Capítulo 26
13 de julho
O caminho até a beira do abismo é um trajeto longo e silencioso, solitário como estar preso em meio a uma multidão. Vozes podem ser ouvidas, gritos e risadas, incentivos e palavras afiadas como navalhas que cortam a pele sensível debaixo da manga fina da blusa que esconde a verdade do mundo lá fora.
Verdade.
Verdade secreta, escondida, manipulada, omitida, distorcida para enganar tolos egoístas que não prestam atenção no mundo ao seu redor. É tudo uma questão de perspectiva. É tudo uma questão de enxergar o que lhe convém.
Verdade.
O que é a verdade?
A quem interessa a verdade, verdade de quem?
Não há verdade absoluta para espectadores, apenas lados histéricos gritando suas versões, suas histórias, enredos que fazem sentido em suas mentes, mas que tão pobremente condizem com a realidade do acontecido.
Ao fim da guerra, quem conta a história é o lado que vence e, tão rápido quanto o piscar de olhos, a verdade passa a ser a versão do vencedor. Do vitorioso. Do mais forte. Daquele que subjuga, diminui, abusa, maltrata, corrói. Ao vencedor, as batatas. Ao que perde, a eterna desgraça e humilhação, descrédito, julgamento, sofrimento impiedoso. Quem vai acreditar na louca histérica que grita entre lágrimas derramadas? Claramente uma descontrolada.
Verdade mentirosa contada em palavras certeiras que pintam o quadro perfeito para a exposição em praça pública. Mentira verdadeira que contada muitas vezes torna-se a versão oficial de um conto de fadas de final duvidoso. Toda história tem seu vilão, seu bicho-papão, seu lobo mau.
O lobo mau realmente mereceu morrer naquela história? A culpa foi mesmo dele? A pergunta desconexa percorreu a mente de Jorge enquanto ele, com seus grandes olhos, grandes orelhas e grandes dentes, observava a garota.
A história da pequena menina sorridente que, com sua capa vermelha e sua cesta de palha, saltitava pela floresta para visitar sua adorada avó. Ora, garota, o que estava fazendo na floresta, afinal? Não tinha sua mãe te avisado que ali morava o lobo mau? Por que, como boa menina que devia ser, não tomou o caminho mais longo, seguro, distante das suas vontades, protegida dos perigos do mundo? Vestida daquele jeito, sozinha, com seus grandes olhos castanhos, certamente estava pedindo para atrair alguma desventura. Não foi culpa do lobo ele ter te atacado, Jorge tinha certeza. Você estava pedindo por isso quando se embrenhou em seu território. Devia ter sido mais esperta que isso, garotinha. O animal sanguinário estava apenas seguindo seu instinto primal, seguindo o rosnado que reverberava o fundo da garganta, consumia seu juízo, controlava suas ações. Não foi culpa dele. Nada podia fazer para controlar seus instintos. Culpa da garotinha de capa colorida que se meteu onde não devia, se meteu com quem não devia, confiou demais. De nada podia reclamar. Pedira por isso.
Mais um conto de fadas com final feliz.
Para o lobo, é claro. Lobo vestido de vovozinha, lobo em pele de cordeio.
Pobre animal faminto que teve que recorrer a ardis tão escusos para ter suas necessidades saciadas.
Verdade fosse dita, Jorge não conseguia entender como a garotinha não via que ele era o bom samaritano da história. É verdade, teve sorte, na sua versão da história não teve caçador para impedi-lo. Não teve ninguém para impedi-lo. Ninguém jamais o impediria. Lobo carismático, envolvente, sedutor, com um belo sorriso caloroso e olhos brilhantes como caramelo derretido, palavras doces como o mel, escorrendo por seus lábios, adoçando ouvidos sedentos por um pouco de açúcar. Não havia quem visse o pobre lobo como vilão da história, ninguém além da garotinha da capa cor de sangue que insistia em espalhar suas lamúrias por onde passava.
Vadia mal-agradecida.
