A Morte e o comerciante
Minha vida era como a de uma princesinha. Meus pais se amavam e me amavam. Sempre faziam de tudo para me ver feliz. O que não era difícil, pois tínhamos tudo o que uma família poderia pedir: amor, harmonia, uma casa espaçosa e dinheiro suficiente para nos manter confortáveis mesmo que meu pai falisse.
Mas então tudo mudou.
Um dia, quando eu tinha seis anos, minha mãe desmaiou de repente. O desespero foi geral, minha mãe, Lissandra, era amada por todos da casa e ninguém gostaria de vê-la doente. Mas havia algo diferente no ar, como se não fosse uma simples doença. Eu podia sentir, mesmo sendo pequena.
Estava na hora de dormir. Ava, a criada mais próxima de minha mãe, pôs-me para dormir e me prometeu que tudo ficaria bem. Acreditei nela e dormi como um anjinho. A última vez em que isso aconteceu. A última vez que sonhei com fadas e magia. A última vez que fiquei feliz em sonhar.
No dia seguinte, acordei animada, ignorando a sensação ruim em meu peito. Queria ver minha mãe, abraçá-la e dizê-la que a amava. Corri pelo meu quarto ainda de pijamas para pegar uma flor do pequeno jardim na minha sacada. Um lírio branco.
Lembro-me de que fui feliz até o quarto dela. Que entrei correndo pela porta aberta em direção ao meu pai que estava de pé ao lado da cama, mas que quando vi seu rosto manchado pelas lágrimas e contraído de dor toda a minha inocente alegria se foi. Lembro-me de que parei, derrubei a flor no chão e caí sentada. Abracei minhas perninhas pálidas e chorei de dor. Cada soluço era uma facada em meu peito.
Então tudo perdeu o brilho.
Naquela noite, sonhei com a escuridão e com a morte.
***
Dez anos depois.
"Lílian! É seu pai quem vem vindo?" minha madrasta, Drica, me chamou de seu quarto, fazendo-me deixar o livro que estava lendo de lado para atendê-la.
"Vou descer para ver!" respondi enquanto saía do meu quarto e caminhava para as escadas que levam ao hall.
Passei pela sala e vi minhas duas irmãs postiças sentadas no sofá, usando bufantes vestidos floridos e com uma criada aos seus pés, cada uma, fazendo-lhes as unhas. O mundo podia estar entrando em autodestruição, mas elas morreriam com as unhas feitas.
Quando eu tinha dez anos, meu pai casou-se novamente com uma viúva "desamparada". Desde então ela viera morar conosco e trouxera as suas duas filhas do casamento anterior. Eu não gostava nem um pouco delas, mas fazia de tudo por meu pai. Inclusive aguentar aquelas três mocreias.
"Idiotas." Resmunguei enquanto abria a porta e saía para a varanda para ver o carro que se aproximava.
"Lílian! Quem é?" Minha madrasta gritou de novo. Eu quase podia vê-la deitada em seu divã fumando com o auxílio de sua piteira enquanto infernizava com carinhos seu gato, Lúcifer. Sim, não estou brincando. Esse realmente era o nome do gato.
"Não sei! Mas não é o papai!" respondi revirando os olhos.
"Então trate de descobrir!"
Bufei irritada e olhei o veículo que se aproximava com mais atenção. Eu o reconhecia de algum lugar...
"É o carro do Sr. Alceu!" sorri feliz. Além de grande amigo da família, o Sr. Alceu era também pai do meu melhor amigo. O único, para falar a verdade.
Viktor Alceu era o único garoto com quem eu podia falar periodicamente que não era um criado. Meu amigo de infância era um dos poucos bem-vindos a estar em minha casa mesmo quando meu pai estava fora e eu esperava que fosse ele o visitante. A última vez que nos vimos foi há um mês quando ele veio com seu pai para que este se unisse ao meu em uma viagem a negócios para a Nova Ásia. Eu já estava com saudades, mas como eles disseram que voltavam em um mês, já deviam estar próximos.
