Capítulo 22

28 de julho — a festa IV

Laura viveu sua vida inteira com a certeza de que o inferno era quente. Almas pecadoras sofrendo por toda a eternidade sob as labaredas da perdição. Semblantes destorcidos daqueles que há muito perderam a batalha para os demônios. Quase duas décadas de vida foram necessárias para que ela entendesse que não há demônio mais perigoso que certezas depostas.

Que de quente o inferno só tinha a fama, mas na verdade era frio como o gelo que congelava seu coração sem esperança. A verdade é que ela nunca imaginou se ver nessa situação. Nunca imaginou que cada passo da sua vida a levaria ali. Naquele momento. Naquele lugar.

A música alta e agressiva embaçando seus pensamentos, tirando de si a capacidade de raciocinar com clareza. Sua visão, nebulada pela áurea de incerteza, pulsava em vermelho, cor da raiva que sentia, do tormento que a consumia, da dor que irradiava de cada poro de sua pele e percorria cada veia, cada célula, cada fibra de seu corpo, intoxicando-a. Envenenando seu sangue, sua alma, sua voz.

Gostaria de dizer que estava em pleno controle de suas emoções. Gostaria de ser capaz de mentir para si mesma e dizer que nada além da mais imparcial razão comandava seus passos quando ela fechou a porta do quarto atrás de si com uma batida seca, colocando uma barreira entre si a Bianca, e Helena, e Pedro. Gostaria de conseguir se convencer que não era o ódio cego, a inconformação que torturava seus dias, que guiava cada movimento de seu corpo naquele momento.

Gostaria.

Mas não o fez.

— Como você consegue dormir à noite? — Em sua mente, as palavras foram ditas destilando veneno, naquele tom de voz perfeito para acertar o ponto fraco e cutucas as feridas, para fazer doer. Mas no momento em que subiram por sua garganta, queimando suas cordas vocais, as palavras soaram como um grito estrangulado, esganado, desesperado, enlouquecedor. Seu autocontrole estava por um fio, pendendo na beira de um abismo, amarrado por um nó fraco e malfeito a ponto de partir.

Qualquer um que a olhasse naquele momento veria a histeria vazando por seus poros, escorrendo por seus olhos como chuva ácida que destrói plantações – e vidas. Ouviria os gritos silenciosos. Sentiria a onda de desespero invadindo o ambiente.

E não entenderia o motivo.

Laura mal entendia.

Havia tomado para si as dores alheias e as misturado às suas próprias com tanta precisão que não conseguia mais discerni-las. Na tentativa de diminuir o peso daqueles que a cercavam, acabou, involuntariamente, tomando para si o peso, como Atlas, apoiou o mundo em suas costas, e, agora, sentia seus músculos repuxarem, lutando contra o peso esmagador do céu que ameaçava cair.

Quando Jorge a olhou, por cima do ombro, os olhos acusadores penetrando sua pele, seus sentimentos desordenados pareceram se alinhar, como planetas que orbitam, como estrelas mortas que brilham no céu escuro. Foi o desdenho. O desdenho em sua expressão, o menosprezo descarado que fluiu, líquido como plasme, quando ele a olhou de cima a baixo, analisando sua postura, sua presença.

— Eu fecho os olhos — ele respondeu, inclinando a cabeça para o lado, mastigando as palavras como se falasse com uma criança que precisa de explicação para as coisas mais simples —, é assim que eu durmo.

Ele se virou em sua direção, projetando seu corpo sobre o dela. O presidente da atlética, jogador de elite do time da faculdade. O porte altivo e imponente sendo usado a seu favor. Intimidador. Sobrepujante. Ameaçador.

Ela não conseguia começar a entender o que Bianca sentiu naquele dia, naquela noite, abandonada à própria sorte — ao próprio azar. Não chegava perto de entender o desespero e o sentimento de abandono que era se ver obrigada a, todos os dias, se forçar a sair da cama e, como se não fosse difícil o suficiente, enfrentar Jorge, encarar seu agressor. Todos. Os. Dias. Não ouvia os gritos que ecoavam na cabeça da outra, o nó na garganta e o gosto de bile constante. Não sentia as facadas invisíveis que cortavam a pele, pinicavam a alma, corroíam a mente. E, mesmo sem saber, mesmo sem sentir, se viu dando um passo para trás quando ele andou em sua direção.