Havia lhe feito um favor e se irritava por ela não entender isso. O que ela esperava, desfilando para cima e para baixo com suas calças apertadas e blusas que tampavam mais do que deviam? Todo aquele tecido certamente escondia uma joia rara, pronta para ser descoberta, mina crua de diamantes almejando serem lapidados. Mesmo quando iam à praia, a teimosa garota recusava-se a oferecer o menor dos vislumbres daquilo que ele tinha certeza ser um pedaço do paraíso destinado às suas vontades.
Um riso seco escapou de sua garganta enquanto seus olhos devoravam sua silhueta acanhada do outro lado do salão. Ela não o tinha visto ainda, tinha certeza. Estava mais magra, e ele não gostava nem um pouco disso. Suas curvas fartas eram o que tinham chamado sua atenção desde o começo, desde o primeiro dia em que ela insistira em ficar tão feliz por ter feito um amigo tão maravilhoso logo nos primeiros dias de aula, quando ela pobremente confiou a ele seus segredos e inseguranças, suas dúvidas e incertezas. Ele esperava que ela não estivesse sucumbindo à neurose ridícula de Helena e tentando parecer uma adolescente de treze anos, reta como uma tábua. Pedro talvez gostasse daquela porcaria que ela tentava fazer, mas Jorge gostava de mulheres de verdade.
Gostava de osso, carne e curvas como Bianca era.
Ele ainda lembrava das curvas dela sobre suas mãos, com um sorriso doentio no rosto analisava a garota ao longe, deleitando-se da memória. Ela era doce, submissa sobre seu corpo, sujeita às suas vontades. Bufou ao lembrar de Pedro e seu discursinho besta, sua tentativa ridícula de tentar repreendê-lo. Você pode ter a mulher que quiser, por que não deixou a garota em paz? Um belo de um hipócrita, tentando dar lição de moral enquanto perseguia Laura ladeira abaixo até o fundo do poço que ele próprio estava cavando. O que Pedro não entendia, o que Bianca não entendia, era que nunca tinha sido sobre sexo. Sem dúvidas, ter a garota fora um bônus do qual ele não reclamava. Mas tê-la era sobre poder. Sobre firmar sua dominância. Perdera a conta de quantas vezes vira Pedro fazer aquele papel ridículo de cachorrinho sem dono implorando por atenção. Jorge não implorava. Ele tomava o que achava ser seu de direito.
Talvez nem mesmo Jorge tenha se dado ao trabalho de vasculhar seus anseios criminosos com profundidade o suficiente para entender a motivação por trás do que fizera. Ele a queria e a tomou, como o homem mimado de ego frágil que era, tomou posse do que não lhe pertencia por ser incapaz de aceitar a rejeição. Precisava mostrar para ela que quem mandava era ele, que ele tomava as decisões e ela não tinha o direito de negá-lo. Não quando ele tinha tanta certeza de ela o queria, só não sabia disso.
Pobre garotinha dos cabelos ondulados, não sabia o que era bom para si. Perdida em seus sentimentos confusos, atraída por alguém que jamais a quereria, que jamais deveria querer. Atração nojenta, inaceitável, que servia apenas para alimentar fetiches masculinos e que em nada deveria ser usado para satisfação pessoal de uma mulher atraente como ela.
Desperdício.
Cada dia que passava em que Bianca se recusava a entregar-se a um homem era um desperdício imperdoável. Jorge nada fizera além de tomar o que do mundo era de direito. O que dele era de direito. Afinal, como a garota poderia saber que não estava interessada, que não gostava de homem, sem nunca ter tirado a prova.
Ele fora a prova.
Tinha certeza que ela só dizia aquilo para provocá-lo, para instigá-lo, para testar seus limites.
De nada, querida. Ainda estava esperando o agradecimento. Mas pelo visto havia passado tempo o suficiente com sua querida Helena para começar a perder os bons modos.
