2 - O falso nexo

Aquilo era uma loucura, mas era apenas o começo. A batalha entre as tropas élficas e as hordas demoníacas era intensa. Öfinnel não pensou duas vezes e engajou-se no combate. Havia um demônio enorme que chamou sua atenção. Suas asas tinham envergadura colossal e seus movimentos lhe causaram arrepios. Aproximando-se mais, notou que não era um demônio de fato, mas sim um dragão que servia de montaria para um comandante élfico. O dragão abocanhava os magérrimos demônios alados, enquanto aquele o montava lançava jatos e bolas de fogo que abatiam outros mais como insetos. Muitos destes, em chamas, se atiravam no lago sendo engolidos pela água e expelindo fumaça escura.

A batalha decorria em duas frentes. No ar, o comandante no dragão liderava algumas dúzias de elfos montados naqueles estranhos construtos conhecidos como hipogrifos. Combinação de corpos de cavalos magérrimos, de ossatura leve e frágil, com cabeças e asas de grandes aves de rapina, de bico dentado, temperamento instável e fome voraz por carne. Muitos destes feiticeiros e arqueiros que montavam tais bestas abatiam demônios à distância com flechas e raios multicores.

Abaixo, a pequena ilha rochosa estava repleta de demônios rastejantes e asquerosos, com seus múltiplos tentáculos, ou pernas aracnídeas, combatendo elfos que formavam pequeno cerco ao Templo de Triox-lón. Este era constituído de rochas escuras e torres pontiagudas, erguido homenagem ao deus venerado pelos Vetmös após a cisma de Merrin. De seu interior, luzes ora púrpuras, ora esverdeadas cintilavam escapando de todas portas e janelas. Estava envolto numa espessa névoa leitosa que escorria cobrindo toda sua superfície. Sob tal névoa, rastejavam centenas de pequenos demônios que variavam entre ratazanas ferozes e sem pelo, a lagostins-escorpiões cascudos e cheios de espinhos. Alguns elfos que se aproximavam do templo eram cobertos por uma dúzia ou mais daqueles demonetes.

Öfinnel acertou dois demônios alados com as lanças que tinha à disposição. Com isso chamou a atenção de alguns deles para si. Um agarrou-o pelas costas e cravou os dentes em seu ombro. Como ele vestia armadura sob a espessa capa invernal, a criatura surpreendeu-se ao quebrar alguns dentes contra o duro metal. A espada que portava, se foi, pois ficou presa quando atravessou sua lâmina no abdome magro daquele infeliz. Desviou-se da lança de outro, mas o golpe penetrou a carapaça da tan'ala colocando-os sob forte turbulência. Ele ordenou com urgência - Para baixo! Pouse! Pouse!

Não foi um pouso bem sucedido. O rei caiu e rolou um pouco sobre as rochas do caminho que ligava o pequeno porto ao templo, na parte mais alta da ilha. Estava um pouco tonto, mas inteiro. Retirou o escudo que tinha preso às costas e buscou o grande machado ateado às bagagens. A tan'ala estava indócil e não seria razoável voltar a montá-la. Seguiu morro acima para juntar-se à batalha ao redor do templo.

Retirou a capa, apesar do frio. Sentiu a testa arder. Um pouco de sangue escorria sobre o olho esquerdo e limpou-o com a capa antes de deixá-la no chão. No percurso, viu que no ar a batalha estava sendo decidida em favor dos elfos. Um demônio caiu perto do rei, completamente esmagado após ter sido alvo da pesada cauda do dragão.

Um dos elfos que batalhavam no ar, sem usar montaria, zuniu por cima da cabeça de Öfinnel e pairou um pouco adiante. Seus cabelos longos e castanhos pareciam ter vida própria, animados pelo vento sobrenatural que o circundava. Sua mão esquerda apontava para o céus, com os dedos unidos num gesto peculiar. Já a mão direita segurava um cajado prateado com gemas azuis que brilhavam com fraca intensidade. O rei seguiu subindo com leve dor nas pernas. Sentiu aquele vento gelado crescendo aos poucos até tornar-se um pequeno tufão. A ventania soprou a névoa que circundava o templo e muitos daqueles demonetes, agora inseguros e sem cobertura dissipavam-se.

O dragão e a tropa de hipogrifos aterravam em auxílio aos elfos que combatiam em solo e em desvantagem. O holmös corpulento juntou-se a este combate recebendo olhares de estranhamento. Não havia tempo de conversar e dizer quem era e por que estava ali. As perícias em combate do rei estavam retornando, remontando aos tempos em que fora chamado de Barba de Leão pelos Razins. Na ocasião, ajudou a unir povos primitivos no vale vizinho de Vellistrë. Aqueles acontecimentos de centenas e centenas de anos passados já estavam enevoados na memória do rei.

Mas uma coisa estava clara para os elfos, fosse quem fosse, lutava por eles. O elfo de cabelos cor de ferrugem que montava o dragão, era um exímio combatente e sua fisionomia não parecia estranha ao rei. Vestia-se com distinção. Parecia ser o comandante daquela tropa belicosa e destemida.

