Capítulo 7
20 de março
A garganta ardia. Seu estômago se contorcia por causa dos refluxos violentos, cada um trazendo consigo a dor e a vergonha. A bile ácida queimava as paredes de seu esôfago já muito maltratado pelos dedos sendo brutalmente enfiados garganta abaixo. Lágrimas escorriam por sua face, trazendo consigo fios negros de rímel borrado. Estava exausta, não sabia se chorava pela dor da violação auto infligida ou pelo desgaste emocional que vinha de bônus. Não aguentava mais, mas não conseguia parar. Era a segunda vez naquele dia e sequer tinha chegado a hora do almoço.
Deu descarga e viu sua vergonha e humilhação serem levadas esgoto abaixo, afastando de si a evidência que há muito havia deixado de ser uma ferramenta e se tornado sua obsessão. Colocou-se de pé, os joelhos avermelhados sendo descolados do chão recém-limpo, ainda úmido. Abriu a porta e caminhou em silêncio até a pia. Era a pior parte. Encarar seu reflexo débil no espelho era a pior parte. Encarar seus próprios olhos e ver o opaco esverdeado onde um dia habitaram esmeraldas apenas fazia com que tivesse cada vez mais raiva de si mesma. Da sua incapacidade de se manter sob controle. Tossindo, ela enxaguou a boca com a água exageradamente tratada com cloro, o gosto amargo grudando em sua língua.
Mecanicamente, retirou a pequena nécessaire da bolsa, arrancou um lenço umedecido da caixinha e pôs-se a limpar a maquiagem borrada. Sequer prestava atenção no que estava fazendo, as mãos automaticamente seguindo a rotina já tão conhecida.
O silêncio julgador foi quebrado quando a porta do banheiro se abriu e duas meninas entraram, falando alto, palavras indistinguíveis para os ouvidos contrariados de Helena. Uma das garotas se dirigiu à pequena cabine, não a mesma em que estava alguns minutos atrás, que ainda guardava o cheiro azedo de comida parcialmente digerida. A outra parou ao seu lado, de frente para o espelho, e começou a desembaraçar com os dedos hábeis os fios tingidos de um vermelho sangue. Helena observou de canto de olho enquanto a garota arrumava com o dedo o lápis de olho borrado pelo calor.
O som da descarga e do toque do telefone da garota ruiva vieram ao mesmo tempo, agressivamente altos. A ruiva indicou para a amiga, com a mão, que esperaria lá fora, enquanto se retirava com sua voz manhosa sendo dirigida a alguém do outro lado da linha.
Helena perdeu-se em si mesma naquele momento. Seus olhos vagaram pelo teto pintado em branco, pelos azulejos esverdeados dos quais nunca gostou. Era o tom errado, ela se sentia doente só de olhar. A pia grande em granito não fazia um trabalho melhor para adornar o ambiente e o espelho, o maldito espelho, ria da sua instabilidade, a mulher no reflexo contando uma história diferente daquela que ela lembrava ser a sua própria.
— Ei. — Ouviu, sendo despertada de seu torpor por uma mão delicadamente pousando em seu ombro. — Você está bem?
Helena virou em direção à voz e quis rir. Não sabia se era por desespero, se era porque estava perdendo a cabeça ou se porque a situação era tão trágica que merecia uma dose de risadas desajustadas. Dentre todas as pessoas da faculdade, é claro que seria Laura.
Aquela mulher estava em todo lugar, como uma maldita assombração.
— Ótima —respondeu com um sorriso gelado, voltando a encarar o reflexo patético no espelho enquanto as mãos terminavam de arrumar o cabelo.
— Tem certeza? — Laura insistiu. — Você não parece muito bem.
— E isso é da sua conta por que...? — Helena sibilou, encarando a garota fixamente nos olhos escuros que pareciam abrigar a chave para o fim do mundo.
— Tem razão, não é — ela reconheceu, levantando as duas mãos em sinal de rendição. — Me desculpe e tenha um bom dia — disse, virando-se em direção à saída.
Helena não soube bem, naquele momento, o que descarrilou a perda do pouco controle que lhe restava. Talvez a educação britânica da garota, talvez o fato de ela genuinamente parecer se se importar. Talvez porque estivesse cansada de ver Pedro flertar com Laura de todas as formas possíveis e ser dispensado em todas elas.