Helena... Ele estava surpreso de não ver a garota ao lado de Bianca, não tinha visto a duplinha dinâmica tão junta nos últimos tempos. Helena não se comportando como abelha rainha e exigindo que o mundo se prostrasse aos seus pés era novidade. Talvez Pedro tivesse finalmente dado um jeito na garota. Era uma pena que Bianca tivesse ficado tão desinteressante nos últimos tempos. Jorge observava a garota com uma nuvem de decepção cobrindo seus olhos ferozes, lamentando o quão apagada ela parecia. Um pecado.
Talvez ela precisasse de uma bebida para se sentir melhor, ele pensou, enquanto a seguia até o estacionamento.
***
Os fones de ouvido estavam de volta isolando-a do mundo enquanto caminhava de volta em direção ao carro. Em uma respiração profunda, Bianca permitiu que o ar gelado daquele fim de tarde inundasse seus pulmões, acalmando suas batidas descompassadas. Repetia para si mesma, em um coro desconexo, que estava tudo bem. Que podia permitir deleitar-se da música pulsante em seus ouvidos sem pressa, sem medo. Que a vida, dia após dia, começava a voltar à sua normalidade, que não podia prender-se ao passado por toda a eternidade. Que dependia dela seu processo — lento — de recuperação.
A consulta com a psicóloga havia sido produtiva. Tão produtiva quanto possível para sua alma inquieta que não obedecia a comandos. Puxando a manga do casaco, tentava esconder as marcas de violência auto infligida. Não tinha unhas longas o suficiente para causar o dano que julgava necessário então carregava consigo, escondida no fundo da carteira, uma lâmina afiada que ansiava por tocar sua pele. Da primeira vez, a dor foi maior do que achou que pudesse suportar, depois a culpa a atingira tão forte quanto um soco no estômago e foi quando se deu conta: qualquer que fosse sua ação, a dor estaria presente, e a dor física era mais fácil de lidar do que a devastação emocional.
Do que a raiva que se acumulava em seu peito. Raiva de Jorge, raiva de si mesma. Raiva do mundo ao redor. Descontava em si o ódio que ameaçava pingar por sua pele, escapar por sua língua, atingir aos murros quem estivesse em sua frente. Mal podia se reconhecer, certamente quem estava ao seu redor não conseguia ver nela nenhum resquício da garota tímida e doce, perdida em universo particular, sorridente e receptiva que sempre fora. Estava desesperada para se encontrar e não sabia sequer onde começar a procurar entre os destroços da cidade sem lei que se tornara seu coração
Conforme os dias se passavam, não havia cortes o suficiente que amenizassem sua frustração, sua dor, a inquietação que borbulhava em seu peito. Viciara-se. Podia ter se afogado no álcool ou drogas mais fortes, mas seu vício se tornou a lâmina afiada. Era sua forma doentia de retomar controle sobre seu próprio corpo; ali, em meio aos fios de sangue que escorriam, sentia-se novamente dona de si, dona da sua dor. Perdia-se cada vez mais tentando se encontrar.
Não queria realmente se ferir, só queria sumir. Queria que tudo parasse, que a dor acabasse. Sentia-se derrapando cada vez mais para o fundo do abismo que a chamava pelo nome. Tinha medo. Não se importava. Queria que tudo acabasse. Não queria morrer. Queria gritar. Queria sumir.
Mas a consulta com a psicóloga havia sido produtiva. Tão produtiva quanto possível para sua alma inquieta que não obedecia a comandos. Por isso, abriu a carteira e jogou na lixeira a lâmina que sedutoramente implorava para ser usada. Era sua tarefa do dia. O amanhã ao futuro pertencia.
***
— Como você está, Bica? — A mão de Bianca estava na maçaneta do carro quando um arrepio percorreu sua espinha, arrepiando cada fio de cabelo de seu corpo. Reconheceria aquela voz até no inferno, que tinha certeza ser para onde iria se colocasse em prática tudo o que queria fazer com Jorge. Teve nojo do apelido que lhe fora dado anos antes, logo que se conheceram, quando acreditou em sua amizade antes do assédio começar. Quando confiou nele com todo seu coração. Como ela estava? Quem era ele para achar que tinha o direito de querer saber como ela estava? O silêncio foi a única resposta dada, simplesmente porque ela era incapaz de mover os lábios sem permitir que lágrimas rolassem por seu rosto e não daria a ele a satisfação de ver seu sofrimento.
