Capítulo 30

01 de agosto — o funeral

O dia ensolarado parecia zombar da situação. Talvez um temporal fosse mais apropriado ao enredo que se desenrolava ali, diante dos olhos de todos que, de pé, estáticos, apenas encaravam em silêncio e com lágrimas nos olhos a cena, sem que nada pudesse ser feito. De peito aberto, ferido, sangrando. Alma dilacerada. Coração incompleto.

Jamais seriam um inteiro novamente, porque Laura havia levado um pedaço de cada um junto consigo. E deixara um pedaço seu em cada um dos olhos que eram incapazes de conter as lágrimas.

Impotência.

Não há sentimento mais devastador do que ser incapaz de mudar o destino cruel que se abate sobre os que menos esperam.

Nem tudo que vem do céu é sagrado. Nem tudo que sai da terra brota das profundezas do inferno. Não há certo ou errado quando sua sanidade está em jogo e, encarando o caixão que lentamente era baixado em um buraco cavado na terra, era isso que Bianca repetia para si mesma, na tentativa vã de justificar o que fizera. Aplacava seu coração, ao menos, o fato de Pedro não ter se prestado ao papel de aparecer ali.

Mas via Helena, com seus olhos vermelhos e braços enrolados ao redor do próprio corpo. Em silêncio. A garota não proferira uma única palavra desde que chegara, horas antes. Não se aproximara de ninguém e encarou, com olhos perdidos, enquanto o último resquício da existência de Laura dizia adeus ao mundo.

Bianca prendeu seu olhar na silhueta distante da amiga enquanto ouvia um pastor dizer palavras decoradas que tão pouco se aplicavam à garota que tivera sua vida tão precocemente extirpada. Àquela altura, quaisquer palavras eram vazias, vãs, sem sentido e inúteis. Ela não ouviria nada que fosse dito. Quaisquer gestos de nada significariam agora. De nada serviriam se não para aplacar a culpa e para expurgar o peso da consciência daqueles que nada fizeram enquanto gestos ainda eram significativos.

Helena tremia, apesar da tarde abafada demais para uma tarde de julho. Bianca podia ver os ombros subirem e descerem em um choro copioso, estrangulado. E, quando a garota levantou a cabeça e seus olhos se encontraram, ela teve certeza: Helena sabia.

A ausência de Pedro em nada estava ligada com um suspiro de sanidade e bom senso da parte do homem. Não. Fora a ameaça esganiçada de Helena que, ao saber do que realmente acontecera, perdeu o último fio de equilíbrio emocional que a restava.

A cena seria engraçada, se não fosse pateticamente trágica. Circundando um túmulo aberto, o grupo de amigos evitavam olhar-se nos olhos. Evitavam encarar o que haviam se tornado. O que foram. O que ganharam e perderam juntos. O custo de cada ação parecia grande demais para ser deixado de lado.

Sentiam-se todos esmagados.

Sufocados.

Como se respirar fosse uma tarefa impossível, como se uma mão gigante apertasse seu pescoço impedindo que qualquer palavra escapasse por sua garganta.

Sufocada por palavras não ditas, por vidas não vividas.

Por vidas interrompidas.

Onde foi que as coisas deram errado?

Onde foi que tudo saiu do controle a esse ponto?

Onde, no caminho, fizeram a curva errada e se encontraram caídos no fundo do poço?

Caída no fim da escada com o pescoço quebrado.

Seria ótimo se pudéssemos olhar para trás a partir do ponto de chegada e analisar o percurso, e entender onde, no caminho, tudo começou a explodir.

Laura não teve a chance de analisar sua vida e ver o que poderia ter feito para evitar sua morte. O motivo para isso é que aquela história de que passa um filme em sua cabeça quando você está morrendo é mentira. Tudo que Laura viu foi medo.

Enquanto sentia seu corpo inutilmente bater nos degraus e as ondas de choque e dor acertar suas costelas, não teve tempo de ver que foi Pedro quem covardemente acabou com sua vida. Pedro que, com seus brilhantes olhos castanhos e sorriso sedutor, nunca aceitou não como resposta. Pedro que, com seu ego ferido, cercou, perseguiu, assediou, coagiu. Pedro que, com sua pose de cara legal, acreditou ter direito sobre a vida de outrem.

A verdade é que, no fim, pouco importa o que ela viu. A vida e a morte de Laura pouco importavam para a vida daqueles que, em um silêncio respeitoso velavam seu caixão pelos últimos segundos. Seu legado era o que importava. Sua voz. Sobre o que cada passo dado e cada palavra dita pela garota ocasionou, sobre como sua presença virou de cabeça para baixo aquelas relações tóxicas pobremente interligadas por um fio fino a ponto de arrebentar.

E o fio arrebentou no momento em que aqueles olhos de obsidiana invadiram suas vidas. No momento em que a primeira palavra saiu de sua boca.

Laura morreu, mas sua voz jamais iria embora. Impregnada na vida e na mente daqueles que a cercaram, Laura vivia. Sua voz era vida para todos aqueles ao seu redor, menos para ela. Laura morreu por tentar falar. Morreu por tentar dizer não. Por não aceitar calada o assédio, a perseguição, a insistência, as ameaças.

Mas sua voz viveu.

Sua voz viveu em Helena, que dia após dia lutava conta si mesma, contra o espelho que a acusava, contra os joelhos ralados batidos no azulejo frio do banheiro quando sua cabeça pende contra o vaso e da sua garganta saem jatos de acusações contra suas fraquezas, suas falhas, suas imperfeições. Lutava para que se enxergasse e não se afundasse em si mesma em um relacionamento abusivo que sugava todas as suas forças. Sua voz vivia e, impaciente, gritava que já tivera o suficiente. Implorava para parar. Ordenava que procurasse ajuda.

Sua voz vivia em Luís, que dia após dia lutava consigo mesmo, em busca da aceitação que procurava nos outros e não encontrava dentro de si. Lutava para se reconhecer como é, preto, pobre e gay, o ponto fora da curva da sociedade padrão em que estava inserido. Sua voz vivia e, impaciente, gritava em frente ao espelho, encarando seu reflexo, demandando que levantasse a cabeça.

Sua voz vivia em Vicente, que dia após dia lutava consigo mesmo, tentando sair da bolha em que se fechou com medo do mundo, com medo de si. Lutava para dizer em voz alta que sexo não definia amor, que era capaz de ter um relacionamento em que não fisse forçado a nada que não queira apenas para satisfazer as vontades egoístas de seu parceiro. Sua voz vivia e, impaciente, gritava para que se expusesse ao mundo, que encarasse a vida, que não tivesse medo.

Sua voz vivia em Bianca, que dia após dia lutava consigo mesma, tentando sobreviver. Um dia de cada vez. Perdida, ferida, violada. Drogada e estuprada, lutava contra a lâmina afiada que insiste em fazer o caminho sobre sua pele, só mais uma vez, porque a dor física era mais fácil de lidar do que os destroços que sobraram dentro de si. Sua voz vivia e, impaciente, gritava para não desistisse, para que cuidasse de si, para que desse um passo de cada vez. Para que denunciasse Jorge. Para que não permitisse que se perpetuasse uma cultura que sequer devia existir.

Mas Laura foi uma mulher só. Uma só voz. E, sozinha, é incapaz de mover o mundo. Sozinha, é apenas mais uma. Obsidiana fraturada caída no chão. Implorando ajuda.

Porque sua voz vive.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top