Capítulo 15
26 de abril
E diziam que mulheres se atrasavam. Laura estava esparramada no sofá desconfortável da sala do Diretório Acadêmico há vinte e cinco minutos e nada do Luís aparecer. Ele dissera que estava indo para a secretaria entregar a documentação pendente para justificar suas faltas na última semana e renovar o pedido de bolsa para o semestre seguinte, e simplesmente desaparecera. Era sabido que a burocracia na instituição ultrapassava os limites aceitáveis, mas ainda assim, era tempo demais. Ela já estava ficando cansada de esperar e, pior, com fome. Seu humor começaria a ser afetado logo, logo. Ela poderia esperar durante uma semana inteira, dia e noite, mas precisava de comida. Decidiu revirar a mochila atrás de uma barrinha de cereais perdida em algum dos bolsos, mas foi em vão. Com um grunhido de frustração e uma promessa mental de que assassinaria Luís quando ele cruzasse a porta, jogou-se novamente no sofá, fones nos ouvidos, e deu play no vídeo que estava assistindo.
Deitada como estava, seu pescoço começava a doer, apoiado no braço do sofá que definitivamente não fora feito para isso. O zumbido do ar condicionado não se sobressaía pelo som alto do fone, mas sua existência era percebida pela corrente de ar frio que arrepiava os pelos dos braços descobertos da menina. Estava a ponto de levantar e diminuir a temperatura quando a porta se abriu. Para sua infelicidade, não era Luís. Era Helena, óculos escuros cobrindo grande parte do rosto fino, cabelo perfeitamente preso em um rabo-de-cavalo. Era a primeira vez que Laura via a garota usar calças, e suas pernas pareciam finas demais. Laura sorriu consigo mesma por perceber que mesmo que os olhos claros estivessem escondidos por detrás das lentes escuras, o revirar de olhos de Helena era audível.
— Você precisa mesmo estar em todo lugar? — perguntou, jogando a bolsa que carregava em uma cadeira enquanto caminhava até o galão de água e servia a si mesma um copo. Apoiou-se na bancada e pegou o celular no bolso traseiro da calça, destravando a tela.
— Essa cidade não é pequena demais para nós duas, Helena — Laura respondeu, em uma voz forçadamente grossa no que ela imaginava ser o tom perfeito de um mercenário bigodudo usando um chapéu de caubói, torcendo para que outra entendesse a referência e isso quebrasse a tensão que sequer tinha motivo para existir.
— Discordo — Helena respondeu, sem tirar os olhos da tela. Laura balançou a cabeça. Ali jaziam mortos todos os filmes de faroeste já produzidos, claramente ignorados por Helena. Realmente imaginou que ela seria do tipo que assiste única e exclusivamente comédias românticas malfeitas, mas ainda tinha esperanças. Ignorou o comentário e voltou a assistir o vídeo que estava sendo exibido na tela de seu celular. Entreteve-se com o conteúdo por meio minuto, até ser novamente interrompida.
— O que você está fazendo aqui, afinal? — Helena perguntou, empurrando para fora do sofá o pé da outra de modo que pudesse sentar naquele canto. Laura limitou-se a revirar os olhos e arrumar-se novamente na posição anterior, apoiando as pernas no colo de Helena, que se sentiu desconfortável com o ato, mas seu ego não permitiu que ela reclamasse de algo.
— Estou esperando o Luís. — Laura limitou-se a responder, àquela altura já esgotada demais para fazer qualquer tentativa de ser simpática com a mulher que insistia em hostilizá-la sem motivo nenhum.
***
Ele não tinha certeza do motivo pelo que saíra da festa com aquele homem que mal conhecia, de quem certamente não era amigo. Talvez esse tenha sido o motivo. Luís se preocupara tanto em agradar aquele pequeno grupo no qual se infiltrou logo nas primeiras semanas de aula que parou de pensar no que era melhor para si. Apenas seguiu o ritmo estabelecido por Pedro e Jorge e reprimiu a si mesmo e, naquele ponto de sua vida, sequer sabia quem era ou o queria. Foi por isso, então. Por isso fora embora com Flávio, a quem conhecia apenas de vista nos corredores da faculdade e com quem mal havia trocado duas palavras até aquele dia. Encarava agora a tela do celular com uma mensagem recém recebida do rapaz convidando-o para sair novamente.
Parecia errado aceitar.
O problema é que Luís não conseguia decidir se era errado de fato ou se era apenas sua mente confusa enviando-o a um caminho que sabotaria sua felicidade por medo do que as pessoas ao seu redor pensariam. Sentia-se... livre. Como se um enorme peso houvesse sido retirado de suas costas apenas por contar a Vicente, apenas por ser honesto com uma das pessoas mais importantes de sua vida. O lado negativo disso é que, agora, sentia-se como se estivesse traindo-o, contrariando toda lógica.
Estava com medo.
