Capítulo 8

Por favor mantenham em mente o seu limite enquanto leitor. Esse capítulo contém gatilhos mais escancarados do que nos outros, mas todo capítulo desse livro vai levantar uma problematização, velada ou não. Repeite seu limite.

Não sou de colocar música para os capítulos, mas recomendo que ouçam essa. No mais, boa leitura e ofereço um abraço desde já. Meu pv, como sempre, está de portas abertas para vocês.

20 de março

A música alta invadia seus sentidos, os fones enfiados em seus ouvidos a isolavam do mundo ao redor. Ali, com os acordes estrondosos de Empero's new clothes pulsando em seus ouvidos, os óculos presos aos olhos que encaravam analiticamente as lentes do microscópio onde a lâmina com amostras de tecido repousava desafiadoramente, estava perdida em si mesma. No caderno repousado ao lado esquerdo do equipamento, tomava notas de tudo o que via nas imagens antes de habilmente trocar a lâmina por outra vinda da caixinha da madeira etiquetada.

O lápis em sua mão esquerda acertava a página pautada com uma letra perfeitamente redonda, fruto das intermináveis aulas de caligrafia que teve quando criança. Lembrava muito bem do caderno de folhas retangulares que com repetições infinitas de frases sem sentido que era obrigada a copiar de novo e de novo, até que sua letra cursiva estivesse exatamente igual àquelas impressas no livreto coberto de ilustrações malfeitas. O h maiúsculo foi a letra que demorou mais tempo para conseguir aprender, e hoje fazia questão de preenchê-lo em todas as suas voltas e silhuetas cada vez que tinha oportunidade.

Os pés descalços, escondidos por debaixo da bancada longe dos olhos do responsável pelo laboratório de quem receberia um sermão caso visse seus dedos imprudentes fora de seu sapato fechado, tamborilavam displicentemente no ritmo da música em seus ouvidos. Estava presa em seu mundo particular, uma bolha que excluía quaisquer interferências externas, imersa apenas em seu trabalho. Até mesmo seus pensamentos eram proibidos de entrar naquele refúgio sagrado.

Espreguiçou-se na cadeira e, permitindo a indulgência de pousar os pés descalços no chão empoeirado, caminhou até a mesa onde a comida ficava. A pequena bancada adornada com uma toalha laranja, sobre a qual potes de biscoito e sachês de chá repousavam ao lado da jarra de café recém passado, que foi exatamente o que ela havia ido buscar.

Foi com desgosto que fechou os olhos e suspirou quando teve os fones arrancados de seus ouvidos, expondo-a abruptamente à fria realidade do silencioso laboratório. Não precisou virar-se para saber que era Jorge, parado de pé, encarando-a de cima. Seu cheiro hostil de hortelã o denunciava.

— Não sabia que você vinha hoje. Seu dia não é amanhã? — Bianca questionou, referindo-se à tabela de horário dos estagiários que estava pregada no quadro de piaçava pendurado na parede onde todos os avisos do laboratório se encontravam.

Foi uma pergunta retórica, é claro. Ela sabia que não era o dia dele de trabalhar, sabia com toda certeza, porque fez questão de montar seus próprios horários de modo a encontrar com ele o mínimo possível naquele ambiente de confinamento onde pouco poderia fazer para se livrar de situações desconfortáveis. Não precisava olhar ao redor para saber que estavam sozinhos ali dentro e seu coração instantaneamente disparou com a proximidade indesejada. Sentiu seu corpo enrijecer antes mesmo de ele estender a mão em sua direção e tocá-la nos fios macios ondulados que moldavam sua face em pânico.

Em sua mente, virava-se em um pulo e berrava para que ele a deixasse em paz e fosse atormentar outra pobre infeliz que estivesse disposta a receber seus apelos inapropriados, empurrava-o para longe e corria para longe dali. Na realidade maldita em que viva, suas pernas se recusavam a fazer o seu trabalho e seu corpo reagia como sempre, paralisando de medo e vergonha. Encarou a parede à sua frente, os olhos tremeluzindo por lágrimas que se formavam em antecedência no fundo dos seus olhos.

Repetia para si mesma que era uma reação exagerada. Jorge era seu amigo e talvez ela estivesse interpretando a situação do jeito errado. Ele não estava fazendo nada para deixá-la desconfortável propositalmente, repetia a si mesma. Talvez fosse apenas sua forma de demonstrar afeto e ela, neurótica e insegura, era incapaz de compreender a dimensão de suas atitudes. Ele nunca havia feito nada para machucá-la, afinal.

