Capítulo 25

10 de Julho

Não fazia tanto frio. Ficou feliz por ter levado a tal saia e ter sido capaz de dispensar a meia-calça, exatamente como ele gostava. Olhando-se no espelho do carro de Bianca, ela admirava seu próprio rosto, sentindo falta do vermelho em seus lábios, achando-se pálida. Forçando um sorriso no rosto, repetiu a si mesma que estava tudo bem.

Era cedo de manhã e o estacionamento do campus não estava tão cheio quanto ficaria nas próximas horas, então Bianca não teve problema em estacionar. Quando ela desligou o carro e soltou o cinto de segurança, suspirou fundo, olhando para Helena pela primeira vez desde que entraram no carro para aquela viagem curta e silenciosa.

— Você está bem? — perguntou, ao mesmo tempo preocupada e já irritada com a resposta que receberia. Era Pedro, tinha certeza. E ela estava cansada daquele garoto, vinha se cansando dele ao longo dos anos, mas o encontro dos dois na noite de sábado tinha sido a gota d'água. Ficava impressionada com a forma como o mundo da amiga girava em torno de uma só pessoa, pessoa essa que não fazia questão nenhuma de disfarçar sua indiferença.

Teve vontade de gritar com ela, chacoalhar seus ombros cada vez mais finos, fazer com que Helena a encarasse com aqueles olhos verdes que pouco a pouco perdiam seu brilho. Quis gritar, dizer que parasse de se afundar dessa forma, que parasse de permitir que o fundo do poço a atraísse com tanta força, que virasse as costas e deixasse de lado o que tanto a fazia mal. Quis gritar, dizer que um monstro não deixa de ser um monstro só porque te afaga à noite, que ela precisava enxergar Pedro pelo que era e não pela fantasia que criara em sua cabeça.

Ele não era seu príncipe encantado, não iria resgatá-la montado em um cavalo branco e jurar seu amor e lealdade a ela por toda a eternidade. Aquilo jamais aconteceria. A raiva que borbulhava sob a pele de Bianca a assustou. Nunca foi dada a rompantes e estava a ponto de ter um, ali, olhando nos olhos doídos daquela que deveria ser sua melhor amiga. Quis gritar com Helena e exigir que ela enxergasse quem verdadeiramente se importava com ela, quem realmente sempre estivera ao seu lado, e a constatação disso a assustou.

Bianca, sempre tão dedicada e disposta a mover o mundo pela outra, viu-se pronta para virar as costas para ela. Quando isso tinha acontecido? Quando a devoção foi quebrada, substituída pela realidade bruta de que aquela amizade, amizade que Bianca por muito tempo quis que fosse mais, não era como antes? Ela não se sentia como antes. Naquele ponto, sequer sabia o que sentir significava. Os únicos sentimentos que conhecia eram dor, medo e raiva.

— Tudo ótimo — Helena respondeu em um tom falso já conhecido pela outra, que não se incomodou em insistir. Saiu do carro e esperou que Helena fizesse o mesmo para travar a porta. Sentiu, surpresa, quando a outra tomou seu braço, entrelaçando-o ao seu e lhe sorriu candidamente. — Senti sua falta.

E ali estava, o sorriso carinhoso, os olhos reluzentes, a aura contagiante de Helena à qual Bianca havia sido submetida por tanto tempo. Seu efeito, contudo, não era mais tão intenso e Bianca podia facilmente enxergar a dor por detrás da aura imponente da mulher. Era curioso ver que Helena não estava mais dando as cartas.

Permitiu-se sorrir de volta e desfrutar do resquício de normalidade, fingir que tudo era como sempre fora e que sua vida não estava de cabeça para baixo. Tinham alguns minutos antes da aula começar e Helena as guiou até ao Diretório Acadêmico, a saleta no primeiro andar onde passaram tantas tardes. Sentiu o celular vibrar e apanhou o aparelho do bolso, desbloqueando a tela.