O que significaria se aceitasse se envolver com Flávio? E se tudo desse errado? Ou, pior: e se tudo desse certo?
E Vicente?
Não podia viver sua vida rodeado pela esperança vã de que algum dia ele, magicamente, acordasse e decidisse que o amava; isso era absurdo e jamais aconteceria. Precisava começar a construir em sua vida um caminho que fosse trilhado para fora daquela áurea envolvente que exercia poder gravitacional sobre ele. Isso significava que estaria usando Flávio? Não queria usar ninguém. Ele encarou o celular por um segundo a mais, e respondeu a mensagem. Tinha um encontro marcado para mais tarde naquele dia.
Suspirando fundo, Luís permitiu-se sentir orgulho de si mesmo por ter feito algo sobre a situação. Se fora a escolha acertada ou não, o tempo diria; mas apenas a sensação de ter saído do torpor que o havia consumido e ter tomado uma atitude para ter controle de sua própria felicidade era o suficiente por hora.
Encarando os envelopes pardos que tinha em sua mão, caminhou para fora da secretaria em direção ao elevador. Tinha um outro problema para resolver agora. Fora àquela sala pequena e mal iluminada para pegar a própria documentação, mas saíra de lá com informações que não havia pedido a ninguém e muitas perguntas a serem respondidas.
***
O sol brilhava forte no céu e o dia estava quente, como uma boa tarde no Rio de Janeiro deveria ser. O burburinho incessante nos corredores e o vai e vem de pessoas completavam um cenário incerto. Luís chegou à porta do Diretório Acadêmico, e não precisava abrir a porta para saber que Helena estava ali. Helena estava sempre ali. Ele olhou mais uma vez para o envelope em sua mão e girou a maçaneta.
Helena estava lá. Laura também. E Jorge, o que significava que Pedro não estava longe. Não tinha sinal de Bianca ou Vicente; tinha certeza que os dois estavam juntos. Ele caminhou por dentro da espaçosa sala e largou a mochila em cima de uma mesa qualquer.
Viver de aparências era uma coisa engraçada. Sentia-se vivendo um clichê barato, mas era como se seus olhos tivessem sido abertos para o mundo. E agora, finalmente deixando de lado as tormentas silenciosas de sua alma, ele começava a de fato enxergar as pessoas. E, naquele momento, ele via Helena como nunca antes. Parando para dar um beijo no topo da cabeça de Laura, ele se dirigiu à menina de fios acobreados.
— Helena, posso falar com você um minuto? — questionou, sem dar espaço para resposta, virando-se de costas e saindo da sala novamente. Se perguntou se Helena iria atrás dele, e chegou à conclusão que sim. Podia sentir o olhar confuso dos outros dois sobre ele; não lembrava de uma única situação no passado em que ele e Helena tivessem assuntos particulares a tratar, e todos sabiam disso.
Ela fechou a porta atrás de si, cruzou os braços em seu peito e o encarou em silêncio.
— Acabei de passar na secretaria para pegar os documentos para a renovação da minha bolsa de estudos — anunciou, simplesmente, levantando o envelope pardo na altura dos olhos de Helena, olhos esses que se arregalaram de imediato, sua boca caindo boquiaberta. Ela ameaçou dizer alguma coisa, mas nada saiu por sua garganta.
Luís não precisou dizer nada além disso, e ele estava dividido entre gritar e rir. Rir da expressão atordoada no rosto dela, a completa descrença, o pavor que cruzou seus olhos, a incerteza de suas palavras. Ela sabia o que tinha naquele envelope. Luís foi buscar seus documentos e a secretária o entregou os de Helena também. Eram amigos, afinal. Ela tinha, de fato, perdido o prazo para buscá-los. A mulher provavelmente achou que estivesse fazendo um favor à menina e poupando-lhe trabalho. Luís queria rir do ridículo que era o tamanho do desespero que exalava da garota por conta disso.
Mas principalmente, queria gritar. Gritar pela hipocrisia de Helena, por seu comportamento soberbo, por fazer questão de mostrar-se superior aos outros sempre que a oportunidade surgia. Não foram poucas as vezes em que um comentário venenoso de menosprezo escapou de seus lábios finos, escorreu por seu queixo e pingou na pele dele como ácido queimando suas entranhas. Não foram poucas as vezes que ela deixou claro ao mundo o quanto era contra o sistema de bolsas de estudo da faculdade, que dava abertura a pessoas de outros níveis para estudar ali, diminuindo o peso do nome da instituição.
E ali estava ele, segurando os documentos de Helena, o mesmo requerimento de comprovação de renda que ele próprio preencheu quatro vezes nos últimos dois anos, a mesma folha em branco pautada a ser preenchida com uma declaração de próprio punho assegurando seu comprometimento com a dedicação à instituição. A pergunta que invadia sua mente e consumia-o por dentro era: por que ela escondera isso de todos? Por que se fingira ser alguém que não era todo esse tempo? Quem era Helena?