Tinha sentimentos conflituosos em relação a isso. A maior parte de si comemorava em silêncio cada rejeição, mas havia uma pequena parte doentia do seu ser que se sentia ofendida por a garota achar que Pedro não era bom o suficiente para ela. Havia, ainda, uma pequena parte, que ela se esforçava para reprimir, que estava intrigada. Curiosa sobre o que havia de tão especial sobre aquela garota na sua frente para fazer com que o homem dos seus sonhos se dedicasse com tanta exaustão. Helena não sabia qual das opções foi a causa, talvez todas juntas, mas quando deu por si já estava a ponto de voar no pescoço da mulher que seguia seu caminho sem se importar com o furacão que assolava a alma da outra.
— Qual o seu problema? — perguntou para as costas da garota, que parou com a mão na maçaneta e se virou em sua direção, esperando. — Não sei que feitiço você jogou em Pedro para encantá-lo assim, nem sei qual jogo você está fazendo, mas... — Helena parou no meio da frase, fechando os olhos e balançando a cabeça, exausta. Sequer tinha forças para continuar o ataque. — Só fica longe de mim. Fica longe das pessoas que amo. Me deixa em paz. — Praticamente implorou, debilmente.
Laura a olhou em confusão por um segundo, esperando por uma explicação que não veio. Não veio porque na mente de Helena a situação era cristalina. Sua obsessão por Pedro a cegava e privava de lógica sua mente que no restante do tempo era brilhante.
— O mundo não gira em torno de você, Helena — Laura disse, apenas constatando o óbvio, e viu ódio cintilar por trás dos olhos esverdeados da garota. Suspirou. — Mas se te acalma o coração, seu querido Pedro é a última pessoa que quero ver na minha frente, nem que esteja recoberto de mousse de limão com ganache de chocolate — debochou exageradamente. — E você devia fazer o mesmo. Olha, eu não te conheço, mas você parece uma pessoa pelo menos decente. Se afasta dele enquanto tem tempo.
Laura a olhava atentamente, o verde dos olhos de Helena externava emoções que não era capaz de entender. Reparou que ela segurava a pia com tanta força que os nós de seus dedos estavam esbranquiçados, mais do que sua pele pálida parecia ser capaz de aguentar. Parecia doloroso, e ela se perguntava qual o motivo para isso.
— Você não o conhece como eu — Helena respondeu com desdenho, virando-se de volta para o espelho, dando aquela conversa por encerrada, coisa que Laura ignorou, andando até onde ela estava.
Posicionou-se por detrás da garota, uma mão em cada braço fino, fazendo-a olhar em sua direção pelo espelho. Eram praticamente da mesma altura, uma magra e elegantemente vestida, a outra rechonchuda coberta por uma camiseta que dizia Já estava quebrado quando cheguei. Os dedos negros envolvendo a pele pálida, olhos se cruzando pelo reflexo revelador que não permitia fugas.
— Ele não te ama e você sabe disso — Laura disse, duramente, lembrando-se do seu encontro com Pedro algumas noites antes. Desde então vinha recebendo mensagens inoportunas nos mais variados horários. — Mas ele te trata como uma princesa mesmo assim. Está sempre ao seu lado, mas te mantém a um braço de distância. Faz questão de te lembrar o quão boa amiga você é, o quanto você é importante para ele. Diz que não quer estragar a amizade de vocês, não quer colocar em risco o que vocês têm, mas quem sabe um dia? Te beija na testa e afaga os seus cabelos. Se te vê conversando com outro homem, faz questão de te abraçar, segurar sua mão, qualquer tipo de contato físico que estabeleça domínio sobre você. E você acha lindo, acha que ele está com ciúmes. Acha que é o primeiro passo para ele finalmente perceber que te ama.
Laura cuspiu as palavras como uma metralhadora, disparando verdades indesejadas, e viu os olhos de Helena se arregalarem e seus lábios tremerem. Não precisava que a garota respondesse nada para saber que acertara em cheio.
— Ele não te ama e não vai te amar nunca. Mas vai sempre te manter por perto porque você afaga o ego dele. — Laura segurou com força os braços dela, deixando marcas rosadas onde repousam as pontas dos seus dedos. — Eu não preciso conhecer o Pedro, Helena. Ele é exatamente como qualquer outro homem manipulador e cafajeste, daquele que te chama de louca para se defender. Que te diminui. Qualquer coisa que se desenvolva entre vocês vai ser completamente abusivo. Já está sendo.
Helena permaneceu em silêncio, a mente dando cambalhotas. Estava irritada pela invasão na sua vida particular, desconcertada pelas palavras da garota. Queria que ela a soltasse, mas tinha medo de cair. Suas pernas estavam bambas, ainda não recuperadas da batalha que havia travado com o vaso sanitário, seu emocional estava desgastado e precisava de toda sua força de vontade para não irromper em lágrimas em um choro histérico.
