röfir com senso de urgência - Agora não vai demorar até que descubram a troca. Coloque o anel e siga seu destino.

Ao experimentar o anel, sentiu seu medo desaparecer. Sentiu que a criatura de aparência ameaçadora tinha uma natureza dócil. Aproximou-se daquele magnífico inseto de proporções monstruosas e apoiou-se em suas pernas cascudas e peludas para subir em seu dorso. Atrás de si, uma sela de bagagem havia sido preparada. Percebeu que havia um feixe de armas reunidas em torno de uma manta. Havia pontas de espadas, lanças e até mesmo um machado.

Um dos assistentes, ainda no dorso explicou - Não sabíamos que tipo de arma o senhor tem costume de usar majestade, portanto reunimos um pouco de tudo que pudemos. Na sacola há também um escudo, uma cota e outras peças de armadura. De certo lhe serão úteis.

- Eu lhes agradeço e não me esquecerei de vocês. Estou em profunda dívida.

- Nós é quem estamos endividados majestade - corrigiu Röfir abaixo - Nós ajudamos a trazer esta situação para nossa terra, e ajudar o senhor é apenas o primeiro passo de nossa jornada.

- Muito bem, espero voltar a vê-los! - O anel aqueceu-se no dedo do rei, como se antecipasse o seu comando: - Decole!

Depois do comando, o rei não pode ouvir as palavras de despedidas daqueles sacerdotes que haviam salvado sua vida. Um forte zumbido tomou conta da caverna e a poeira esvoaçou juntamente com os mantos de Röfir e seus assistentes. As asas da tan'ala eram semi-transparentes e conforme a luz, assumiam tonalidades variadas. Movimentavam-se com tal intensidade que os olhos não podiam acompanhar.

Öfinnel sentiu as entranhas gelarem e segurou-se firme no arreamento quando a tan'ala mergulhou no abismo saindo da caverna. - Para o alto! Para o alto! - gritou em resposta.

Ventava muito e a tan'ala parecia buscar equilíbrio no vôo sem dar muita importância a seus comandos. Ao que parece, seu instinto os conduziu até uma corrente de ar favorável e só depois disso, começaram a subir. O rei ficou preocupado com as coisas e olhou para trás. Estava tudo lá, bem amarrado pelos assistentes de Röfir.

Atrás dele, pode ver o morro escarpado sobre o qual o castelo delgado de Merrin, com suas torres agudas repousava. Observar aquele castelo tão alto dava a sensação de que o vento poderia derrubá-lo. Abaixo daquele morro em forma de espigão, viu a cidade que supunha ser Flana. O vento gelado cortava seu rosto e sentiu alívio de deixar para trás aquele terrível calabouço.

Tempos depois, sentiu através do anel sinais de fadiga da tan'ala. Comandou para que pousasse.

Já haviam transposto todo o vale verdejante e adiante estavam as montanhas. Ele verificou o rapaz. Seu rosto estava gelado e respirava profundamente. Tentou acordá-lo, mas seu sono era pesado demais, de certo, efeitos de alguma magia convocada por Röfir ou seus assistentes.

Aproveitou a pausa para verificar o material da bagagem. Pensava naquilo tudo que ocorrera e grande incerteza colocava-se diante de si. Estava longe do cativeiro e tinha dúvidas se haveria outra oportunidade para se preparar para uma luta.

Nunca antes tinha vestido sozinho uma armadura. Sempre que o fizera no passado, havia um ou dois assistentes. Alguns ajustes não ficaram perfeitos, mas bons o suficiente. Entre as armas, escolheu uma bela espada que deixou à mão. Presas na sela, deixou duas lanças. O escudo tinha uma boa correia com fivelas que pode afrouxar passando em torno do corpo para prendê-lo nas costas. Estava pronto e a tan'ala parecia descansada. Montou e comandou - Decole!

Para cruzar as montanhas, tiveram que alcançar maiores altitudes. O frio era quase insuportável. O constante zumbido das asas da montaria já não o incomodava tanto. Em alguns momentos, chegava a ser relaxante. Pensou ouvir um sussurro e ao se virar para verificar o rapaz, viu que estava gritando. Girou sobre a cela para se aproximar dele. Ele parecia assustado e gritava para que pudesse ser ouvido.

- Onde estou? Quem é você?

Ele gritou de volta - Sou Öfinnel, soberano de Vellistrë.

O rapaz murmurou algo que o rei não pode compreender. Seu rosto contorcido demonstrava dor e sofrimento. Öfinnel sentiu pena dele e se aproximou para desatar os nós das cordas que o prendiam à grande sela.

O rapaz coçava os pulsos com marcas roxas da forte amarração e indagou.

- Como escapou? Por que me raptou?

- Escapei com a ajuda de Iral e Röfir.

- Impossível!

- É verdade. Iral percebeu que vocês estão sendo enganados pelos demônios...

- Mentiroso! - acusou-o com fúria no olhar - Mestre Iral é fiel aos propósitos da ordem. Ele não é um traidor!

- Acalme-se rapaz.

- Foi você, seu desgraçado! Você tomou o corpo de Iral!

As emoções do rapaz se afloraram e atirou-se contra o rei envolvendo seu pescoço com ambas as mãos. Como troco, foi socado na barriga. Isso o levou a afrouxou as mãos. Em seguida o rei acertou uma cotovelada no rosto. Ele rolou para trás, caindo fora da sela. O rei tentou segurá-lo, mas foi tarde demais. Ninguém sobreviveria a uma queda daquelas.

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(1) Reinos do Norte é uma referência à Civilização do Leste, que se estendeu na porção leste do terceiro continente da Terra das Nove Luas.


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