Ele esperou, esperou por uma explicação, esperou por uma justificativa. E foi recebido com o silêncio gutural que passou a consumir o ambiente, o olhar afiado e acusador em sua direção. Ainda naquela situação, mesmo ali, naquele momento, Helena recusava-se a mostrar qualquer humildade. Continuava encarando-o de cima, deixando claro para o mundo que era melhor que ele, que era melhor do que qualquer um.
A verdade é que a única resposta que ela poderia dar era que mentiu todo esse tempo sem que essa fosse sua real intenção. Mentiu, em um primeiro momento, porque teve medo da rejeição, teve medo de ser tratada como ela própria, em uma distorção doentia de papéis, tratou Luís por muitas vezes. Depois, mentiu para impressionar Pedro, certa de que ele jamais prestaria atenção nela a menos que fosse exatamente o que ele esperava que ela fosse. Por último, sequer conseguia lembrar mais que era mentira.
Quando uma mentira é repetida muitas vezes, seu portador começa a acreditar em sua veracidade, a história criada para convencer outros torna parte de si. De tanto repetir o mesmo enredo, detalhes são adicionados, respostas são criadas para todas as possíveis perguntas existentes. Aquele que a profere passa a ter tanta propriedade sobre a narrativa, que começa a misturar fatos reais com os inventados, começa a ampliar e esticar a verdade de modo a apenas adicionar informações extras necessárias para se fazer condizente. Sua memória se torna embaçada, embaralhada, confusa. A linha que determina onde começa e termina a vida real torna-se tênue e facilmente transpassada.
O melhor mentiroso é aquele que acredita em sua mentira, mas esse não era exatamente o caso de Helena. Ela tomou para si a história que criara de menina de família rica, moradora de bairro nobre. Apagara da memória sua origem humilde e, toda vez que colocava o pé na Instituição, assumia para si a persona criada, mas não porque era uma exímia mentirosa. O motivo para isso era que ela acredita, com tudo que cabia em si, que aquela era a vida que merecia e recusava-se a privar a si mesma dos confortos e luxos que sua alma ansiava em ter. Ainda que fosse apenas em sua mente e aproveitando-se das migalhas do mundo real de pessoas que eram o que ela sonhava em ser.
Mas jamais admitiria isso.
— Sabe — Helena finalmente proferiu algum som, tentando disfarçar sua voz trêmula pela raiva e vergonha —, eu te vi sair da casa do Pedro mãos dadas com o Flávio.
Luís demorou alguns segundos para conseguir absorver todos os sentidos contidos nas entrelinhas daquela frase. Ela não estava fazendo isso. Estava? Helena o encarava com olhar ferino, silenciosamente desafiando-o a dizer qualquer coisa. A negar. A confirmar. A ameaça velada estava ali, embutida em cada uma das palavras ditas.
Luís sentiu vontade de vomitar.
Não tanto pela completa falta de caráter dela, mas porque jamais imaginou que seria chantageado por sua orientação sexual. Era doentio.
— Eu nunca disse que contaria a alguém, Helena — ele sibilou em resposta e, por mais que ela tenha tentado disfarçar, um suspiro aliviado escapou de seu peito. Ele, bruscamente, jogou o envelope contra o peito dela, deu um passo à frente, até que apenas centímetros de ar carregado os separassem. Ele se inclinou para frente e girou a maçaneta, empurrando a porta aberta. Olhou para o interior da sala e viu Laura o encarando de volta, preocupada. Jorge olhou em sua direção, como se esperasse uma explicação. Luís olhou para o amigo, prendendo o olhar ao dele.
— Eu sou gay — anunciou, e fechou a porta em um estrondo alto que fez Helena pular. Seu coração estava acelerado, seu rosto estava congelado em uma expressão de incredulidade. De todas as formas que aquilo poderia terminar, jamais imaginou que esse seria o caminho que Luís escolheria. Ela não sabia o que dizer, não sabia o que fazer. O que permeava sua mente naquele momento era que a verdade sobre sua vida estava nas mãos de Luís, que agora nutria nada além de uma gama de sentimentos negativos em relação a ela. Estava com medo.
Estava com medo porque, para ela, ele usaria o que tinha como armadilha, como poder de barganha para tentar conseguir o que quisesse. O que ela não entendia era que a única coisa que ele queria era paz e, depois daquilo, distância de tudo que dissesse respeito a ela. Ele inclinou-se ainda mais em direção a Helena de modo a encará-la certeiramente em seus olhos perdidos, seu rosto a apenas alguns centímetros de distância do dela.
— Nunca mais tente me afundar na sua merda — ele rosnou, virando-se de costas e caminhando para longe, deixando Helena sozinha com sua culpa, vergonha e arrependimento. E o envelope pardo com a documentação recebida.
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