4 - Covil de traidores
O cativeiro era terrível. Ofinnël sentia-se fraco e doente. A pequena criatura demoníaca havia sumido. Retornava algumas vezes para depositar água e lavagem através de uma portinhola sob a porta da cela. Em certo momento, percebeu que haviam lhe raspado os cabelos e a barba. Os homens de seu povo tinham muito apego por estes e cortá-los era algo feito para humilhá-los, algo que se fazia aos criminosos.
O tempo passou e ele imaginava o que estaria acontecendo lá fora. Será que sua esposa e netos estavam bem? Como estaria Nöl e a cidade de Ecce? Seu outro filho, Devian, teria sobrevivido ao ataque a Umm? As questões se repetiam em sua mente enquanto esperava naquele ambiente pútrido sem notícia alguma do que estava acontecendo. Quanto tempo havia passado? Semanas? Um mês?
Foi quando ouviu passos humanos apressados, ruído da fechadura e a porta metálica da cela se abriu pela primeira vez. Um homem entrou apressado e fechou a porta atrás de si. A escuridão deu lugar a luz esverdeada que emanava do colar daquele sujeito, cuja expressão lhe era vagamente familiar. Porém, seus trajes denunciavam a quem era leal. O manto de golas altas e corte refinado, era a vestimenta de um dos sumo-sacerdotes Vetmös ligados ao insurgente Merrin. Os olhares se cruzaram nos seus olhos claros do visitante, o rei viu o remorso dos traidores.
Cuspiu com desgosto e desprezo e disse – Maldito traidor! O que quer de mim?
O sacerdote que tinha fartos bigodes que desciam pela lateral da boca até o queixo fez uma careta sofrida – Perdoe-me, majestade! Não há muito tempo.
O comportamento daquele homem era intrigante e as suspeitas do rei quanto ao envolvimento de Merrin em tudo aquilo pareciam se confirmar.
O bigodudo estava nervoso – Os outros, eles estavam errados, mas nós queremos ajudá-lo a escapar.
– Quem são nós? Quem são esses outros?
– Não há tempo para explicar. – Estendeu o braço adiante e com uma faca cortou o próprio pulso, fazendo seu sangue escorrer. – Depressa, beba!
– Beber seu sangue? Perdeu a cabeça?
– Não discuta majestade, faça isso, se quiser sair daqui e ter uma chance de lutar contra esses malditos... — seu braço tremia.
Não havia opção, e logo que começou a sugar o sangue, sentiu forças se renovando. Segurou o braço do sacerdote firmemente e sugava seu sangue com vontade, enquanto recobrava as forças. Ao mesmo tempo, o sacerdote executava um ritual místico e uma estranha transformação ocorreu. Pouco a pouco, o rosto do traidor se modificava, uma barba rala crescia e sua massa muscular parecia se expandir. Ao mesmo tempo, o rei sentiu as roupas ficando folgadas e em poucos momentos, seu corpo era o dele e o dele era o do rei. As pernas do sacerdote bambearam e caiu, com o rosto muito pálido.
– Você está bem?
Ele sussurrou, falando com dificuldades. – Minhas roupas... arf.. arf.. meus pertences...
O rei compreendeu. Trocou de roupas. As forças do sacerdote se esvaiam rapidamente e antes de perder os sentidos, ainda conseguiu dizer – Röfir, procure por Röfir.
De posse das chaves, faca e colar místico do sacerdote, o rei saiu da cela e percebeu que estava em um corredor pouco iluminado de um calabouço. Não reconheceu o lugar. Certamente não estava em nenhuma prisão de Umm, e suspeitava que sequer estivesse no reino de Vellistrë.
Havia uma escada adiante, e ele se controlou quando veio um daqueles demônios rastejantes, cheio de perninhas e carapaça cabeluda. O monstrinho afastou-se dele passando pelo canto e seguiu seu caminho. Öfinnel não conseguia fazer silêncio, uma vez que usava uma bota com solado de madeira e que martelava a rocha, toc, toc, toc.
Subiu uns cinqüenta degraus largos e altos naquela escada em espiral. Era de fato um calabouço bastante profundo. Tochas ocasionais iluminavam seu caminho. Se perguntava se o disfarce era mesmo bom e por quanto tempo iria durar. Chegou a outro corredor, mais amplo e mais arejado. Não sabia que direção tomar, e viu algum movimento no lado direito. Seguiu na direção oposta. Passos se aceleram atrás dele. Ele gelou. Já saberiam de sua fuga? Respirou fundo e seguiu caminhando normalmente.