— Você é linda, Helena. Você pode não acreditar nisso agora, mas não precisa dele para ser feliz — Laura insistiu, certa de que receberia mais uma vez silêncio em resposta, e se surpreendeu ao ouvir palavras saindo dos lábios rosados da mulher.
— Não te incomoda? — perguntou e Laura a fitou com o cenho franzido. — Seu corpo. Não te incomoda? — esclareceu, irritando-se quando a outra continuou a encarando com o semblante confuso. — Você está aqui, dizendo que sou linda, porque acha que eu preciso ouvir isso, como se minha autoestima precisasse de reparos.
Laura abriu a boca para explicar que não fora essa a intenção, mas foi interrompida pela mão da garota sendo levantada, demandando silêncio.
— Nós não somos nada parecidas. Se eu sou linda, o que é você? Não te vejo por aí pedindo elogios. Você anda pelos corredores como se tivesse o mundo aos seus pés. Não se incomoda com o que vê no espelho?
Se havia soado ofensiva aos ouvidos de Laura ela não sabia, mas sua pergunta não tinha nenhum significado oculto. Não estava dando a entender nada além do que suas palavras externaram. Olhava para a outra pelo espelho, observando-a com atenção. O que não conseguia ver, sua imaginação preenchia em detalhes aterrorizantes.
Imaginou-lhe a barriga recoberta por uma camada de gordura apertada pelo short jeans, a marca do elástico da roupa íntima queimando-a a pele ao fim do dia, a parte interna das coxas roçando umas nas outras conforme andava, provocando assaduras no dias quentes de verão. Tentou imaginar qual seria a sensação de carregar todo aquele peso extra todo o tempo. Como ela ia à praia? Helena sequer conseguia imaginar passar uma vergonha dessas, se prestar ao papel de aparecer de biquíni na frente de outras pessoas tendo um corpo como o de Laura. Verdade seja dita, não se prestaria a esse papel nem com o corpo que tinha agora.
Quando se olhava no espelho, tudo que conseguia ver era imperfeição. Havia dias em que concordaria com Laura, que olharia para seu reflexo e diria com convicção que era, sim, linda. Mas esse não era um daqueles dias. Sua autoestima variava em picos, deixando-a zonza com a inconstância, incapaz de prever se o dia seria bom.
Para ser honesta, não se lembrava qual tinha sido a última vez que teve um dia bom, a última vez que foi capaz de completar um ciclo de vinte e quatro horas sem que sua mente estivesse sempre ocupada contando calorias e destilando um discurso agressivo e tóxico para si mesma. Não lembrava como tinha começado, não lembrava como tinha chegado ali. E tinha medo de nunca conseguir parar.
— Não — Laura respondeu simplesmente, porque era verdade.
Era provável que todos tivessem suas preocupações e pequenas obsessões com seu próprio corpo. A barriga negativa que nunca é alcançada, a coxa ou muito grossa ou muito fina, o braço flácido. Celulite. Estria. A cobrança era ainda maior nas mulheres, a expectativa de que comessem com gosto, sendo tão criticadas aquelas que se limitavam à sucos e saladas quando saíam com os amigos, e, ainda assim de alguma forma manter seu manequim trina e seis. Laura estava satisfeita com o seu quarenta e quatro. Ela estava, sim, feliz com o que via no espelho. Amava-se com seus quilos a mais, não se torturava tentando se encaixar em um molde que não lhe cabia, sua saúde estava ótima e dançava na frente do espelho de calcinha.
Helena percorreu os olhos pela massa encaracolada que a outra carregava na cabeça, pensando que no lugar dela já teria alisado as madeixas há muito tempo. As três pequenas argolas coloridas na cartilagem da sua orelha esquerda faziam par com o piercing prateado em seu nariz. Comparou com sua própria pele, limpa e lisa, coberta de maquiagem para esconder espinhas traiçoeiras que insistiam em aparecer. Eram o completo oposto uma da outra.
— Você pode ir agora, já me importunou o suficiente — Helena disse, seca, interrompendo o contato visual refletido que mantinham até então, provocando na outra uma risada fraca que mais soou como um grunhido preso no fundo de sua garganta.
— Fique bem, Helena — disse, alcançando a maçaneta, e deixando a garota sozinha com seus demônios no banheiro mal decorado.
Bem. Ela não sabia o significado daquela palavra.
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