Helena tentou espiar pelo canto de olho o que havia roubado a atenção de Bianca, mas se distraiu ao ver Luís. O homem, de pé em um canto do corredor, conversava animadamente com Vicente. Não se falavam há meses, nada além do que cumprimentos forçadamente educados e olhares desviados. Enquanto ouvia os dedos agitados da amiga batendo da tela rachada do celular, encarou a dupla que era um mistério para ela.

Percebeu tarde demais que havia sido pega em flagrante quando Luís a encarava de volta, seus olhos presos aos dela interrogativamente. Teve vontade de desviar o olhar, ainda envergonhada, mas forçou-se a sustentar a comunicação silenciosa, até que, contrariando suas expectativas, ele sorriu. Não um sorriso sarcástico e destilando veneno como ela esperaria — como ela faria —, mas um sorriso que externava toda a paz que ele estava sentindo. Paz que Helena desconhecia.

Desestabilizada, permaneceu imóvel, encarando-o boquiaberta, até que Vicente, até então de costas para ela, percebendo a distração do outro, olhou em sua direção, acenando-lhe com a cabeça antes de voltar para a conversa, tomando a atenção de Luís para si.

Nunca foram amigos, mas nunca antes havia se sentido tão forçadamente isolada. Antes, ela não queria a companhia deles. Naquele momento, tinha a impressão de os dois prefeririam andar sob lava quente a estar em sua presença.

Foi um segundo, um segundo apenas, não mais demorado do que um piscar de olhos, ou o bater de asas de uma borboleta, mas para ela, parada, ali, remoendo seus atos e inseguranças, pareceu durar uma eternidade. O infinito suspenso no ar.

Uma mão tocando seu ombro trouxe-a de volta à realidade, fazendo seus olhos encontrarem as piscinas de âmbar derretido que adornavam a face daquele que tirava seu sono e, todos os dias, despedaçava e reconstruía seu coração. Curvando-se em sua direção, Pedro depositou um beijo suave em seus lábios sedentos por atenção. Desejosa, necessitada, ela entregou-se ao carinho vindo como se nada tivesse acontecido, como se o final de semana fosse apenas um buraco negro em sua memória distante. O toque firme da mão dele em sua cintura era possessivo, demandando sua atenção exclusiva, marcando território como quem finca bandeira em terreno inexplorado. Quando sua boca a libertou, os olhos deles brilhavam, fazendo promessas que não tinha a intenção de manter, contando mentiras elaboradas o suficiente para que ela acreditasse e não questionasse suas atitudes.

— Você está linda — Pedro disse, segurando o rosto dela em sua direção, fazendo-a sorrir e desmanchar-se sob seu toque. Pedro sorriu em resposta, vitorioso. Ao passar o braço ao redor da cintura dela e afundar o rosto de Helena em seu pescoço, sabia que tinha acabado de evitar uma conversa longa e entediante sobre o que acontecera no final de semana.

— Vou estar lá dentro. — A voz de Bianca parecia um zumbido distante aos ouvidos de Helena, concentrada exclusivamente no seu homem naquele momento. Ela murmurou que encontraria com ela mais tarde, mas, se estivesse prestando atenção no mundo à sua volta, teria percebido que a amiga não tinha se dirigido a ela. O tom de voz seco e cortante e o olhar ferino eram destinados a Pedro, um aviso claro de suas intenções.

Um aviso claro que ele não se atrevesse a chegar perto dela.

***

Reciprocidade. Não há nada mais doloroso na vida do que esperar retorno. Quando alcançada, o paraíso parece estar ao alcance de uma mão, os dias ficam mais coloridos, o ar mais leve, tudo tem gosto melhor. Quantas vezes não foram quebradas, contudo, tais expectativas? A mágoa e a dor crescente no coração machucado, a frustração e decepção que parecem não saber no peito. O aperto no peito por saber que você não é tão importante para aquela pessoa quanto gostaria.