Ali na sua frente não via somente Jorge. Via Pedro e sua perseguição interminável. Via Eduardo e o relacionamento abusivo que lutara tanto para sair. Via o homem sem face tocava seu corpo sem permissão quando perdida em meio a uma multidão. Via os passos silenciosos que a seguiam na noite escura na volta do trabalho. Via os olhos ameaçadores. Via as palavras amedrontadoras.

Não vacilou quando ele se aproximou, curvando-se sobre ela, seu rosto a centímetros de distância. O hálito quente contra sua pele queimava como ácido, soda cáustica jogada em seu rosto.

— O que você está fazendo aqui? — ele perguntou. — O que você acha que vai acontecer? Que eu vou sentar e ouvir ao discurso da Tia Laura e cair de joelho aos seus pés arrependido dos meus pecados? — O deboche em sua voz era palpável. — Veio atrás de mim pra que, garota?

Ela não sabia. Para gritar, era a resposta que estava na ponta da sua língua. Mas a troco de que? Laura sempre se orgulhou da sua racionalidade, sua capacidade de analisar situações. Não negava a si mesma que estava perdendo o controle. Estar cercada por aquelas pessoas estava consumindo sua sanidade mental, drenando pouco a pouco seu juízo.

O que estava fazendo ali?

O que ainda estava fazendo ali? Naquela casa, naquela festa. O que fora fazer ali para começo de conversa?

Bianca precisava dela, essa era uma resposta plausível. E o que Bianca estava fazendo na casa de Jorge? A garota implorou para que Laura fosse para a festa com ela, que não a deixasse sozinha. Mas o motivo para ela querer estar lá, isso era um mistério.

Os olhos dela, as duas bolas perfeitamente redondas que habitavam seu rosto, pela primeira vez em meses estavam adornadas com determinação. Bianca parecia ter um objetivo. Laura não sabia o que era, mas estava satisfeita em ver um brilho, qualquer que fosse, em seu semblante. Tinha um mal pressentimento quanto a isso, mas o entusiasmo no pedido a desarmou.

Bianca precisava dela. Era isso que estava fazendo ali.

Porque o que quer que fosse a motivação da garota, quaisquer que fossem suas certezas, escoaram água abaixo com a chuva que caía do lado de fora, molhando o chão e levantando a poeira há muito adormecida, acumulada pelos dias de quietude. Ela desabou, no segundo em que pisou na casa, no segundo em que viu Jorge, bebendo, dançando, flertando com qualquer garota que passasse em sua frente.

Era visível nos olhos de Bianca e raiva mal contida por ele estar ali, vivendo sua vida como se nada nunca tivesse acontecido, como se o mundo não estivesse a ponto de acabar, como se todo o ar de seus pulmões não estivesse, pouco a pouco, sendo removido, como se não fosse difícil andar, falar, viver.

O sorrio fácil que escorria por seus lábios era estranho à garota, uma feição que há muito ela não conhecia. Não reconhecia. Não via em si quando se encarava no espelho, não via em seus amigos quando estava perto deles. Seus pais há muito a olhavam com cautela, cada palavra que saía de suas bocas formava um discurso perfeitamente preparado, calculado para não atingir nenhuma de suas feridas que como praga se alastravam por sua pele e queimavam em contato com o sol — e com a chuva, e com o ar.

Mas, apesar de tudo, não foi o sorriso que ativou todos os seus gatilhos, todos os botões acoplados aos lugares errados da máquina defeituosa que era seu controle emocional. Não foi o sorriso. Foi a mão dele parada na cintura de uma garota que, apoiada na parede, mal conseguia se manter de pé.

Em sua mente, ela correu. Atravessou a multidão de corpos suados que dançavam sob a batida constante. Seus pensamentos dispersos tomaram um segundo para se perguntar como a polícia, enviada por vizinhos, ainda não estava na porta da casa, arrombando a porta e levando em cárcere o aparelho de som que fazia ecoar o som pelas paredes. Em sua mente, ela chegou até ele, libertou a garota de seu domínio, e, pela primeira vez, desafiou-o.

