Capítulo 18
04 de maio
Seus olhos ardiam como resultado das tantas horas consecutivas que passara em frente ao computador. A dor de cabeça começou como um pulsar leve, distante, tão incômodo como um pernilongo em um dia quente de verão. Definitivamente precisava de uma cadeira mais confortável também, aquela peça azul com estofado barato, desgastado pelo tempo, não era de nenhuma ajuda para sua postura. Luís riu consigo mesmo, uma risada permeada pelo humor negro que o circundava naquele dia. Parecia um velho rabugento, acumulando reclamações. Encarando a tela do computador, permitiu-se sorrir.
A palavra escrita em letras desenhadas ocupava o fim da página no computador. Aquelas três letras, três pequenas letras que jamais imaginou ver, que jamais imaginou que seriam digitadas por seus dedos incertos regidos por sua mente insegura. Três letras postergadas e arrastadas por meses pela certeza de que seu trabalho não estava pronto, que sua história não estava completa, que havia algo errado com seu enredo de tal forma que a escolha mais sensata a ser feita seria jogar pela janela todos os meses de dedicação, noites mal dormidas, crises de ansiedade e surtos de criatividade nas horas mais impróprias. E, finalmente, ali elas estavam.
Fim.
O ponto final de sua história. O adeus definitivo dado ao seu mundo, seus personagens, sua vida paralela, secreta, seu segredo oculto enterrado por detrás daquelas palavras atribuídas à uma personalidade desconhecida. Seu próprio mundo de fantasia longe da realidade que o consumia.
Sua história estava completa.
A felicidade pelo feito sobrepujava o cansado enraizado em seu corpo dolorido e mente cansada. Por impulso, estendeu a mão por sobre o tampo empoeirado de madeira da escrivaninha onde estava perfeitamente acomodado pelas últimas seis horas e alcançou seu celular, preso ao carregador. Em um toque rápido, destravou a tela e abriu o aplicativo de mensagem. Seus dedos involuntariamente digitaram a mensagem e, quando seu polegar pousou sobre a tecla de enviar, foi quando ele percebeu, pela primeira vez, o que estava a ponto de fazer.
Vicente.
As coisas estavam incertas entre os dois. Mal se falaram nas últimas semanas e Luís não tinha certeza que isso era apenas ele fugindo de seus sentimentos ou se havia algo verdadeiramente errado entre eles. A sensação que tinha era que a amizade dos dois começava a desaparecer no ar, como pétalas de um dente de leão assoprado contra o vento. Pensou por um momento no que significava esse impulso ilógico que querer contar seu feito para ele primeiro, do qual estava verdadeiramente orgulhoso. Enviou a mensagem mesmo assim.
Havia muito mais em sua vida do que Vicente. Não negava a importância magnânima do homem em sua vida, mas não podia se permitir afundar e corroer sua sanidade em um sentimento confuso. E não sacrificaria sua amizade no processo. Mandou a mesma mensagem para Laura, e uma terceira mensagem para Flávio, convidando-o para sair. Ele não estava pronto para um relacionamento, como Flávio parecia estar disposto. Não precisava dessa complicação em sua vida no momento e, verdade fosse dita, por mais prazerosa que a companhia do outro fosse, não despertava em Luís quaisquer sentimentos além da felicidade momentânea de sua companhia. Ele odiava admitir, mas, com um sorriso carregado de tristeza estampando seu rosto, sabia que Vicente estava certo quando, em tom de brincadeira, dizia que ele tinha alma de artista, daquelas inquietas e jamais satisfeitas, que não se contentava com nada menos do que o melhor disponível.
Confundia sua mente e embaralhava seus sentidos tentar entender como Vicente pôde vê-lo, nesses detalhes pequenos e até pouco tempo sem sentidos, por detrás da muralha que construíra para si sem ao menos perceber o que estava fazendo.
O celular vibrou em resposta e, para sua decepção velada, era Flávio confirmando o encontro. Arremessando o celular sobre o colchão desarrumado, viu quando o aparelho quicou uma vez antes de descansar pacificamente embolado nos lençóis. A caminho do banho, repassou em sua mente seu último encontro com o rapaz, a tarde agradável na beira da praia, um copo de chá gelado em suas mãos enquanto a brisa fresca de fim do dia adornava o sol poente por detrás da rocha acinzentada recoberta de vegetação rarefeita que formava o horizonte. Foi inevitável, então, envolvido pelo ambiente que exalava romantismo e sensualidade, não terminar aquele encontro com um beijo apaixonado que, mais tarde, o levara a experiências novas e caminhos até então desconhecidos, explorados até a exaustão de seu corpo cansado.