– Mestre Iral. – Tap-tap-tap-tap-tap faziam os passos – Mestre Iral!
Virou-se sem ter certeza se o rapaz o procurava ou não. – Sim? – indagou erguendo as sobrancelhas.
– Mestre Iral – repetiu o rapazinho recobrando o fôlego. O acólito tinha pele clara, um bigode ralo, nariz grande e sobrancelhas espessas. – Eu o procurei em toda a parte. O emissário já pousou na torre e o conselho já deve estar reunido.
– Verdade? – respondeu lacônico.
– Sim, mestre Iral. Vamos, sua presença é muito importante.
– Certamente. Você primeiro.
O rapazinho franziu a testa e parou por um instante. Öfinnel suou frio, de certo disse algo que o tal sacerdote Iral não diria. Mas logo o acólito deu com os ombros e seguiu andando.
Os corredores eram amplos e o castelo magnífico. Muitos outros Vetmös estavam no local, deslocando-se apressadamente, daqui para ali. Ocasionalmente, uma figura demoníaca aparecia. Ver aquelas criaturas deixavam-no irado. Confirmou-se a traição de seus irmãos, os Vëtmos. A ira disputava território com o medo de ser descoberto e ser novamente levado àquele horrível calabouço. Depois de mais escadas e já um pouco cansado, chegaram ao salão da torre, no qual uma dúzia de homens vestidos como Iral estavam reunidos. Suas roupas brancas com detalhes em bege indicariam santidade e pureza, mas seus atos e associações eram de pura vilania e perversidade.
– Iral, por que a demora? – demandou um sacerdote de bigodes brancos, rosto vermelho e enrugado.
– Desculpem, tive que cuidar de um pequeno imprevisto.
– Imprevisto?
– É... ahm...
O rei foi salvo pela chegada do líder. Lá estava ele, Merrin, o insurgente. O homem que ergueu diferenças entre Holmös e Vetmös. Fundador dos reinos e da degenerada civilização do leste. Egoísta, encrenqueiro e agora, um grande traidor. Vestia traje luxuoso com bordados em ouro, seus braços estavam cobertos de jóias e acima da cabeça, uma coroa cintilante, cravejada de cristais de aparência muito pesada. Seus olhos azuis e claros lembravam um inverno gelado. Seu rosto exibia uma expressão de superioridade e desdém. O rei sentiu seu sangue talhar só de olhar para ele. Sentiu sua mão queimar, retirou a faca e voou em seu pescoço. O sangue jorrou. Sentiu felicidade.
Merrin tinha olhar severo e ordenou – Iral, tomai de uma vez teu assento!
Öfinnel percebeu que sua mente estava confusa e que havia deixado a sua imaginação correr solta, sem diferenciar bem seus pensamentos da realidade. Sacudiu a cabeça e obedeceu, tomando a cadeira ricamente ornada que estava vazia. O velho sacerdote que o havia interrogado um momento atrás, franzia a testa e o olhava com desaprovação.
Merrin sussurrou para um serviçal humano que ali estava, mas como era boa a acústica do salão, Öfinnel pode ouvir.
– O mensageiro está lá fora?
– Sim, meu senhor.
– Providencie para que entre.
O serviçal seguiu até uma das portas de madeira de vidro que davam para a ampla sacada em torno do salão circular. Lá fora, viu-se a criatura. Momentos atrás Öfinnel havia visto a criatura de relance e julgado tratar-se de uma estátua. No exterior ventava muito e o som penetrou o recinto. A criatura entrou e o serviçal voltou a fechar a porta, os mantos e cabelos que eram soprados pelo forte vento voltaram à posição original.
Tratava-se de um demônio alado de aparência bastante simétrica e traços humanóides e reptilianos. Sua pele era branca e repleta de escamas. Sobre a cabeça, uma série de pequenos chifres tortos. Suas orelhas de abano eram grandes e pontiagudas. Olhos vermelhos de olhar furtivo e inquieto. A língua roxa e bifurcada, escapava ocasionalmente da boca cheia de dentes afiados. As asas recolhidas junto ao corpo, lhe davam uma aparência de corcunda. Caminhava de maneira anormal, devido às pernas invertidas, como as de uma ave. Parou a uns dez passos adiante de Merrin e fez pequena mesura.
O demônio, magricela e musculoso tinha uma voz rouca e grasnou– Sou Fushou, mensageiro das hordas, discípulo de Lorde Xastzar, o sanguinário, que serve ao Duque Marlak, das planícies desoladas, soberano dos céus, segundo Duque do supremo soberano do universo, Arcanael, o coroado, único Deus e condutor de todas criaturas: o dominador do submundo.