A pior parte das expectativas não atendidas, contudo, é que não há ninguém a culpar além de si mesmo. Ninguém é forçado a se dedicar ao outro, estender a mão, oferecer ajuda; não há obrigação alguma na tentativa de agradar aquele que, inadvertidamente, conquistara seu coração. Ver brilhar os olhos aos quais tão arduamente sua dedicação foi entregue. Ver gestos de carinho e amor sair da boca daqueles que, por mais que valorizem sua presença, jamais sentirão sua falta. E que reclamação você poderia fazer? Dissertar sobre suas expectativas quebradas e ouvir que nada lhe fora pedido? Que todo o esforço fora dedicado porque você quis?

Tantas noites mal dormidas, tanto carinho entregue, tanto cuidado oferecido. E o doce mel que escorre pelos lábios do outro não é destinado a você. Não há ninguém a culpar além de si mesmo quando a balança está desigual, o peso pendendo para um lado que, desesperadamente, tenta equilibrar o que já está quebrado, insistindo em algo sem conserto. O quanto de amor foi posto naquele simples gesto? Amor não correspondido, amor sequer notado. O agradecimento foi feito, é claro. É verdade que a sua presença é notada, querida, apreciada. Mas quando ausente, dispensável.

Mas ao olhar em seus olhos feridos, quanto tempo levaria a esse outro para enxergar a dor ali presente? Os gritos silenciosos não são externados, a necessidade por atenção jamais sanada. O buraco no peito, cada dia maior, alimentado por seus próprios demônios, culminando no ciclo eterno de autodestruição. Será que essa outra pessoa perceberia o desespero por trás do riso forçado que escapa por sua garganta? Perceberia o pedido de ajuda contido nos dias a fio de silêncio esmagador? Perceberia a sua vontade de deitar em posição fetal e chorar até o dia esteja acabado? Até que tenha forças o suficiente para limpar o rosto e sentar ao lado desse alguém, repetindo que não se deve levar em conta o que outros dizem, que não importam as dificuldades da vida, que tudo vai ficar bem. Até conseguir colocar o sorriso falso no rosto e ouvir os problemas daquele com quem você tanto se importa, e que é incapaz de retribuir o menor dos gestos. Até que sua voz esteja forte o suficiente para que repita, em alto tom, que não há ninguém mais bonita que ela, que você importa, que a vida dela é sagrada para você.

Até que esteja pronta para dizer aos outros o que ninguém diz para você. O que ninguém se importa o suficiente para dizer.

Será que essa pessoa notaria?

Não.

Um dia na presença de Helena, e todos seus medos e inseguranças a atingiram novamente, como bola de destruição passando por cima de um trabalho de construção cuidadoso e frágil. Cinco minutos na presença dela perto de Pedro e a raiva mal contida ameaçava escapar por seus poros por ver aquela que tanto prezava deleitando-se da sujeira à qual o homem à sujeitava. Ignorando sua presença. Jamais reconhecendo o quanto fora feito por sua felicidade. O quanto de apoio fora dado. O quando de amor dedicado. Um sorriso — sincero, até — e um agradecimento vazio era tudo que sempre havia recebido, tudo que um dia jamais receberia.

Sentia-se a ponto de explodir. O ódio que sempre sentira por Pedro havia aumentado em proporções nunca antes vistas nos últimos dias, e a simples presença dele a sufocava. Era curioso que se sentia assim em relação a ele, mas não dirigia metade dessa revolta à Jorge.

Era um pensamento doentio que a assolava há meses, mas a verdade é que, por mais raiva que tivesse de Jorge, ele jamais havia inventado justificativas para seu ato. Seu mau-caratismo era real e sequer tentava disfarçar. Criminoso, baixo, sujo, doente.

E, ainda assim, fora Pedro que a empurrara até o limite. Com seu sorriso no rosto e sua postura de cara legal, o tom de voz de quem só quer seu bem, o brilho nos olhos de quem está pronto para vender a alma ao diabo enquanto recita versículos bíblicos. Pedro nunca achava que estava fazendo nada de errado.

