Livro 1: Invasão. 1 - O Fim do mundo.

Ele era o rei e também um profeta. Suas visões eram vívidas e quase impossíveis de distinguir da realidade. Todas as sensações e impressões eram reais, pois eram um vislumbre do futuro, tal qual poderia acontecer.

A visão tomou conta dele, mas ele não se dava conta disto. Toda a terra tremeu e ele sabia: era o fim de seu mundo! Sentiu calafrios intensos enquanto o suor encharcava seu corpo. Preciso salvar meus trinetos! Correu pelos corredores vestido com roupas de dormir e deparou-se com um guarda.

– Me dê sua espada! — sua voz soou áspera.

O guarda entregou sentindo desconforto, mas não podia negar uma ordem de seu rei. – O que houve, majestade?

– É a invasão! Avise a guarda! É a maldita invasão!

Correu até o quarto dos meninos e escancarou porta – Almon! Baru!? Miira!

Uma criada muito assustada e trêmula disse – Ma..majestade! Eles estão lá fora...

O rei quase rugiu – Não, pelos deuses não!

Ao atingir o pátio, viu que o céu estava obscurecido, mesmo pela manhã, e escutou pessoas gritando. Era possível ver no céu as duas luas do mau agouro. Um serviçal agonizou e caiu adiante, havia sangue... Atrás dele, a criatura dentuça exibia seu sorriso maligno. O rei partiu para o ataque deixando a guarda aberta. O demônio caiu na finta, atacando-o onde esperava. O contra golpe foi mortal. A cabeça da besta decepada caiu de lado no chão, mas ainda falou – Serão consumidos, todos consumidos!

Dois guardas lutavam adiante. Tentavam defender as crianças.

Os invasores, com sua força e resistência inumanas, quase ignoravam os ferimentos causados pelos guardas. Estes estavam nervosos e alarmados, pois nunca haviam enfrentado demônios antes.

– Almon, corra! Baru, proteja Miira! – o rei ordenou.

Baru, tinha treze anos. Foi corajoso e obedeceu. Colocou-se diante da prima e a protegeu, mas foi atingido pelas garras de um demônio. A menina chorava encolhida no chão, enquanto o outro, de apenas seis anos correu para escapar.

– Vovô! Socorro! – os olhos e a voz do pequeno Almon demonstravam puro desespero. Um demônio dotado de asas negras e patas de pássaro agarrou-o pelos ombros.

– Almon! – o rei gritou desesperado sem poder fazer nada exceto observar o menino inocente sendo erguido. Enquanto isso, a pequena Miira estava prestes a ser atacada.

– Lute com alguém do seu tamanho! – Cravou a espada com toda a força. A besta arqueou, mas encarou-o com seu olhar de brilho amarelo e furioso. Mais e mais deles chegavam e a pequena Miira foi a próxima a ser capturada. A espada estava presa no corpo do demônio e o rei desarmado. Pulou para pegar o espadim de um guarda caído. Dois demônios saltaram sobre ele e rasgaram sua carne. Os pequeninos foram levados pelas criaturas e ele fora subjugado. – Por que não me matam?

Foi atingido pela agonia e desespero. Era o fim. Era o fim do mundo!

***

Quando despertou com o corpo suado ele soube: Duas luas! Era o tempo que restava.

– Láris! Acorde, meu amor... Vamos Larissanle! – procurava tocar seus ombros gentilmente, mas talvez, devido a seu estado, foi um pouco mais rude do que deveria.

Mesmo vestida em simples trajes de dormir e com uma touca que protegia sua cabeleira, a beleza da rainha era estonteante. Ela abriu seus olhos grande, escuros e úmidos ainda sonolenta. Resmungando um pouco. – O que se passa, meu senhor?

– Láris, a invasão! Precisamos alertar a todos!

– Invasão? Ora, o senhor teve um sonho, só isso. – disse ela convicta.

As palavras do rei estavam carregadas de emoção, apreensão, e talvez desespero – São inimigos terríveis!

– Afinal, o que está havendo? Está me assustando...

– Tive uma visão.

– Visão, meu senhor? Sabe há quantos séculos não lhe ocorrem visões? Está certo de que não foi apenas um pesadelo?

