Capítulo 16

28 de julho — a festa III

— Ou o que, Laura? — Jorge perguntou enquanto segurava o braço de Bianca. A sua voz era um misto de sarcasmo e afronta, publicamente desafiando Laura a fazer algo, certo de que ela não ousaria. Laura deu um passo ameaçador em sua direção, punhos cerrados ao lado do corpo, no exato momento em que Pedro adentrou o quarto.

Aquilo já estava ficando ridículo. O cômodo em que estavam era grande, mas começava a ficar apertado para o número de pessoas ali presentes. Estavam todos estáticos, parados em suas posições, olhando ao redor nervosamente. Ninguém se movia, como se qualquer movimento, qualquer piscada de olhar na direção errada, pudesse ser a última gota de água em um copo já a ponto de transbordar; como se qualquer batimento cardíaco mais forte fosse capaz de acarretar uma série catastrófica de eventos das quais ninguém teria controle. Era como uma cena de um daqueles filmes em que um grupo de amigos se reuniam para um fim de semana agradável e alguém terminava morto.

O problema era que Laura há muito já havia percebido que aquele grupo disfuncional era formado por pessoas que só eram amigos quando olhados de longe. Quando vistos de perto, quando o observador passivo estava ciente da podridão que envolvia cada um, era impossível dizer em voz alta que ali reinava uma amizade genuína. Em meio a tanta falsidade, segredos e mentiras, era inevitável que fosse preciso tomar partido de alguém em uma discussão. E para Laura estava claro que a defesa dela iria para Bianca.

Antes que tivesse a oportunidade de dizer alguma coisa, contudo, Pedro puxou Jorge pelo braço, fazendo-o soltar a menina petrificada pelo medo, paralisada pelas lembranças, sufocada pelas palavras não ditas, lágrimas não derramadas e gritos não externados. O tempo pareceu desacelerar, como se o momento estivesse suspenso no ar e cada movimento estivesse se desenrolando em câmera lenta. Jorge inflou o peito como uma fragata tentando provar ao seu oponente que é maior, mais forte, mais esperto, mais merecedor de respeito. A diferença é que não se tratava de uma estratégia de acasalamento, era apenas um artifício para demonstrar sua completa insatisfação com a postura tomada pelo amigo. Como se atrevia Pedro a fazer isso? A colocar-se contra ele, a se meter em uma situação que não o dizia respeito? Em um único movimento brusco, Jorge livrou-se da restrição de Pedro e, com um único olhar ameaçador, deixou o quarto.

Laura caminhou, firme e tomada por uma raiva mal contida, em direção à porta, e Pedro, entrando em seu caminho, a impediu de continuar. Ela levantou os olhos à altura do homem, pelo menos uma cabeça mais alto que ela e, para sua surpresa e frustração, encontrou confusão e incerteza refletindo nos olhos castanhos do outro.

— O que no inferno está acontecendo aqui? — Pedro perguntou em um grito sussurrado, ciente das lágrimas de Helena que agora se fundiam ao desespero estampado na face de Bianca. Ambas as mulheres estavam ali, naquele momento, enfrentando cara a cara o seu pior pesadelo, presas em seu sofrimento particular, alheias ao que se passava com a outra e, verdade fosse dita, naquele momento não se importavam com ninguém além de si mesmas. E ninguém podia culpá-las por isso.

— Se você ainda não entendeu, então consegue ser mais estúpido do que imaginei. — Laura bufou e, fazendo seu caminho para longe do homem e seguindo em direção à porta, olhou para ele uma última vez por sobre o ombro. — Faça alguma coisa de útil da sua existência infeliz e vá consolar sua namorada ao menos. E liga para o Vicente, fala para ele vir para cá buscar a Bianca agora.

Pedro a olhou com aquele olhar que ela já conhecia. Aquele olhar que, como um tapa, dizia que ele não se importava com o que quer que estivesse acontecendo, sua atenção estava presa exclusivamente a ela. Que a cena de ciúmes doentio e sem motivo que acabara de acontecer há alguns minutos era apenas a prova do quanto ele a queria. Que a forma invasiva e ameaçadora como ela a perseguia conta a sua vontade era apenas ele tentando convencê-la a aceitar o seu amor.

A linha entre o amor e a obsessão era tênue e muito facilmente cruzada. A incapacidade de Pedro de aceitar uma recusa a deixava doente. Acima de tudo, o que tirava sua paz e dilacerava seu peito, era saber que se cada uma dessas atitudes estivesse direcionada a Helena, a garota seria a pessoa mais feliz do mundo. Não enxergaria os abusos, não enxergaria a toxicidade daquele tipo de relação. Partia-lhe o coração saber que, há pouco tempo, era ela naquela mesma situação, justificando abusos em nome de um suposto amor que não existia e apenas servia para destruir sua felicidade e autoestima. Mas, principalmente, tudo isso a deixava com medo. Tinha medo do fim dessa história, tinha medo de onde isso os levaria. Tinha medo dele, apesar de odiar admitir isso para si mesma. Tinha medo do que ele era capaz.