— Bianca. — A voz de Laura a chamava para si, arrancando-a do poço de veneno que cultivava em seu peito. O ar condicionado, gelado e barulhento, não precisava estar tão forte. Ela via a nova amiga se enrolar dentro de um casaco fino, sem nunca reclamar, seus olhos de obsidiana encarando-a com preocupação.

Bianca precisava do vento gelado sobre si. Sentia-se perto da combustão, sua pele pegava fogo, fogo que ardia dentro de si, pinicando, agitando-a, fazendo-a inquieta. Estava atrasada para a aula; talvez sequer fosse. Tinha medo de sair daquela sala e ir de encontro a Pedro com punhos fechados.

— O que ele fez pra você estar assim? — Laura não precisava explicar as entrelinhas da pergunta. Havia uma lista interminável de coisas que Pedro havia feito, todas justificando o estado de espírito de Bianca. Ela mesma havia extrapolado a cota com o rapaz no final de semana, aos gritos mandando que a deixasse em paz, exausta, sucumbindo às lágrimas no banheiro, temerosa, insegura, cansada de lutar, cansada de perder.

O que inicialmente deveria ter sido uma reunião entre os alunos da turma de Laura, na tentativa desastrada de estudar para as tão temidas provas que se aproximavam, rapidamente se tornou uma festa não planejada na casa de Beatriz que, desesperada, repetia que seus pais iriam matá-la quando chegassem. Aproveitando-se da bagunça, Laura convidara Bianca a se juntar a eles, com a esperança de que a distração faria bem para a cabeça conturbada da menina. Não tardou para que Pedro aparecesse no apartamento com Jorge a tiracolo, nem para que Bianca chegasse à beira de um colapso após sair de suas vistas por um minuto. Naquele momento, Laura havia assumido que a presença de Jorge havia ativado gatilhos pobremente adormecidos, e foi quando mandou uma mensagem para Pedro ordenando que ele tirasse o amigo do caminho quando ela resolveu levar Bianca para casa. Mas estava enganada; não havia sido Jorge o causador de tal rompante.

— Ele olhou na minha cara — lágrimas começaram a rolar pelo rosto pálido da garota —, aquele filho da puta olhou na minha cara e me perguntou como eu estava. Se eu já estou melhor.

Demorou um segundo para que Laura entendesse o sentido por trás das palavras ditas. Pedro não se importava com nada além do que cabia em suas calças, não foi por preocupação ou empatia que fizera a pergunta. Ele sabia. Sabia o que Jorge tinha feito e, calando-se, compactuou com as ações do outro.

Havia uma linha traçada, um limite estipulado. Por mais baixo que Pedro fosse, aquilo ultrapassava o elas podiam esperar dele. Puxando Bianca para seu colo, Laura, pela primeira vez em muito tempo sem saber o que dizer, acariciou seus fios embaraçados com os dedos.

— Ele disse pra eu tomar cuidado com o que eu andava falando por aí — Bianca continuou, a cabeça afundada no ombro da outra. — Que as coisas podem acabar ficando piores.

A ameaça velada não passou despercebida por Laura. Quando achava que o fundo do poço havia sido atingido, um buraco mais fundo era cavado. Deixou que Bianca chorasse e xingasse os dois o quanto quisesse, segurando-a contra si, oferecendo todo o suporte necessário. Precisou morder a língua incontáveis vezes para que não implorasse para ela denunciá-los — os dois, agora, pela agressão e pela ameaça. Mas sabia que seria em vão; entendia a reticência da amiga.

O que não entendia era como o mundo podia ser habitado por pessoas tão podres. Não entendia como a vida podia ser tão injusta. Não entendia como era fácil calar a voz de alguém e tão difícil tentar gritar.

Não entendia como uma ferramenta tão poderosa era restrita àqueles que a utilizavam para o mal.

A voz de Bianca não tinha força.

A sua própria voz, sempre tão imponente, começava a perecer em sua garganta, cansada e abatida.

Apagada.

Silenciada.

Fraturada.

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