Capítulo 12

12 de abril

Ele caminhou pelas ruas movimentadas do bairro da Zona Norte. Olhou ao redor, mas não reconhecia muito bem o caminho que estava fazendo. Foram poucas as vezes em que tinha ido ali e em todas estava acompanhado pelo morador local, então pouco fez para prestar atenção no trajeto. Entrou em uma farmácia para mexer no celular e conferir o aplicativo de mapas no qual havia traçado a rota a pé do metrô até o endereço de destino e percebeu que havia entrado na rua errada. Precisaria virar à esquerda e então andar por uma quadra antes de virar à esquerda novamente. Enfiou o celular no bolso e arrumou o boné na cabeça, enfiando as mãos nos bolsos da bermuda antes de se pôr a caminhar.

As ruas eram cinzas. Sentia-se preso em no filme do Oliver Twist que Luís havia o forçado a assistir apenas para prová-lo que havia, sim, uma adaptação de livro para o cinema que não fosse a maior desgraça do universo. A história de Charles Dickens foi preservada e retratada com dignidade sob lentes cuidadosas de Roman Polanski e o filme retratava com perfeição a cinzenta Londres coberta pela poluição das recém-instaladas indústrias, conferindo um ar deprimente e doentio às ruas cobertas pela massa trabalhadora oprimida. Não que o bairro da Pavuna pudesse ser comparado com antiga Londres industrial, mas a aura acinzentada parecia encobrir as ruas exatamente da mesma forma. Era como se o sol não mostrasse sua cara, não brilhasse para o já muito judiado bairro da periferia, mesmo em um belo dia de verão.

Duas esquerdas depois, Vicente alcançou a rua sem saída onde Luís morava. Atravessou a silenciosa vila composta por casas humildes e carros de segunda mão estacionados displicentemente nas calçadas, caminhando ladeira acima. O asfalto estava manchado em tonalidades diversas de azul e verde, resultado dos desenhos pintados no chão durante a última copa do mundo. Podia ver o que um dia foi a bandeira do Brasil e o que ele supunha ter sido a tentativa desastrada de pintar a mascote da competição. As lixeiras altas enferrujadas na frente de cada casa estavam cheias, indicando que a coleta de lixo ainda não havia sido realizada, apesar de já passarem das cinco da tarde.

Com algum esforço e prometendo a si mesmo que entraria na academia — coisa que no fundo sabia que não iria acontecer —, Vicente alcançou o topo da ladeira, no fim da rua, onde a casa de Luís se encontrava. Encarou por um segundo a fachada rosa desbotada que cobria os dois andares da casa simplória de subúrbio. Duas janelas retangulares de metal e uma porta de madeira compunham o andar de baixo, uma placa retangular com propaganda política de alguém que havia se candidatado a vereador no ano anterior ainda permanecia amarrada ao poste de luz localizado próximo à entrada. O zumbido dos fios era o único barulho que podia ouvir vindo daquela rua, além de alguns carros ocasionais que passavam nas ruas vizinhas. Encurtando a distância entre si e a porta da frente, tocou a campainha.

Após alguns segundos a porta foi aberta por uma mulher, cabelos grisalhos escapando pelo coque preso no topo da sua cabeça, rugas ao redor dos olhos revelando a idade e o cansaço pela vida sofrida. Tinha um pano de prato na mão, indicando que estava cozinhando quando foi interrompida pela campainha. Seus olhos eram profundos, castanhos, densos, e contavam uma história que Vicente desconhecia.

— Vicente, querido! Não sabia que você vinha, o Luís não me avisou. — Dona Rita o recepcionou, com um sorriso nos lábios, esticando-se na ponta dos pés enquanto Vicente curvava-se ao máximo para alcançá-la. A mulher cheirava a alho e a casa cheirava a peixe, e ele sorriu. Tinha cheiro de lar e comida de mãe. Não perdeu tempo percorrendo os olhos pelo ambiente quando atravessou a porta e adentrou a pequena sala, já conhecia o lugar que não havia mudado desde sua última visita.

— Eu não avisei para ele que vinha, tia — Vicente explicou. — Precisava falar com ele e ele não atende o telefone. Coisas da faculdade — mentiu. A verdade é que não tinha notícias de Luís há mais de uma semana, desde a festa. Não sabia o que tinha acontecido, até agora não entendera o motivo de ele ter decidido ir embora ao invés de dormir na casa dele como haviam combinado, entendia muito menos o porquê de não ter sequer avisado nem respondido suas mensagens desde então, mas a preocupação real era com o fato de ele ter perdido tantos dias de aula. Podia cobri-lo no laboratório, mas nada podia fazer pelas faltas que ficariam registradas em seu histórico, perigando reprovação, o que faria com que ele perdesse a bolsa de estudos. Fora até ali tentar entender o que estava acontecendo já que esse comportamento não era comum ao amigo.