– Ora Láris, me escute! Eu sei muito bem a diferença de sonhos e visões. – disse irritadiço.

Ela respirou fundo, levantou-se, recostando na cabeceira da cama. – Afinal, que história é esta de invasão?

– São as duas luas do mau agouro!

– Luas? Querido, já se passaram mais de cinco mil anos... Tantas profecias, previsões de que o mundo acabaria. Como sabe, a grande sombra já se foi, para nunca mais voltar.

– Sei disso, e não é o Corruptor que devemos temer, mas sim aqueles que virão do abismo.

– Não importa, agora vivemos sob a proteção do pico celestial. – Ela tocou-lhe o peito sobre o coração e prosseguiu – Por acaso não tem a fé de que nossos queridos deuses derramam suas bênçãos e proteção sobre todos nós?

– Não percebe? É sobre fé que estou lhe falando... Depois de tanto tempo juntos, por acaso chegou a hora em que minha própria esposa falha com a fé para comigo?

– Desculpe, mas esse assunto de invasão e abismo...

– Eu entendo. Chame os criados, precisamos estar prontos, que todos sejam convocados, generais, conselheiros, sacerdotes e feiticeiros.

– E como espera convencê-los da veracidade de sua visão?

– Não preciso convencê-los, sou Öfinnel Prístimos, o rei de toda Vëllistre!

– Mas...

– Não há tempo para debates e não se esqueça de que minha responsabilidade é proteger todo o povo desta invasão, quer creiam ou não em minhas visões.

***

Havia grande tensão no salão do conselho, que também funcionava como teatro. Uma sala circular com grandes almofadas dispostas nos degraus de pedra em seis níveis. No nível inferior, estavam reunidas algumas das figuras mais importantes do reino de Vëllistre. O rei vestia uma confortável indumentária branca com finos bordados em diversos tons de azul e estava sentado à cabeceira da grande mesa oval. Apoiava um dos cotovelos na madeira lustrosa, segurava o queixo com o polegar e com a lateral do dedo indicador alisando o bigode, num gesto repetitivo e com um toque de impaciência. Enquanto isso, dava ouvidos ao que diziam generais, sacerdotes, feiticeiros e demais doutores. Já falavam há horas ele estava cansado daquilo. Mais uma vez, a porta no nível superior abriu-se. Um de seus filhos, príncipe Nöl, entrou no salão e sentou-se na última fileira.

As falas se seguiram por mais algum tempo. Nöl levantou-se e solicitou o uso imediato da palavra. Houve silêncio e certo constrangimento. A chuva tamborilava nas janelas do salão. Nöl era um palmo mais baixo que seu pai, certamente mais belo, simpático, de riso fácil e língua solta. Mas, naquela manhã chuvosa e cinzenta, sua expressão era grave e séria.

– Peço desculpas a todos. Sei que não acompanhei a discussão desde o início e que há mais inscritos antes de mim. Mas tenho apenas uma questão a colocar para os senhores. Se o rei informa que haverá uma invasão em dois dias, e suas predições no passado estiveram corretas, por que perder tempo debatendo? Por que não agir de uma vez?

– Acha que não entendemos a gravidade da situação? – retrucou um dos conselheiros e alfinetou – é isso que vem aprendendo com sua esposa?

Nöl fechou a cara para o conselheiro, mas nada disse. As palavras do conselheiro tinham um fundo de verdade. Desde que Nöl desposara Chira da raça dos vetmös...

– O príncipe deveria repensar sua atitude – criticou outro – o próprio rei respeita os protocolos e sabe que mesmo sendo a palavra final sua, a voz dos súditos a quem todos representamos, deve ser ouvida.

Nöl respondeu azedo – Pois fazei como quiserdes com vossos protocolos. Estou de partida para Ecce onde pretendo organizar as defesas.

– Mas majestade, o que nos diz sobre isso? – um velho conselheiro inquiriu.

– Alimentar uma desavença neste momento não favorece a nosso reino e a nosso povo. Deixem que o príncipe proceda conforme seu desejo. Por favor, sigamos com a lista, estou ansioso para ouvir os relatórios militares.

A reunião seguiu seu rumo, diversas considerações foram feitas e após o relatório militar um certo alívio caiu sobre todos, mas não para o rei. Apenas ele sabia o que estava por vir.