Foi o que disse mentalmente a si mesma quando ele se curvou sobre ela e estendeu o braço em direção ao pote de biscoitos, fazendo seu corpo colar no dela, uma mão pesada apoiada em seu quadril enquanto a outra agarrava rosquinhas de coco, sua frente enrijecida roçando contra ela por sobre a calça fina que usava.

— Só passei para comer alguma coisa — Jorge respondeu enquanto levava à boca os círculos açucarados e ela pôde sentir as palavras contra seu ouvido, tão perto ele estava. Ela estremeceu e fechou os olhos, implorando em silêncio para que ele apenas fosse embora.

O socorro veio em forma do toque estridente de seu celular, ecoando por toda a sala, arrancando-a do torpor paralisante ao qual seu corpo a havia submetido, uma alma agitada presa em um corpo imóvel implorando por libertação. Desvencilhou-se de Jorge, sendo barrada por seu braço no caminho apenas por um segundo, apenas para que ficasse claro que ela estava saindo de sua restrição porque ele permitia.

Ela alcançou a mesa em três passos e imediatamente levou o celular ao ouvido, sem sequer checar quem ligava. Até aquela empresa bizarra que ligava vez ou outra oferendo pacotes funerários seria bem-vinda àquela altura. A voz de Helena invadiu seus sentidos, urgente e necessitada, implorando entre soluços que a encontrasse naquele momento. Ela enfiou o celular no bolso traseiro da calça e, sem dirigir uma palavra a Jorge, sem sequer levantar o olhar em sua direção, enfiou os pés empoeirados no sapato jogado debaixo da mesa e rumou porta afora, batendo com um estrondo a estrutura da madeira atrás de si.

Em um torpor desgastante, percorreu os corredores vazios e optou pelas escadas. Tinha certeza que teria um colapso nervoso caso se prendesse dentro da caixa de metal claustrofóbica. Desceu os seis andares em um ritmo constante, lágrimas escapando por seus olhos vez ou outra, sendo rapidamente secas com as costas da sua mão. Voou baixo, correndo tão rápido quanto podia, por pouco não atropelando um grupo de pessoas que estava reunida parada no meio de um corredor. Normalmente apreciaria a arquitetura dos prédios dos mais diversos cursos no seu caminho até o restaurante, mas naquele dia tudo parecia vazio, triste e falso. Apenas continuou correndo. Parou há alguns metros da entrada do prédio, a respiração pesada, os pulmões em fogo denunciando o sedentarismo. Ela tremia, pequenos espasmos percorriam seu corpo e ela abraçou a si mesma por um minuto inteiro até forçar uma falsa calmaria em seu rosto.

A cena provavelmente era patética: uma garota parada de pé no meio do caminho, os braços em volta de si, os lábios trêmulos, e ela tinha certeza que uma careta estampava seu rosto enquanto se esforçava para segurar as lágrimas traiçoeiras. Foi com um pulo que reagiu à mão que tocou seu ombro, antes de, amedrontada, se virar e dar de cara com Vicente, que perdeu o sorriso que trazia no rosto no exato segundo que a encarou. Ele abriu a boca para dizer alguma coisa e ela balançou a cabeça negativamente.

Não queria falar, não podia falar. Não conseguia. E o que diria afinal? Que Jorge encostou nela? Que a tocava inapropriadamente quando ninguém estava olhando? Que seus abraços eram inconvenientes e invasivos e seus toques despretensiosos faziam com que ela se sentisse suja, baixa, vazia e sem valor? Sabia que a chamariam de louca. Ela se sentia louca, enlouquecida por essa incerteza, enlouquecida por ser incapaz de confiar em seus próprios sentimentos.

Enlouquecida por se questionar várias e várias vezes se isso estava mesmo acontecendo. Não fazia sentido que estivesse, ela provavelmente estava histérica. Foi o que ele disse da única vez em que ela conseguiu se forçar a dizer que queria que ele parasse. Parar com o quê?, havia perguntado, o olhar inocente e um sorriso no canto de seu rosto. Não estou fazendo absolutamente nada, Bianca. Você está louca.

Queria se jogar nos braços de Vicente, ali, parado na sua frente, oferecendo-a silenciosamente consolo, apoio e carinho. Sabia que ele acreditaria. Mas qual era o ponto? Em que mudaria sua vida? De que adiantaria? Sorriu para ele fracamente e se virou de costas, caminhando em direção ao restaurante onde Helena esperava por ela.