— Ah, sim, sim. Posso te oferecer alguma coisa? Água, café? — Rita perguntou como toda boa anfitriã faria e ele recusou educadamente.

— Gostaria só de falar com ele, por favor — Vicente pediu, colocando em prática toda a educação que sua mãe lhe havia dado.

— Ele está no terraço estendendo as roupas. Você pode subir se quiser, conhece o caminho. — ela disse e ele acenou com a cabeça, agradecendo. Subiu as escadas de concreto, passando reto pelo segundo andar onde ficavam os quartos e indo direto até o terraço recoberto por um telhado de zinco em quase toda sua extensão, exceto pela porção invadida pelo sol onde o varal estava posicionado.

Luís estava de costas e não viu quando ele chegou, silencioso. Sem camisa, abaixava para buscar no balde a próxima peça de roupa a ser pendurada pelos pregadores de madeira na corda que cobria o andar de ponta a ponta lateralmente. Observou em silêncio enquanto ele repetia mecanicamente a ação, alheio ao mundo ao redor. A verdade é que não sabia o que dizer. Não sabia o que estava acontecendo, tinha medo de simplesmente perguntar o que diabos havia de errado com ele e ele se fechar ainda mais.

Havia ido até ali, mas, agora que ali estava, não sabia como proceder. Cautelosamente, caminhou em sua direção e parou centímetros atrás dele. Esperava que Luís notasse sua presença e se virasse e, quando isso não aconteceu, se abaixou para pegar uma peça de roupa e dois pregadores envelhecidos dentro da cestinha verde, e estendeu os braços em direção ao varal.

Luís viu de relance um par de braços brancos pendurar uma camisa ao seu lado e deu um pulo de susto. Havia tantas coisas erradas naquela cena que sequer sabia por onde começar. Primeiro, Vicente não devia estar ali. Segundo, não deveria estar pendurando suas roupas no varal. Terceiro, ele definitivamente não deveria estar apreciando isso tanto quanto estava. Sem saber o que dizer, continuou o trabalho em silêncio, fazendo o seu melhor para ignorar a presença ao seu lado, dominadora e opressiva, pendurando suas roupas para secar. Em questão de minutos a tarefa estava concluída, o balde vazio e o cesto de pregadores guardados no canto ao lado da máquina de lavar e os dois não tinham mais para onde fugir.

— Bom. — Luís quebrou o silêncio, ainda de costas para o amigo que estava parado no meio do terraço sem saber para onde ir enquanto ele arrumava os baldes já arrumados. — O que veio fazer aqui?

— Vim descobrir qual versão dos aliens abduziu você — Vicente respondeu, tentando descontrair o ambiente tenso. — O Oitavo Passageiro ou aquele boneco malfeito de O Resgate?

Luís não conseguiu evitar um sorriso e abaixou a cabeça, balançando-a negativamente.

— Desculpe pela forma como saí da festa. — Luís começou, mas foi interrompido pela mão estendida de Vicente.

— Só quero saber se você está bem — respondeu, enfático. Luís sentiu uma bola se formar em sua garganta ao se dar conta que Vicente havia percorrido todo o caminho de São Conrado até ali porque estava preocupado com ele.

Havia passado uma semana inteira se forçando a parar de pensar nele, tinha até mesmo trocado meia dúzia de mensagens vazias com um cara que conhecera na festa. Tentou aplicativos de relacionamentos, tentou dormir. E, por um segundo, teve a impressão que estava funcionando, mas foi só Vicente aparecer na sua frente que o misto de emoções conflituosas o invadiu como um soco na boca de seu estômago. Seu amigo estava ali, preocupado com ele. Seu amigo hétero estava ali, ele precisava se lembrar. Chacoalhou a cabeça negativamente tentando se livrar dos pensamentos indesejados e virou de costas, descendo as escadas e indicando com a mão para que Vicente fizesse o mesmo.

Entraram no seu quarto e Vicente fechou a porta atrás de si. O estalido metálico apontou para Luís o quão ruim era aquela ideia, a porta fechada e os dois confinados dentro de um cômodo pequeno. Vicente, alheio à perturbação que se passava na mente e no corpo do amigo, observou atentamente cada detalhe do quarto. No canto da mesa, volumes de livros diversos estavam empilhados ordenadamente, dividindo espaço apenas com cadernos onde Luís escrevia suas histórias que não deixava ninguém ler. Tinha uma versão digitada de todas elas no computador que repousava na mesa, mas gostava dos manuscritos. A conexão com suas ideias fluía melhor quando o lápis tocava o papel pautado do que quando seus dedos batiam ritmicamente nas teclas gastas do notebook. A última filha, estava escrito, rabiscado em caligrafia quase ilegível no caderno azul, e Vicente tocou a capa, se perguntando sobre o mundo inteiro contido nas palavras ali escondidas.