Não conseguiu evitar, deitado na cama de Flávio, enquanto o outro dormia um sono profundo embalado por uma respiração pesada e sonora, de reparar que suas peles não possuíam o mesmo contraste que a dele e de Vicente. Café com coco, a pele negra amendoada contra o alvo envolvido em fios castanhos de pelo grosso espalhados por seus braços. Não, a pele morena de Flávio complementava a sua de forma harmoniosa, quase poética.
Talvez ele escrevesse um livro sobre isso, Luís pensou. Quem sabe não arriscava poesia?
***
Como alguém conseguia entender o sistema de organização daquela biblioteca, era um mistério. As letras indicam o tema do livro; o número antes do ponto, a ordem na prateleira; o número depois do ponto indica quantos exemplares daquele mesmo livro estão disponíveis. Perfeitamente compreensível, se não fosse pelo fato de Laura ter passado cinco minutos encarando a prateleira à sua frente tentando entender como o A203.1, um livro sobre as matérias primas da produção de vodca, e o K092.3, sobre a biologia comportamental, estavam lado a lado. Talvez levasse para casa o primeiro; conhecimento nunca era demais.
Frustrada, percorreu os corredores repletos de exemplares empoeirados e desatualizados sobre assuntos diversos que preenchiam páginas amareladas. Seu humor estava particularmente desagradável naquela tarde ensolarada. A conversa que tivera com os pais na noite anterior ainda ressoava em sua mente, as palavras afiadas de acusação atingindo pontos profundos apesar de sua recusa em admitir isso em voz alta. Não podia culpá-los, apesar de uma parte de si querer ser capaz de fazê-lo. Ela sabia que não tinham qualquer intenção de machucá-la, que sequer sabiam que era essa a consequência de suas cobranças. Pelo seu ponto de vista, Laura não passava de uma menina rebelde e mimada, que deixou para trás os pais para que lidassem sozinhos com a perda de um filho morto, adicionando à conta a perda da filha que mal se despediu antes de arrumar a mala e entrar em um avião que a levaria para outro estado. E nada disso era mentira; de uma forma ou outra, essa verdade era plausível e real em alguns aspectos da situação.
O que eles não sabiam era que o real motivo para que ela tivesse deixado sua casa, o conforto e segurança proporcionados por sua estrutura familiar, não foi por rebeldia ou imaturidade. Laura saiu de Minas para fugir de si mesma, para fugir do passado pesado demais para ser carregado por ombros tão jovens. Ela se esforçava ao máximo para seguir olhando em frente, sem se deixar soterrar por lembranças obscuras, mas, em alguns dias, perdia a batalha. E aquele era um desses dias em que Eduardo não saía de sua cabeça. Desnorteada, não percebeu a presença de outra pessoa à sua frente até esbarrar desajeitadamente no homem parado no fim do corredor. Ela abriu a boca para se desculpar, mas as palavras ficaram presas em sua garganta quando viu que era Pedro de pé à sua frente. Implorou mentalmente para que ele sequer começasse seu repertório repudiante, mas antes mesmo que ele abrisse a boca para proferir qualquer palavra, soube o que a esperava.
— Oi — ele disse, inclinando o corpo em direção ao dela, um sorriso estampando seus lábios. Seus olhos brilhavam, satisfeitos com a surpresa agradável que era esbarrar com ela tão despretensiosamente assim. Há meses ela se esquivava dele, evitando estar no mesmo cômodo que Pedro, saindo quando ele chegava. Há meses as ligações dele atingiam a caixa postal de seu celular. — Você cortou o cabelo — apontou o óbvio. A genuína admiração que cintilava em seus olhos fez o estômago de Laura revirar.
Era uma terça feira o dia em que ela tocou a campainha do apartamento de Eduardo. Estava frio e ela se enrolou dentro do seu casaco de moletom. Suas mãos tremiam quando ela alcançou o botão sonoro que anunciava sua presença e Laura tentava convencer a si mesmo que era a baixa temperatura a causa disso. Mas não era. O sorriso nos lábios do homem que abriu a porta teve sobre ela o mesmo efeito que o sorriso nos lábios de Pedro tinha naquele momento. Um misto de confusão e pavor que ativava todos os seus sentidos e fazia com que ela quisesse correr o mais rápido possível, para o mais longe possível. A diferença é que por Pedro nutria somente desprezo e medo, e Eduardo contava com toda sua submissão e o que, na época, ela pensou ser amor. Não sabia ao certo o que fizera decidir, naquele dia, naquele instante, a terminar aquele relacionamento que jamais deveria ter começado.