Não mais do que já havia tomado dela.
Ela viu o exato segundo em que um brilho de raiva cruzou seus olhos e ele trincou seu maxilar. Odiava ser desafiado. Odiava ser questionado. Odiava ser contrariado. Pedro parecia uma criança indefesa perto do homem de fios dourados. Impaciente, ele passou as mãos no cabelo, tirando do rosto os fios que caíam nos olhos.
— Só queria ter certeza de que você recebeu o convite da minha festa. — Ela não tinha, e ele sabia. Sabia que não tinha enviado convite nenhum, nenhuma mensagem, nenhum contato. Não perderia a oportunidade de encurralá-la, intimidá-la. De se fazer presente e não deixar que ela esquecesse sua presença por um segundo sequer. Cara a cara. — Parece que você precisa se divertir.
O maior dano fica após a agressão. Ali, de pé, olhando Jorge, sentindo seu cheiro opressor, ouvindo sua voz que parecida tomar todo o ambiente aberto, Bianca não conseguia saber o que era real. A cada passo, a cada batida de coração, questionava sua realidade, suas ações, seus pensamentos. Pensamentos desconexos que pareciam se perder no mundo, espalhados pelo vento, sussurrados ao léu, perdidos em falas desconexas. O sorriso no rosto do homem desestabilizava suas certezas. Não conseguia encaixar no homem de sorriso fácil e feições calorosas o monstro que destruíra sua vida. Como se tudo não passasse de um sonho distante, pesadelo sem fim, e ela fosse constantemente torturada no limbo onde sua mente estava presa.
Não sabia para onde ir, não existia porto seguro, o barco que carregava sua sanidade navegava sem rumo, perdido no mar revolto de ondas tempestuosas, procurando onde atracar, sem nunca encontrar a luz do sinalizador em meio à noite escura sem fim. Não importava quantas vezes dissessem que de nada podia se culpar, repassava incessantemente aquela noite em sua mente, vasculhando, desmembrando cada segundo, tentando descobrir onde errou. Ainda que por vezes acreditasse que em nada podia se culpar, renegava a si mesma. Cada passo que dava em direção à superfície parecia ser compensado por uma rasteira que a enviava novamente ao fundo do poço, privando-a do sopro de ar fresco que por um segundo, um instante apenas, tocou sua pele.
— Te espero lá.
Quando, antes de ir embora, Jorge se inclinou em sua direção, segurando seu queixo entre seus dedos, com força, marcando sua pele, e depositou um beijo cálido em sua bochecha, que queimou seu rosto como ácido sendo derramado sobre ferida aberta, ela quis vomitar.
Sabia que não existia quantidade de banhos o suficiente que faria com que se sentisse menos suja. Nunca se sentiria menos suja.
Não tinha mais poder sobre sua vida e precisava tomá-lo de volta antes que sucumbisse ao escuro que devorava sua alma. Não sabia se algum dia voltaria ao ponto de partida, se voltaria a menina que se perdeu naquela noite.
Não sabia se venceria essa batalha.
Tudo que podia fazer era tentar igualar o placar.
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Oi.
Enrolei o máximo que pude para dar voz ao Jorge, porque no meu mundo perfeito ele nem existir existiria, muito menos teria espaço pra falar. Mas julguei necessário, infelizmente, e estou deixando essa nota em nome da minha paz de espírito para dizer que a voz do personagem não condiz em nada com a voz da autora, e quem quiser encomendar o assassinato dele eu tô dentro. A gente faz uma vaquinha pra pagar o matador de aluguel.
no demais, livro está entrando na reta final, faltam mais 5 capítulos aaaaa
Obrigada por estarem acompanhando a história, amo muito vocês <3
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