Os olhos azuis percorriam os detalhes do quarto pouco decorado, que contava apenas com uma mesa e fotos coladas na parede azul clara, além da cama e guarda-roupa Ele reconhecia boa parte daqueles momentos registrados, estava presente na maioria e, nos que não estava, havia sido detalhadamente informado da história. Havia fotos do grupo de amigos da faculdade, assim como da família e amigos do bairro de Luís, em momentos de festa e celebração, fotos de aniversários e casamentos. Mas havia também fotos deles dois em momentos que não faziam nada. Uma em especial chamou atenção de Vicente, porque ela também fazia parte do próprio mural que tinha em seu quarto. Foi um dia de inverno no ano anterior em que os dois se trancaram em seu quarto e fizeram uma maratona de oito horas jogando videogame. Não foi nada de especial, nada de extraordinário, apenas mais um dia durante as férias de meio de ano. E, ainda assim, a foto estava ali.

Luís observava, em silêncio apreensivo, Vicente percorrer o pequeno cômodo onde passava a maior parte do seu tempo livre. O celular jogado sobre a cama piscou silenciosamente anunciando o recebimento de uma mensagem. Com o olhar fixo sobre o homem que transitava confortavelmente pelo pouco espaço livre disponível, desbloqueou a tela e viu um link para uma playlist que Laura havia criado na tentativa de animá-lo. Rapidamente digitou "Vicente está aqui" em resposta e bloqueou a tela novamente, voltando com o celular para a cama.

— Você está agindo estranho desde o ano passado — Vicente disse, ainda de costas para ele, lendo a sinopse de um livro que havia apanhado na pilha. Uma curva no tempo, um romance. Não era um livro que normalmente apontaria como o tipo de leitura favorita de Luís, então o título o intrigou. — Não sei desde quando, mas é desde o ano passado. Se você não quer me dizer o que aconteceu, eu respeito, embora em muito me chateie saber que meu melhor amigo não confia em mim. Posso levar? — ele perguntou apontando com o livro e Luís acenou positivamente. Vicente era a única pessoa no universo para quem ele emprestaria seus preciosos exemplares comprados com muito custo, pois o amigo sabia muito bem da importância dos livros para ele e sempre tinha o maior dos cuidados ao pegá-los emprestados. Vicente suspirou. – Se não quer me contar, ok. Não vou insistir. Mas vou ficar exatamente aqui e quanto a isso não tem nada que você possa fazer — concluiu, categórico.

A luz da tela do celular piscou mais uma vez, a mensagem de Laura preenchendo as sete polegadas de tela perfeitamente preservada pela película. "Conta pra ele", ela escreveu em letras garrafais. Luís sentia o coração bater no pescoço, estava nervoso. Sabia que Laura estava certa, sabia que Vicente estava certo. Mas também sabia que ele não estava errado de se sentir tão inseguro quando estava. Começou a estalar os dedos, um a um, nervosamente, hábito que havia adquirido em situações de estresse. Conta pra ele. Com o olhar preso ao colchão coberto pelo lençol verde-azulado, ele sussurrou.

— Eu sou gay.

O mundo pareceu parar. Era a primeira vez que dizia aquilo em voz alta, para outra pessoa que não o espelho preso na parte de dentro do armário de madeira. E foram muitas as vezes em que repetiu aquelas palavras para o espelho, na tentativa de convencer a si mesmo de que aquilo não era um problema. Luís podia só ter se dado conta disso recentemente, mas sua memória era boa o suficiente para que agora ele pudesse olhar para trás e perceber a infinidade de situações que indicaram sua sexualidade desde o início da sua adolescência.

Situações que ele se esforçou para ignorar durante toda a vida, tendo a certeza de que algo estava errado consigo mesmo, que ele estava danificado, provavelmente doente. Sentimentos e desejos reprimidos por anos a fio sob expectativas que haviam sido postas sobre ele, muitas vezes por si próprio. Tinha na mente certezas enraizadas que, mesmo depois de ter admitido a si mesmo seu interesse por homens, ainda se faziam muito presentes em seus pensamentos, forçando-o em um conflito interno interminável, sem ter certeza de como prosseguir. Sem ter certeza de como se comportar. Então ele apenas repetia, de novo e de novo, na frente do espelho aquelas três palavras que continham a maior verdade de sua alma. Repetia para si mesmo, prometendo ao seu coração incerto que estava tudo bem, que ele não estava sentindo nada de errado.

Vicente estava errado ao pensar que ele não havia ido à faculdade desde a festa. Laura o convenceu a conversar com a psicóloga da instituição sobre seus sentimentos conturbados e, mesmo após apenas duas sessões, sentia que havia sido de valiosa ajuda. Longe de ser uma solução para seus conflitos, mas um começo bem-vindo. Seu coração batia disparado e ele não sabia o que fazer. Tudo era silêncio. Vicente permaneceu ali, de pé, olhando para ele, o semblante lentamente se transformando em uma carranca quando franziu profundamente as sobrancelhas.

— Merda, Luís!

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