Não era amor o que ele sentia, apesar de parecer convencido que era o caso. Era a simples inabilidade de entender que ele não podia ter tudo que quisesse, que ela não era um objeto para ser tomado e possuído. E quando a recusa tomou o tom veemente que Laura usou com ele, tê-la passou a ser seu objetivo de vida.

Contrariado, viu quando ela bateu a porta atrás de si e foi atrás de Jorge. Olhou ao redor do quarto até seus olhos pousarem em Bianca, sentada em um canto contra a parede, os dois joelhos dobrados na altura do queixo, cabeça afundada entre eles. Ele conseguia ver seus soluços de onde estava, e Pedro suspirou. Merda, Jorge.

O que ele tinha na cabeça para fazer o que fez? Que tipo de caráter defeituoso era aquele capaz disso? Pedro não sabia o que fazer. Não soubera na hora, quando teve a oportunidade de pará-lo, não soubera depois do ocorrido, não sabia naquele momento. Queria matar o amigo pelo tamanho da estupidez, pela irresponsabilidade, por colocar sua vida em risco daquela forma. O que teria acontecido se Bianca o tivesse denunciado? Um futuro brilhando pela frente, e tudo seria jogado no lixo pela burrice de Jorge.

Não se atreveria a chegar perto de Bianca, não depois da conversa que tiveram há algumas semanas. Ele sentia muito pela garota, mas não o suficiente para se indispor com o amigo ainda mais do que havia feito até então. Ela estava sendo bem cuidada o suficiente, bem amparada o suficiente. Não seria de ajuda nenhuma tentando consolá-la por qualquer que fosse o motivo de seu choro naquele momento. A garota vinha tendo crises nervosas em uma frequência inconvenientemente alta nos últimos meses e ele realmente não queria se dar ao trabalho.

Além do que, Pedro tinha certeza que ele era a última pessoa que ela ia querer ver em sua frente. Decidiu fazer, então, o que Laura pediu, tentou ligar para Vicente. Percebeu que estava sem sinal, coisa que acontecia com frequência desde que mudara a operadora do celular. Irritado, limitou-se a digitar uma rápida mensagem pedindo para que ele viesse buscá-la e devolveu o celular ao bolso. Quando o sinal voltasse, a mensagem seria enviada. Seu trabalho estava feito. Dirigiu-se, então, à cama onde Helena estava sentada, encarando a parede com olhos vazios.

O que era aquilo, afinal? Uma crise histérica coletiva? Todas as mulheres resolveram afundar-se em uma crise existencial na mesma hora, na mesma noite? O que puderam na bebida para justificar essa atrocidade? Ele odiava a ideia de ter que prestar suporte emocional para qualquer que fosse o drama em excesso que estivesse ocorrendo daquela vez, mas sabia que não tinha muita escolha perante a situação. Sentou-se ao lado dela na cama e suavemente pegou sua mão, gesto respondido com um sorriso triste e um olhar perdido em sua direção.

Helena revirava em sua mente as palavras de Laura, não somente as dessa noite, mas cada palavra que a outra dissera para ela nos últimos meses, desde que seu relacionamento com Pedro se tornou fato de conhecimento público. Seu coração ordenava que continuasse gritando ao mundo que cada palavra que saíra pelos lábios grossos da outra eram uma confusão mentirosa, calculadamente pensada para tentar afastar Pedro de si. Que cada passo, cada encontro, cada coisa dita nada mais era do que ciúmes velado por ter sido deixada de lado, por Helena ter sido a escolhida. Não era idiota, saiba que Pedro corria atrás da garota, mas isso não importava. Era para ela que ele voltava no fim do dia. E Laura sabia disso. E, por isso, tentava com todas as suas forças afastar os dois, para que voltasse a ter para si a atenção exclusiva e absoluta que tinha no começo do ano. E Helena jamais permitiria que isso acontece.

Sua mente, contudo, fugia de seu controle, escapava pelas entranhas de seu ser e ganhava o mundo sem seu consentimento. Era como besta arredia que teimava em tomar controle a galopes brutos, puxando a corda que era sua restrição. Não obedecia às prisões construídas para contê-la. Sua mente, por toda sua vida motivo de orgulho, ferramenta que a levou até onde estava, que serviu de luz e oportunidade para ter a vida que sempre sonhou, longe dos subúrbios cariocas. Sua mente agora a traía, arrastando-a cada vez mais para caminhos obscuros, conforme a cortina que foi posta sobre seus olhos começava, lentamente, a ser aberta.

