9 - Terras geladas
Com o Vale Sagrado retomado, uma ponta de esperança alimentava os corações e mentes de muitos. Öfinnel decidiu que era hora de rever sua família. Havia poucos refúgios completamente livres das ameaças impostas pelas hordas, uma delas era a cidade de Tleos, a outra era Illeanur, a cidadela do templo da luz. Eram raras as notícias de lá, mas sabia-se que muitos refugiados de Vellistrë viviam nas proximidades do templo.
Viajar até lá à pé levaria meses. Öfinnel ganhou como presente dos elfos, uma montaria alada, um grifo chamado Ka. Montar e guiar tais criaturas era muito difícil e levaria anos para dominar. Precisaria de outro grifo para liderar o voo de Ka. Öfinnel conseguiu convencer Izguaziir a guiá-lo até Illeanur. Ou talvez o contrário. Eliarta, como sacerdotisa vetmös devota da deusa da luz, ficou excitadíssima com a possibilidade de conhecer o lendário templo nas terras geladas. Izguaziir não queria abandonar as batalhas, mas acabou cedendo.
Encontrar o templo não chegou a ser difícil. Saíram antes do crepúsculo, para depois de algum tempo ver sua luz, além do horizonte. No final do segundo dia de viagem, foi possível avistar o pico que abrigava o templo. Sua luz, como a de uma estrela, iluminou a noite. Avistaram um grupo de vilas na encosta da montanha. Escolheram para pousar uma que estava disposta em torno de um enorme casarão.
A recepção não foi muito calorosa. Foram cercados por homens e mulheres sob a mira de arcos e flechas. Mesmo dizendo quem eram, todos estavam tensos e desconfiados.
— Cuidado! Podem ser demônios sob disfarce.
— Mas que piada! Nós? Demônios? — Öfinnel retrucou.
Um jovem sacerdote pediu — Por favor, olhem para o templo.
Era um pedido estranho, mas o trio obedeceu. Eliarta pensou saber o que o rapaz desejava com aquilo.
— A visão deles ficou firme. — indicou o rapaz e todos os demais baixaram seus arcos e flechas. Receberam o benefício da dúvida.
— Venham, acompanhem-me — o rapaz indicou o caminho. Ele não se parecia com pessoas de Vellistrë. Era baixo, tinha cabelos cor de caramelo e olhos castanhos claros. Vestia um manto de peles grossas de ursos cinzentos.
— Então, rei dos hölmos, o que o trás às terras geladas?
— Vim para ver minha esposa, Larissanle, e também, outros membros de minha família.
Eliarta fazia uma careta fora das vistas de Öfinnel. Seu estômago revirava. Como seria ver seu amante novamente reunido à sua esposa, depois de tanto?
— Certamente, muitos de seus descendentes buscaram refúgio entre nós. — confirmou o sacerdote.
— Eu lhes sou grato por os terem abrigado.
— Illeanur existe desde sempre, mesmo antes da fundação de Umm. — explicou o sacerdote. — E é um lugar de paz e cultivo de nobres sentimentos.
Mandou chamar os parentes de Öfinnel, mas enquanto não vinham seguiu falando sobre seu povo. Disse que antes mesmo da consolidação dos holmös e vetmös, existiu a tribo dos numös. Era uma tribo matriarcal devota à deusa da luz, Leivisa. Foram seus ancestrais que vieram para as inóspitas terras geladas ao sul, no alto da Cordilheira do Eterno Inverno, para viver em sacrifício e devoção à deusa.
O interior do casarão amplo, havendo vários salões aconchegantes, mas bem decorados e desprovidos de luxo. Sentaram-se em cadeiras dispostas em arco, no salão de reuniões. Nos cômodos tudo era muito simples e feito de madeira e de peles. Os móveis eram bem trabalhados com adornos cuidadosamente esculpidos. Havia belas pinturas e tapeçarias em algumas paredes.
O sacerdote explicou que as coisas estavam mudadas. Os refugiados de Vellistrë se estabeleceram construindo vilarejos de pequenas casas de madeira trazidas do Baixo Vale, a meio dia de caminhada. No vale abaixo havia uma floresta de coníferas e alguma vida animal que era também a fonte de alimentos daquele povo. Sobreviviam graças aos grupos de caçadores que faziam consecutivas excursões ao Baixo Vale para buscar alimento e lenha. Havia também os Mogi, uma espécie de cervo, grande e robusta, que os locais usavam para tracionar carga e até como montaria. A maior parte do povo de Vellistrë conseguiu se adaptar àquelas condições extremas de sobrevivência e ficou nas montanhas.
Depois de algum tempo, chegaram alguns parentes e Öfinnel reconheceu um de seus trinetos, Almon. O rapaz não o reconheceu, pois a última vez que o vira o rei era um criancinha. Ele veio cumprimentá-lo, mas um com certa frieza e distanciamento.
— Almon, está tão crescido!
— Ahn, obrigado Majestade. — não sabia mais o que dizer e ficou quieto.