Merrin suspirou – Vamos lá Fushou, já não é nosso primeiro encontro, deixemos de lado tais formalidades.
– É a lei, ó pequeno deus entre os homens.
– Quais são as novidades?
– Firmamos base em Umm, mas os exércitos de Vellistrë se reuniram.
– O Príncipe Nöl?
– Sim, pequeno deus. O grande Duque expressa insatisfação pelo insucesso da manobra. Sem os Holmös sob nosso comando, a batalha contra Nelfária...
– Maldito Öfinnel! – rosnou Merrin.
O rei não pode resistir e esboçou um pequeno sorriso que logo procurou disfarçar. Suou frio só de pensar que alguém pudesse ter visto. Estava cismado com o velho sacerdote, quando olhou com o canto dos olhos, parecia observá-lo. Podia jurar que estava desconfiado.
– Batedores identificaram o rastro da família do rei de Vellistrë.
– Verdade? Onde?
– Nas geleiras do sul.
– Ótimo, logo tudo ficará sob controle. E Nelfária? Alguma reação?
– Sim. Tropas deslocadas para a região do falso nexo.
Merrin gargalhou – Os Malditos vão cair diretamente em nossa armadilha.
Aquela reunião enojava Öfinnel, mas precisava manter o controle. Alguns daqueles malditos sacerdotes deram suas opiniões e o rei temia que lhe perguntassem algo que pudesse denunciar sua situação. Estava um pouco ansioso, mas exerceu autocontrole com facilidade adquirida em séculos de prática de meditação.
O sacerdote idoso que desconfiava dele, indagou – Iral, quais seus pensamentos sobre o falso nexo?
Ele não sabia exatamente sobre o que o sacerdote estava falando e retrucou – Irrelevante para os objetivos finais, o mais importante é manter o foco na captura da família real de Vellistrë. – Se odiou por dizer algo contra sua própria família, mas lhe pareceu uma boa saída.
– Obviamente não respondeu à minha pergunta Iral, é nosso especialista na arte do ocultamento, portanto sua opinião....
– Esta discussão não está acrescentando nada! – ergueu a voz um sacerdote aborrecido, bastante idoso e com longas barbas brancas. – Sugiro que finalizemos a reunião e nos concentremos nos preparativos para a ampliação dos nexos dimensionais.
Merrin, supremo traidor na ótica do rei, assentiu com a proposição do sacerdote. Öfinnel relaxou aliviado. Seguiu para a saída onde o rapazinho que o chamava de mestre aguardava. Foi seguido pelos passos apressados do velhote desconfiado, mas antes que o alcançasse, o ancião cuja intervenção o salvou da sabatina, fez com que o inquisidor parasse. Duplo alívio.
– Mestre Iral – chamou o rapaz – sobre o meu pedido...
– Pedido?
– Sim, mestre... O treinamento de ocultação que...
– Ah, é claro! Hoje, mais tarde lhe reservarei um tempo.
– Que ótimo! Ótimo! – o rapaz parecia muito entusiasmado.
– Já que está tão ansioso, poderia me acompanhar até meus aposentos? Gostaria que me ajudasse com algo.
– Sim, é claro mestre Iral! – o rapaz transbordava excitação.
– Por favor, antes de mim – indicou com um gesto para que começasse a caminhar. O rei temia que a conversa entre os dois sacerdotes mais velhos fosse acabar a qualquer momento. Logo ele estava longe dali e pensando em como perguntar sobre o tal Röfir. Nada parecia adequado. Chegou até os aposentos e forçou a maçaneta. Porta fechada. Vasculhou a bolsa a tiracolo e encontrou a chave. Pediu para o rapaz aguardar um momento. Como era terrível conversar sem saber o nome das pessoas.
No interior dos aposentos de Iral, ele encontrou uma escrivaninha conforme imaginava. Era um quarto espaçoso cuja janela dava vista para um pátio interno. Com pena e papel escreveu uma nota pedindo socorro urgente a Röfir. Havia cera e carimbo para selar a carta.
– Faça-me o favor de entregar este bilhete com urgência a Röfir.
– Sim, mestre Iral, imediatamente.
Fechou a porta novamente e respirou aliviado. A única coisa a fazer era esperar. Sobre a escrivaninha, diversos pergaminhos e livros com símbolos que não conseguia ler. Era conhecimento secreto dos místicos para o qual nunca dedicou grande atenção.
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