Ela não gostava disso. Estava feliz em sua ilusão particular onde o mundo girava em torno de Pedro e seu amor. Não queria que sua bolha de felicidade incondicional fosse estourada e, pouco a pouco, via-se forçada a encontrar um caminho tortuoso e dolorido em direção à realidade torturante, sendo puxada por uma mão acalentadora e intrometida que jamais foi requisitada. Droga, Laura.

Laura a retirava, pouco a pouco, de seu sonho privado.

E por isso Helena a culpava.

Porque naquele momento, sentindo os dedos quentes de Pedro envolver os seus, olhando em seus olhos amendoados e sorriso acolhedor, não conseguia mais mentir para si mesma e convencer-se que tudo estava bem. Ela o amava com cada pedaço de sua alma corrompida, mas não era mais capaz de fingir que a realidade era aquela que sempre fingiu ser. E, naquele momento, pela primeira vez, ela foi capaz de ver Bianca e forçar-se a se perguntar o que estava errado com sua amiga.

Sabia que ela não estava bem, sabia há meses. Continuou repetindo a si mesma que não era nada importante, recusando-se a perguntar em voz alta o motivo de tanta aflição, mentindo para si mesma por tempo o suficiente para que conseguisse acreditar que, caso fosse algo importante, Bianca teria dito sem que pergunta alguma precisasse ser feita.

Pedro chama seu nome, genuinamente confuso pelo abandono inesperado, quando Helena libertou-se do toque gentil de sua mão e caminhou até o canto do quarto onde Bianca estava encolhida contra a parede fria de tintura arroxeada. Ajoelhou-se em frente à garota e segurou suas mãos, vendo sua cabeça ser lentamente levantada do vão entre seus joelhos e seus olhos perdidos mirarem em sua direção. Encararam-se em silêncio pelo que pareceu toda a eternidade, consumindo todo o oxigênio da sala, ignorando a música barulhenta que insistia em atravessar as frestas da porta.

Tantas palavras não ditas, tantas mágoas não reveladas. Bianca queria acusá-la por todas as vezes que fora abandonada, pouco valorizada, deixada de lado por qualquer que fosse o motivo egoísta e autocentrado da vez. Queria perguntar o motivo, o motivo de não ter podido contar com aquela que considerava sua melhor amiga no pior momento de sua vida. Queria perguntar a si mesma se podia considerar Helena sua amiga, ou se fora apenas um cenário fictício criado por sua mente desesperada por atenção, que se agarrou à primeira pessoa que olhou em sua direção por mais do que dois segundos. Não conseguiu contar uma risada curta, recheada com desespero e histeria.

Helena era para ela o que Pedro era para Helena.

Como não notara isso antes? Criticara a outra por tanto tempo, tantas vezes, pelo fato de cegamente colocar Pedro em um pedestal que não merecia, por estar disposta a relevar todos os atos mesquinhos e que minavam o seu amor próprio a cada dia. E ali estava ela, fazendo exatamente a mesma coisa, colocando-se inconscientemente em um relacionamento tão abusivo quanto por motivos que ela mesma era incapaz de entender. Helena era tóxica para ela, Bianca conseguia enxergar isso, mas ainda não era capaz de simplesmente abrir mão daquela de quem sempre esperou carinho e companheirismo.

Pedro não podia acreditar no que estava acontecendo. Fora rejeitado por Helena. Por Helena. A garota vivia para beijar o chão em que pisava e satisfazer todas as suas vontades; que mundo distorcido era aquele em que havia entrado onde era possível que Helena virasse as costas para ele? Raiva era o único sentimento que cabia em si. E sabia exatamente para quem dirigir esse ódio acumulado.

Laura.

Sua vida virou de cabeça para baixo no momento em que aquele par de obsidianas entrou na sua frente, com seu espírito livre e sua incapacidade de aceitar o que era melhor para ela. Laura fizera isso, contaminara Helena com sua filosofia de vida ridícula e seus discursos revolucionários. Não passava de uma garotinha voluntariosa que precisava de uma boa lição.

Aquela vadia.

Já estava sendo torturado por tempo demais, e aquilo acabava ali, naquele momento, naquele local.

Levantou-se em um ímpeto e, como trem desgovernado, dirigiu-se à porta, sengue em seus olhos embaçando sua visão e condenando seu já recriminável julgamento.

As duas não perceberam quando Pedro saiu do quarto, não perceberam quando o tempo passou e que Laura já estava sozinha com os dois há tempo demais. Não prestaram atenção em mais nada, até que um grito agudo sobrepôs a batida eletrônica, que foi subitamente desligada. Levantaram-se em um salto e atravessaram a porta o mais rápido que puderam em meio ao terror particular que fazia com que ambas se sentissem fisicamente fragilidades, quando gritos começaram a ecoar por todas as paredes da casa.

Chegaram ao corredor a tempo de ver Jorge e Pedro encarando-as, olhos arregalados e expressão petrificada.

— Onde está Laura?

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