Almon já era um homem maduro, cabelos e barbas longas e grisalhas. Já não era possível reconhecer suas feições, ou talvez, apenas os olhos grandes como os do pai. A atitude era calma, mas as mãos pareciam nervosas, amassando uma a outra, ou tamborilando uma mesa, banco ou parede. Öfinnel, apesar de ser muitos séculos mais velho que ele, aparentava mais juventude. No rapaz já se via sinais do enfraquecimento da longevidade que ainda agraciava muitos holmös e vetmös.
O salão logo ficou repleto de crianças e jovens, muitos deles, reconheciam o rei como sendo seu tetra, penta e hexa avô. Muitos desses eram descendentes de Miira. Öfinnel, Izguaziir e a sacerdotisa foram assediados com perguntas sobre o mundo exterior e logo chegaram também comida e instrumentos musicais. Fizeram uma verdadeira festa para os visitantes. Ali havia um refúgio de paz e formava-se uma cultura muito diversa. Uma sociedade de batedores, caçadores e lenhadores. Mas também, muito culta e versada em artes e música. Souberam que sacerdotes e estudiosos de Vellistrë fundaram uma escola no casarão. Assim, além de aprenderem a caçar e outros ofícios necessários à sobrevivência na região, todas as crianças também aprendiam escrita, leitura e artes.
Serviram carne, conservas, nozes de vários tipos e chá de pinhão. Já no meio da tarde, estavam todos mais à vontade com os visitantes.
– Conte-nos sobre a guerra Majestade – perguntou Almon, ávido por mais notícias.
Öfinnel estranhava seu trineto chamando-o de Majestade. Lembrava-se de quando era chamado de vovô. Ele já ia perguntar sobre Larissanle e Miira, mas tinha medo de escutar más notícias. Resolveu responder.
– É uma coisa terrível, Almon. Vocês todos, tem muita sorte de estarem num refúgio seguro, como este. Estes invasores, de certo, são a pior praga jamais vista por todos os povos desta terra.
Enquanto Öfinnel seguia sua entrevista com Almon, Izguaziir tomava chá e era rodeado por uma dezena de meninos e meninas, muito curiosos a seu respeito. Nunca haviam visto um elfo e disparavam perguntas sobre seus olhos, orelhas, cabelos e sobre os grifos também. Perguntavam sobre sua terra e sobre seu povo. A princípio o elfo estava tímido e inquieto com toda aquela atenção, mas a doçura das crianças acabou lhe proporcionando um raro relaxamento e momento de descontração. Não demorou muito para levar as crianças para fora, que organizavam fila para pequenos voos na garupa de Mu. Eliarta também parecia se divertir com a situação inusitada, deixando a tensão anterior se dissipar.
Almon franzia o cenho e se sentia amargurado ao escutar os terríveis relatos de guerra. Histórias sobre lordes demoníacos, exércitos dizimados, cidades destruídas e sobre a forja do Hostenoist...
– O senhor não me condena, não é? Quero dizer... Por ser um covarde e ficar aqui longe das batalhas.
– Ora não! Fico feliz que em algum canto, nosso povo possa ainda ter um pouco de paz.
– Pois não é assim que pensava Baru. Ele e outros, seguiram de volta para participar da guerra.
– Sim, sei disso. Por eles e outros que partiram chegaram as notícias de que vocês haviam encontrado um refúgio. Cada um tem suas escolhas Almon, e um papel a desempenhar. É magnífico o que ocorre aqui. Ver inocência e despreocupação naquelas crianças. É algo que não via há muito tempo.
– Sobre a vovó e Miira... – Almon hesitou.
– Sim, diga. Eu evitava esse assunto, temendo pelo pior.
– Elas estão bem, imagino. Mas, talvez, não seja possível vê-las.
– Como assim? Não compreendo.
– Elas, e uma poucas outras, tiveram a chance de penetrar em Illeanur. Ao que parece, precisam de auxílio na cidadela. Mas o problema é que ninguém jamais retornou de lá.
– Bem, isso quer dizer que há muito trabalho...
– E mais uma coisa Majestade, não admitem homens na cidadela. Suponho que terá de se contentar em saber que estão bem, mas...
– Quanto a isso veremos. Hoje descansamos aqui. Amanhã, subiremos ao templo. Só então saberemos.
Almon também tinha suas perguntas difíceis a fazer e finalmente tomou coragem – E meu pai? Meu avô? Como estão?
A expressão do rei endureceu – Infelizmente, querido, sucumbiram nas batalhas. Terríveis são as perdas que essa guerra tem nos trazido.
Almon assentiu – De algum modo, eu sabia. Sonhei com eles. O senhor ainda tem visões, vovô?
Öfinnel assentiu com um gesto. Recordou-se das visões que teve após a retomada de Umm. Viu sua morte. Uma morte dolorosa. O pior foi o que veio após isto. O pensamento de que morreria sem ver novamente sua esposa Larissanle. Apesar de sua relação com Eliarta, ainda desejava rever a esposa. Ela precisaria saber de seu caso com a sacerdotisa? Seria capaz de perdoá-lo?
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