Ela, com seus dezesseis anos, encantada pela presença altiva e cativante daquele que apresentou a ela o mundo mágico que era a ciência, que viu nela o potencial para um futuro brilhante e a encorajou a perseguir seus sonhos, mal percebeu que era ele também que freava cada passo que ela dava. Eduardo queria que ela voasse, desde que não fosse para longe dele, desde que não fosse mais rápido do que ele pudesse alcançar. Queria que ela voasse, tão alto quanto permitisse a corda que ele amarrara em seu tornozelo e prendera ao pé da mesa de sua sala de estar. Queria que ela fosse feliz, mas não tão feliz assim, não sem ele. Queria que ele fosse a mulher – a menina – mais linda da cidade, desde que ele fosse o único com permissão de admirá-la.
Talvez ela, no fundo, soubesse que o motivo de estar parada na porta, fitando os olhos calidamente ameaçadores de seu professor naquela terça-feira chuvosa, era que começaria a estudar para o vestibular, não para a faculdade local com pouco reconhecimento na área e que nada faria por sua carreira. Ela queria sair dali, queria ver o mundo, alcançar o mundo. Queria ir para o Rio de Janeiro, e já tinha escolhido a Instituição para a qual dedicaria seus dias na tentativa de conseguir uma vaga, o primeiro passo para o seu futuro. E ela temia a reação do homem quando recebesse a notícia. Seu humor era indecifrável, qualquer coisa poderia levar a uma explosão em fúria, acusações descabidas, dedos apontados e tapas sonoros. E, tão súbito quanto começara, estaria acabado e Laura se encontraria envolvida em braços calorosos e arrependidos daquele homem que jurava seu amor incondicional e prometia a ela um futuro mágico ao seu lado.
Ela não conseguia deixar de pensar no irmão. Não conseguia deixar de tentar imaginar o que o irmão diria, o que a aconselharia a fazer. Tinha certeza que ele mataria Eduardo se sequer imaginasse tudo que Laura estava passando. Sabia, acima de tudo, independente das circunstâncias, que ele seria seu maior incentivador em ir para o Rio de Janeiro atrás do seu sonho, atrás de sua vocação, construir o futuro brilhante que apenas a ela pertencia. Ele era seu melhor amigo, e estava morto. Laura devia a ele arrumar as malas e sair daquele lugar. Dele, tirou a força necessária para colocar um ponto final naquele relacionamento que sequer deveria existir, que, por quase um ano inteiro, havia sugado sua sanidade mental, sua estrutura psicológica e distorcido seus conceitos, que havia marcado sua pele e sua alma.
A imagem de Eduardo foi rapidamente arrancada de sua mente quando a figura de Pedro, imprensando-a contra a estante fria contra sua pele coberta apenas por uma camiseta azul, preencheu seus olhos marejados. Aquilo já havia se prolongado por tempo demais. Já havia deixado de ser apenas inconveniente.
Onde traçar a linha, ela se perguntava. Quando investidas despretensiosas entre duas pessoas deixa de ser a tentativa de conquistar a atenção do outro a passa a ser violência em sua forma mais cruel, velada e silenciosa? Por quanto tempo Bianca havia passado por aquilo antes da barbárie que Jorge, inescrupulosamente, a submetera? A conversa que tivera com a garota dias antes ainda ressoava em sua mente. A violência física sofrida pela garota talvez não chegasse perto da destruição emocional que viera como consequência. Bianca, naquele momento, era apenas uma casca vazia e rachada do que um dia fora e Laura estava desesperada para tentar ajudá-la. Tentou, de toda forma, convencer Bianca a denunciar Jorge. Mas ela estava irredutível. Tinha, acima de tudo, medo da represália. Medo de ser, ela própria, julgada e desacreditada, tratada como criminosa.
Como Laura poderia tentar convencer qualquer outra pessoa a tomar uma providência quando ela mesma havia passado os últimos meses fazendo por Pedro a mesma coisa que fizera com Eduardo quando o antigo professor não aceitou o término do relacionamento? Em ambos os casos, havia fugido e se escondido, agido como se ela estivesse fazendo algo errado.
Ela sequer estava prestando atenção no que Pedro dizia, sussurrando em seu ouvido um hálito quente repleto de acusações que apenas em sua mente distorcida.
Você me provoca.
Você sabe que quer isso também.
Pra que complicar as coisas?
Nenhuma mulher diz não pra mim, Laura.
Você vai acabar se rendendo mais cedo ou mais tarde.