O rei julgava-se sortudo de estar ileso até então naquela batalha. Ou quase, não fosse pelos arranhões que sofreu na queda da montaria e uma ou outra contusão nos braços e peitos. A armadura cedida pelo sacerdote Röfir vinha sendo muito útil.

A última resistência ocorreu já no interior do templo, ao redor de uma fonte oval de águas escuras que borbulhava emitindo odores desagradáveis. Os feiticeiros logo identificaram aquela fonte como sendo o nexo dimensional que fazia ponte entre a terra e os planos abissais. Uma onda acompanhada de luzes verdes trouxeram à tona uma criatura que foi cuspida para fora da fonte. O líquido fétido respingou sobre alguns elfos que contorciam a face com profundo desgosto. Antes que a criatura pudesse situar-se, foi abatida. Aquela fonte continuaria cuspindo demônios em intervalos regulares, caso alguma providência não fosse tomada.

Com os embates encerrados, o comandante veio até Öfinnel e indagou usando a língua humana - Agradecemos seu auxílio, mas quem seria o senhor?

- Sou Öfinnel Prístimos, de Vellistrë.

O elfo apenas ergueu as sobrancelhas, sem demonstrar grande surpresa.

- Chamam-me de Raastad. Ocupo posto de general do recém formado exército do triunvirato.

Os elfos cochichavam a respeito do hölmos. Um chegou a rir, como se a apresentação dele tivesse sido uma piada. O rei compreendia bem o idioma deles e ouviu um dizer - O grande rei? Mas que piada!

Öfinnel tinha dúvidas se eles pensavam mal de suas vestimentas, da postura, ou se simplesmente não conseguiam aceitar que o Rei de Vellistrë tivesse aparecido do nada e sozinho para participar daquele embate.

Raastad estendeu a mão, fez reverência e disse em élfico, para que os demais ouvissem - É bom revê-lo, Alteza.

Aquilo deixou uma parte daqueles guerreiros, ainda mais confusos. Até o rei ficou confuso. De onde mesmo conhecia Raastad? Alguma cerimônia? Alguma viagem? Eram tantos os anos e sua memória não era capaz de resgatar. O fato era que o rei simpatizava com ele, seu rosto era diferente dos demais, que pareciam adolescentes, mesmo sendo adultos. Raastad tinha cara de gente e não de elfo e Öfinnel imaginava que fosse considerado feio entre os seus.

- Vejo que se lembrou de mim, general Raastad. Fico contente. - não importava lembrar-se da ocasião em que se conheceram, mas sim, alertá-los quanto ao falso nexo.

- Antes que pergunte, explicarei por que estou aqui. Vim avisá-los de uma armadilha.

- Armadilha?

- Sim, um falso nexo. Não devem tentar desativá-lo, ou todos vamos morrer.

- Alisdres - chamou o general - Interrompam os preparativos e venham até aqui.

O elfo de cabelos logos, face rosada e lábios de mulher, que aliás, apenas diferenciava-se de uma fêmea pela ausência de seios, aproximou-se olhando, especialmente a barba mal cuidada do rei, sem conseguir disfarçar seu asco.

- Não há tempo a perder general. É possível que enviem reforços, utilizando o próprio nexo.

- Escute Alisdres. Este é Öfinnel, rei de Vellistrë e veio nos avisar de uma armadilha.

- Sim - reforçou - é como digo, se tentarem anular o nexo todos pereceremos.

- Desculpe-me discordar general, mas creio que o humano esteja sendo usado por nossos inimigos para nos confundir.

Raastad anuniu - Sim, creio que esta é uma possibilidade. O que me diz disto?

- Não estou sendo enganado, tenho certeza disto. Homens morreram para que eu chegasse aqui trazendo esta informação.

- Homens, o senhor diz? - indagou Alisdres desdenhoso - Quem morreu? Sob que ocasião? Quer nos explicar?

- Muito bem! Sacerdotes de Triox-lón para me salvar do cativeiro no castelo do traidor Merrin.

- Sacerdotes do deus das profanações? Os próprios malditos que compactuaram com os senhores abissais para trazer essas coisas para a terra? E diz que estava sob cativeiro na própria fortaleza dos traidores?

- É verdade.

- Pois para mim está claro que o senhor foi ludibriado. Aquele que permanecer em cativeiro e sem esperanças, vai acreditar em qualquer argumento dado por seu libertador. Eles devem ter se apercebido que destruiríamos o nexo e enviaram-no com essa estória para nos dissuadir.

- O senhor não entende! Não foi nada assim... Eu pude ver, sob disfarce, uma reunião entre um emissário dos demônios e os sacerdotes conselheiros de Merrin. Isto é mesmo uma armadilha.

- Verdade? - disse Alisdres sarcástico - E com qual disfarce alguém como o senhor pode passar desapercebido dos mais graduados místicos entre os homens do norte?

- Fui transmutado em um dos próprios sacerdotes! - Falou alto, pois estava ficando irritado com o elfo.

- Ora, ora, Alteza! - riu-se - Começo a pensar diferente do senhor. Essa estória fica cada vez mais improvável. Será mesmo que o senhor foi ludibriado? Ou será que está tentando nos ludibriar?