Ao invés disso, sentiu seu corpo congelar, paralisado, prendendo-a ao chão com pregos grossos que a impediam se de mover. Viu-se naquela garota de maneira que até mesmo respirar tornou-se uma tarefa laboriosa, doída. Laura não conseguia entender exatamente o que se passava naquele momento, mas arrastou-a para fora dali. Bianca deixou a inércia a levar, seguindo os movimentos daquela força da natureza que tomava controle da sua vida por ela – mais uma vez.

Era por isso que Laura estava ali. Porque Bianca precisava dela.

Tinha ido atrás de Jorge porque estava cansada. Cansada de fingir que nada acontecera, cansada de fazer-se de cega. Cansada de ver Bianca esconder-se em uma casca produzida para acomodá-la com perfeição, isolando-se do mundo, perdendo-se dentro de si.

Mas não era capaz de dizer nada. O nojo que sentia por ele fazia morrer suas palavras. Seria como tentar convencer uma parede a não ser estática, a não se deixar ser pintada por cores diversas que recobrem pincéis em acabamentos mal feitos. Laura limitou-se a olhá-lo, de cima a baixo, analisando suas feições. Sabia que toda sua insatisfação estava transbordando naquele olhar, e sabia também que ele não se importava.

Balançou a cabeça, admitindo a si mesma e ao mundo que reconhecia um caso perdido quando via um. Olhou para trás, encarando a porta fechada, dividida entre voltar para o quarto, preocupada com o que quer que pudesse estar acontecendo ali.

— Quer saber? — A voz de Jorge a forçou a olhar novamente em sua direção. — Eu quero você fora da minha casa. Leva suas amiguinhas descompensadas com você e me deixa curtir minha festa em paz.

Foi um rosnado muito mais do que uma colocação o que saiu da boca dele, em sua voz que sempre assumia um tom de superioridade. Aquele era seu território, afinal, em nada surpreendia que Jorge se comportasse como se fosse dono do mundo. Revirando os olhos, Laura desviou do caminho, contornando o corpo estático do homem e dando um passo em direção à escada.

Enquanto puxava o celular do bolso traseiro, o mundo pareceu desacelerar. As batidas da música, antes frenéticas e ensurdecedoras, passaram a pulsar em um ritmo constante, profundo, envolvente. Enquanto buscava em sua memória o número de Vicente e decidia, segundos depois, que a resposta óbvia seria apenas procurar entre sua lista de contatos, ouviu, em plano de fundo, o barulho de uma porta de abrindo. Foi o rangido inesperado das dobradiças que denunciou o ato trivial que captou sua atenção.

O mar de cachos negros que se misturavam com a escuridão parcial do ambiente se moveu como cascata quando Laura virou a cabeça para a movimentação atrás de si. O movimento foi inútil. Seus olhos percorreram o grupo de pessoas que, alheios ao mundo, viviam suas vidas, conversando, gritando por sobre a música no andar de baixo.

Antes que se desse conta do que acontecia, sentiu seus ombros serem envoltos por mãos quentes e firmes, sua pele tocada por dedos que a firmavam. Por um segundo, um segundo somente, sentiu-se suspensa no ar. Não seu corpo; não. Seu corpo permanecia preso ao chão, seus pés tocavam a madeira cara e bem tratada que revestia os degraus. Mas sua essência pareceu ser sugada de seu corpo quando foi incapaz de se mover, por um segundo, por apenas um segundo.

Luzes a cegaram quando, no momento seguinte, foi solta. Liberta para o mundo — liberta do mundo. Sob seus pés não mais sentia a madeira dura. Era o ar, o infinito gasoso que abraçava seus pés, arrastava seu corpo, envolvia seu ser. A primeira onda de dor veio de sua costela, que bateu contra a quina do degrau. A mão esticada ansiava por qualquer coisa que permitisse que ela se segurasse.

Por tanto tempo fez-se ela a ajuda para todos aqueles ao seu redor, entregando-se sem reservas àqueles que dela precisavam. Como em uma peça de teatro mal produzida, agora os papéis estavam invertidos. Laura precisava ser resgatada, alcançada, segurada em segurança. Mas, para ela, a ajuda nunca veio.

Quando em um baque seco seu corpo acertou o chão, o silêncio se instaurou. Um grito desesperado foi a última coisa que ouviu antes de ser envolvida pela escuridão sem fim.

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