Um dos generais percebeu o impacto negativo da explanação da estratégia de defesa e indagou – Majestade, nossas defesas nunca estiveram tão bem formadas, o que ainda o preocupa?

– As defesas são ótimas, sem dúvida! – É claro que pensavam sobre invasores de uma forma tradicional. – Mas e contra um ataque aéreo?

– Ataque aéreo? Estou certo que estamos preparados...

Era seu dever dar as más notícias e eu não gostava nada daquilo – Não é como pensa. De certo espera por um pequeno grupo, mas na realidade o que está para vir é muito pior. Falo de hordas de demônios vindos dos abismos que chegarão ao vale pelo ar. Infelizmente, nossas defesas estão além das montanhas, nos vales adjacentes, sendo assim, não haverá tempo para que retornem para nos salvar.

O general baixou a cabeça, preocupado com as informações que recebera. Ao mesmo tempo, o salão foi preenchido por cochichos. O rei silenciou angustiado. O burburinho cessou quando ele ficou de pé e anunciou – Escutem meus súditos, pois eis minha vontade: quero que as mulheres, crianças e aqueles que não podem lutar sejam reunidos em três caravanas para deixar o vale, pelo leste, sul e oeste. Lancem a convocação para o alistamento de todos os homens e feiticeiros junto ao exército. Mulheres, feiticeiras e sacerdotisas que desejarem lutar para defender Vëllistre também deverão ser aceitas.

Saiu do salão, deixando todos ocupados com as ordens. Das amplas varandas cobertas que circundavam o palácio foi observar a triste Umm sob aquela chuva e rezar para os deuses. Era como se todo o vale chorasse junto consigo. Por que, pai? Por que permitirá tal atrocidade?

O pão que trouxe nas mãos atraiu os safirins. Os animaizinhos habitavam os jardins das varandas e percorriam todo derredor com suas travessuras. As caudas cinzentas e compridas, esticadas para o alto e balançando, indicavam seu apreço pelo monarca. Ele partiu o pão alimentando-os, imaginando se sobreviveriam.

Seu outro filho, Príncipe Devian, deixou o salão e foi ter com o pai. Tocou seu ombro surpreso com o que viu.

– Pai, por que o senhor chora?

– Olhe ao seu redor Devian, contemple a beleza. Estamos vendo os últimos momentos de beleza e paz.

Devian não era do tipo militar, como seu pai e Nöl. Usava cabelos longos bem penteados e sempre podia ser visto com livros. Vestia uma conjunto de calça e blusa de mangas compridas adornadas com bordados amarelos e tinha dois livros debaixo do braço.

– Não fale assim, meu pai. Tenho certeza os deuses abençoar-nos-ão e que venceremos, seja qual for o inimigo.

Öfinnel enxugou suas lágrimas e observou o rapaz. Tinha os mesmos olhos da mãe e barba farta como a do pai. O rei se recordou de quando ele exibia sua barba rala dizendo que um dia teria uma farta como a do pai. Seu nascimento foi uma benção, pois naqueles dias, o rei estava muito amargurado com o casamento de seu primogênito, Nöl. Agora isso pouco fazia diferença. Devian era um filho devotado ao seu reino. Diferente de seu irmão, procurou a aprovação dos pais antes de casar.

– Talvez vençamos filho... Escute, quero lhe pedir um favor.

– Claro pai.

– Quero que fale com sua mãe. Sei que ela vai querer ficar, mas ela precisa ir, precisa ficar junto das crianças. Almon, Baru e Miira devem partir e precisarão de sua proteção.

– Entendo.

– Quanto a meus outros trinetos, sei que lutarão, de um modo ou de outro.

– Acho que mamãe vai aceitar ir e ficar junto dos meninos, afinal, vocês dois são muito mais avós deles do que eu e Mimna.

– É claro! Sua esposa tem mais olhos para os livros do que para as crianças. E você, sempre está preocupado demais com questões de estado.

– Mas é meu dever!

– Sim, eu sei, meu filho. – Sentia-se orgulhoso de seu filho, mas seu olhar voltou a ficar sombrio e disse – Não me fale sobre dever...  


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