- Ora seu! - marchou para cima do elfo e teve espadas e lanças de seus seguidores apontadas para si. Parou, mas perdeu o temperamento - Seu moleque! Acha que está falando com quem? Sou Rei! Exijo respeito! Como ousa duvidar de minha palavra!

- Moleque? Rei ou não, saiba que sou sumo sacerdote do templo de Noosar! E guardião dos perigosos segredos das interações dimensionais, tarefa de maior responsabilidade entre meu povo. E veja o que tal conhecimento resulta nas mãos dos humanos - indicou os corpos de demônios ao redor.

- Alisdres, Öfinnel, já basta! - ordenou Raastad. - Interrompam a anulação do nexo e, pelo sim, pelo não, vamos verificar essa possibilidade de uma armadilha. Quero que todos capazes de fazer tal estudo comecem imediatamente.

- Mas general...

- Sem mas, Alisdres! Devo lembrá-lo que esta é uma operação militar?

O rei ficou preocupado. E se tivesse mesmo sido enganado? Não teria sido demasiadamente extraordinário o que ocorrera? Não era mesmo oportuno? Öfinnel remoía suas dúvidas. Pensava em sua família, na ruína de Umm e de seu povo. Depois, nos malditos traidores que seguiam Merrin. Neste ínterim, os elfos pesquisaram o templo, o nexo e anunciaram sua conclusão.

- Não há armadilha. - anunciou Alisdres orgulhoso.

- Como assim, não há armadilha? Não vêm que foi fácil demais? - questionou o rei de cara fechada.

- Fácil demais? Perdemos quase metade de nossos companheiros! Como pode dizer que foi fácil demais? Não há armadilha! Simples assim. Vamos, meus caros, não há tempo a perder. Temos sujeira dos humanos para limpar.

Aquilo causou-lhe uma pontada no peito. Teria sido tudo em vão? E se armadilha fosse mesmo real? Morreria ali? Deixaria Merrin escapar impune? O simples pensamento de Merrin impune, sem que ele pudesse estar na terra para levar justiça àquele desgraçado, fez seu sangue talhar.

- Raastad! - chamou - Por favor, tem de me ouvir. Tenho certeza de que não fui enganado. Eu digo a verdade. Juro pelo meu reino, meu povo... minha família.

- Eu até quero acreditar em Vossa Alteza...

- Pois acredite-me! Não deixe que seus comandados morram aqui, de uma forma estúpida.

- Não sei...

A raiva de pensar em Merrin impune, somada a possibilidade de nunca mais ver sua família, levou-o ao desespero. Ajoelhou-se aos pés do general élfico e implorou com lágrimas nos olhos. - Por favor! Acredite em mim. É mesmo uma armadilha!

Viu que Raastad ficou constrangido de vê-lo ajoelhado a seus pés.

- Alisdres - virou-se para o sumo sacerdote. - O rei dos homens tem razão. Não vale a pena arriscar nossas vidas e nosso esforço nesta empreitada.

- Mas general, temos ordens! O próprio imperador nos preveniu de que haveria ardil para nos dissuadir de nosso propósito. Por acaso, o senhor está, ao dar ouvidos a este rei dos homens, desobedecendo as ordens de nosso próprio imperador?

Raastad respirou fundo e respondeu - Estou sim! Devemos máximo respeito e devoção aos imperadores, mas eles não estão aqui. Eu estou. O comando é meu, a responsabilidade é minha. Vamo-nos daqui!

- Muito bem general. Mas permita-me discordar. Eu tenho certeza de que não há armadilha. Deixe que eu, e outros elfos que sejam voluntários fiquem aqui e procedam junto a mim a desativação deste nocivo nexo.

- Muito bem, forme sua equipe. Atenção todos demais: estamos partindo.

- Muito obrigado, general Raastad. Ficarei em eterna dívida para consigo.

- Não me agradeça. É uma questão de estratégia.

Saíram todos do templo retomando suas montarias aladas. Alisdres e outros ficaram iniciando o ritual para desmanchar o nexo.

Um elfo da tropa de Raastad fez curativos nos ferimentos da tan'ala. Havia falta de montarias, e três elfos montaram junto com o hölmos para sair do local. Assim como outros tantos compartilharam a montaria de Raastad, o dragão Hel. Voaram até além do lago, e pousaram num monte do qual podiam avistar o templo ao longe.

Antes do anoitecer, veio a explosão e todos ficaram profundamente chocados. Foi tão forte que uma ventania quente e potente os atingiu. A ilha e o templo, deixaram de existir, sendo engolidas pelo lago. Uma grande nuvem de fumaça mística, que piscava em multicores, preencheu os céus. Alguns elfos foram tomado por um mal estar e vomitaram.

Raastad tocou o ombro de Öfinnel e disse - Obrigado Alteza, por ter insistido. Por deixar de lado o orgulho e ter salvado nossas vidas.

Öfinnel detestou estar certo, em especial, por que mais vidas foram tomadas. Mas aquilo ainda era apenas o começo da grande guerra. Apenas o começo da Era Maldita.

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