Foi por puro reflexo que seu joelho o acertou entre as pernas, fazendo um gemido abafado de dor escapar por sua garanta e ecoar pela biblioteca silenciosa, se perdendo por entre os livros que os cercavam. A expressão no rosto dela não era de dor, era de incredulidade. Pedro simplesmente não conseguia acreditar. Não conseguia aceitar. Qual era o problema daquela garota?
Sem olhar para trás, sem dar atenção a Pedro chamando seu nome em um grito sussurrado, ela deixou o grande prédio azul e branco, descendo as escadas apressadamente, desviando de passantes desavisados que estavam em seu caminho. Traçando uma linha reta, olhos fixos em seu destino, ela entrou no prédio da reitoria e apertou o botão do elevador que a levaria ao andar desejado. Quando as portas se abriram no luxuosamente decorado andar onde se encontrava a sala do diretor do seu centro acadêmico, ela não hesitou em caminhar com firmeza e bater na porta de madeira escura que isolava o cômodo do corredor. A autorização para sua entrada veio de imediato, e ela entrou, sentando-se na cadeira de estofado amarronzado do outro lado da mesa do homem vestido em um impecável terno e gravata esverdeada.
Adriano estava no auge dos seus cinquenta anos, caneta prateada na mão sendo repousada sobre a pilha de papéis que estava assinando antes de ser interrompido pela aluna. Orgulhava-se de conhecer cada um dos seus pupilos. Sabia o nome de cada um que ingressava naquele curso, conhecia seu desempenho. Laura, sentada à sua frente, o semblante nervoso ocupando seu normalmente tão jovial rosto, tinha um futuro brilhante pela frente. Com um sorriso cálido em seu rosto, ele a convidou a falar.
Laura começou um monólogo que levou aquela conversa a caminhos que ele não esperava. Ouviu em silêncio o relato, as reclamações, as sérias acusações feitas sobre um dos alunos mais promissores daquela instituição. Os minutos se estenderam enquanto a voz dela, embargada pelo choro não derramado, ressoava pelas paredes daquela sala decorada com diplomas e premiações que ele próprio acumulara durante seus mais de trinta anos de carreira. Foi com um suspiro longo que permitiu-se tomar um minuto inteiro para processar o que havia sido dito a ele após ela terminar de falar. Tentava decidir que providência ela esperava que fosse tomada. Pelo tom de voz empregado por Laura, a resposta lógica seria a expulsão de Pedro da faculdade, e isso jamais aconteceria.
Poderia chamar Pedro para uma conversa e ordenar que ele se afastasse dela. Mas ele era diretor de um curso universitário, não do jardim de infância. E a relação pessoal entre seus alunos não era de seu interesse, e definitivamente não estava sob sua governabilidade. A única coisa que fazia com que qualquer coisa daquela história fosse de sua responsabilidade era que parte do que havia sido relatado acontecera dentro dos domínios da faculdade. Escolhendo com cuidado suas palavras, ele se dirigiu a ela.
— São acusações muito sérias essas que você está fazendo, Laura — ele disse, com cautela. — Preciso que você tenha certeza do que está dizendo antes de formalmente abrir uma queixa de assédio contra um dos melhores alunos dessa instituição. Eu entendo que você talvez se sinta desconfortável com algumas situações, e não estou questionando a veracidade do que você diz ter acontecido. Apenas preciso que você tenha certeza do que está dizendo antes de ameaçar o futuro de alguém com tanto potencial quanto Pedro Farias.
Choque e incredulidade atingiram Laura enquanto ela ouvia as palavras que a ela estavam sendo ditas. Choque. Talvez não incredulidade. Não podia dizer que estava surpresa. O nome da instituição estava acima de tudo e, é claro, o diretor faria o possível para preservá-la.
E ela estava ali para preservar a si mesma. E não mudaria de ideia quanto a isso.
Já havia passado da hora de colocar um ponto final nessa história.
— Eu tenho certeza — disse, com firmeza, e viu o rosto do homem à sua frente ser tomado por uma expressão de irritação velada por trás de um sorriso compreensivo. Foi com relutância que ele alcançou um formulário genérico dentro da gaveta e estendeu para que ela preenchesse.
Ele garantiu, em um discurso cuidadosamente recitado, que suas reclamações seriam tratadas com todo rigor e que aquela instituição não toleraria esse tipo de comportamento entre seu corpo discente. Prometeu a ela que conversaria com Pedro e explicaria a ele as consequências que estaria enfrentando caso outra reclamação fosse feita. Esse tipo de comportamento não seria aceito naquela instituição.
Talvez essa garantia acalmasse os ânimos de Laura e o assunto pudesse ser encerrado.
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