Foi fácil encontrá-la, sentada em uma mesa de plástico no canto esquerdo, a postura perfeitamente ereta enquanto levava o sanduíche à boca. Bianca estranhou a escolha de comida, não lembrava de já ter visto nada com tanto carboidrato no prato dela antes, mas nada disse. Em silêncio, sentou-se em frente a ela e esperou. Helena alternava mordidas no sanduiche e porções de batata frita, comendo tão rápido que Bianca não sabia como era capaz de respirar. Por fim, colocou o restante da comida na mesa, frustração emanando do seu ato.

— Aquela filha de uma puta — rosnou, e Bianca arqueou uma sobrancelha inquisitivamente. — Eu não sei quem ela pensa que é, mas eu vou acabar com aquele sorrisinho irritante naquele rostinho redondo daquela vagabunda! — Praticamente berrou, atraindo alguns olhares de pessoas que estavam sentadas em mesas próximas à sua. Irritada, voltou a rapidamente engolir o restante da comida na sua frente.

— Vou assumir que você está falando da Laura — Bianca pontuou. Como sempre, completou em sua mente.

Ainda não tivera oportunidade de interagir minimamente com a garota, mas já a odiava de tanto que a amiga reclamava seu respeito. Não entendia sua obsessão por Pedro, mas isso já era assunto antigo que desistira que tentar colocar senso. Agora já beirava o ridículo culpar uma garota que acabara de chegar por suas investidas falhas. Não era por causa de Laura que Pedro não estava com ela, Helena estava apenas usando a garota de bode expiatório para externar suas frustrações e isso estava drenando cada gota da sua saúde mental. De ambas, já que Bianca orbitava ao redor dela, sugava cada um de seus problemas para si. Daria a vida para ver Helena feliz.

Não sabia o que tinha acontecido para deixar Helena naquele estado, qual havia sido o estopim que a levou àquele ponto, mas permaneceu ali, em silêncio, enquanto observava a outra consumir em uma refeição mais calorias do que já a vira consumir em um dia inteiro. O burburinho começava a diminuir conforme o tempo passava, as pessoas gradativamente retornando às suas aulas, até que as duas eram praticamente as únicas a permanecer ali.

— Você já escolheu sua roupa para a Calourada? — Bianca perguntou, na tentativa de distrair Helena, que estava mergulhada no que parecia uma série de pensamentos homicidas. A organização daquele luau que aconteceria em algumas semanas ocupava todo o tempo livre em que ela não estava obsessivamente pensando no homem. A pergunta resultou em um sorriso fraco no rosto da amiga quando ela engoliu a última porção de comida na sua frente.

— Compras? — Helena perguntou e Bianca sorriu em concordância. — Bom, vá pegar sua bolsa e eu te espero aqui!

Bianca aquiesceu, um nó se formando em seu estômago com a ideia de ter que voltar ao laboratório e encarar Jorge, se ele ainda estivesse ali. Era como se ela fosse a errada da situação, fugindo, escondendo-se, tentando passar desapercebida como se fosse uma criminosa, quando seu crime na verdade foi ter nascido mulher. Relutantemente, levantou da cadeira e se dirigiu de volta ao prédio principal, a passos lentos, as palmas das mãos suando, o nervosismo e pânico voltando ao seu corpo em uma onda de desprazer.

Alheia ao sofrimento da amiga, majoritariamente porque era incapaz de reconhecer ou empatizar com quaisquer problemas que não os seus, Helena suspirou. Não é que não se importasse com Bianca, tinha um carinho verdadeiro pela garota. Mas se importava consigo mais e seus próprios dilemas ocupavam todo o espaço livre disponível em sua vida, então os outros que lidassem com seus próprios problemas.

Ela estava ocupada demais com seus demônios particulares.

Alcançando a bolsa no colo, aproveitou o último gole de suco no copo para enfiar garganta abaixo três pequenos comprimidos arredondados de gosto amargo e desejou que tivesse deixado alguma batata para trás para cobrir o gosto desagradável que sempre grudava em sua língua. Desfez-se das embalagens vazias e devolveu a bandeja à cozinha, apressando-se à saída e torcendo para que Bianca não demorasse. Precisava estar em casa antes de o laxante começar a fazer efeito.

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