"AH! TERMINE LOGO COM ISSO, SUA ESTÚPIDA! Preciso estar perfeita para encontrar Viktor...!" Maysa, minha irmã postiça mais nova, estrilou.
"Viktor! O meu amor está vindo! VAMOS LOGO COM ISSO!" Marjorie, a outra irmã – que tinha a minha idade – , exclamou.
Fechei a porta para não ter que ouvir seus guinchos e sentei-me nos degraus da varanda, aguardando e rindo internamente das minhas irmãs. Havia um pequeno detalhe sobre Viktor que apenas eu sabia: ele era gay. E ninguém podia sequer desconfiar disso. Por isso, ele mantinha a pose de galanteador e não demonstrava o lado... colorido da sua personalidade.
Um minuto depois, o carro finalmente parou na grama do jardim e Viktor saiu de dentro do automóvel vestido elegantemente em um terno.
Observei-o por um segundo: alto, cabelos castanho-escuros, olhos azuis como o céu, pele bronzeada naturalmente, barba por fazer e um sorriso de canto capaz de enganar e levar qualquer uma ao chão.
Exceto eu, sorri.
"Bom dia, minha senhora!" Viktor brincou, fazendo uma reverência.
"Bom dia, monsieur!" respondi, erguendo-me e devolvendo a reverência.
"Devo dizer" ele tomou minha mão direita entre as suas, "que está muito linda hoje, como sempre!" e deu um leve beijo no meu pulso, ao invés de beijar as costas da mão.
Sabia que era exagero dele. Estava usando um vestido simples, creme, sem o espartilho sufocante que minhas irmãs insistiam em usar, de mangas compridas e na altura da panturrilha. Todas as minhas roupas eram assim, pois era como minha mãe costumava se vestir quando viva. Alguns dos vestidos que eu usava, na verdade, haviam pertencido a ela.
"Ah, já chega. Vamos logo entrar, Vick. Não precisa fazer teatrinho comigo." acenei para que ele me seguisse, o que ele fez rindo.
"Sempre estragando o clima, Lily!" ele gargalhou.
"Sempre agindo como o cavalheiro que não é." devolvi.
Abri a porta e deparei-me com minhas irmãs a postos, uma ao lado da outra, para receber Viktor no corredor.
"Minhas damas." Ele fez uma nova reverência para as duas e sorriu.
Revirei os olhos enquanto fechava a porta e caminhei para o lado de meu amigo galanteador que fazia com que as duas piscassem seus olhos verdes pateticamente enquanto apalpavam seus cabelos loiros cacheados artificialmente e riam com seus lábios carmesins.
Francamente. Elas eram muito fracas ou muito estúpidas?! Dando risinhos como hienas histéricas!
"Vamos, preciso te mostrar os filhotes da minha gata." puxei-o pelo pulso e ouvi suspiros contrariados atrás de mim.
"Ela já teve os filhotes?!" Viktor sorriu abertamente e seus olhos brilharam.
"Sim." respondi, soltando o pulso dele já que estávamos longe das duas hienas.
Caminhei para o quintal e o levei até o cesto onde minha gata tinha posto os sete filhotinhos. Sinceramente, eu ainda estava com pena da coitada. Seu parto fora muito demorado e alimentar todos aqueles filhotes... não era para qualquer uma!
"São muitos! Já viu os sexos?" ele indagou, abaixando se e tomando os filhotes nas mãos.
"Não. Deixei isso para o filho da Ava fazer." respondi desviando o olhar para uma flor branca que nascia próxima à parede.
"Mas são todos machos!"
"Eu sei. Quando fizer seis meses vou mandar o veterinário castrá-los. Drica não quer mais filhotes.", falei ainda observando a flor.
"De quantos meses ela estava da última vez que vim aqui?"
"Não tenho a mínima ideia, mas eles não são prematuros."
"Lily... Eu posso ficar com um?" Viktor pediu.
"Óbvio!" sorri. "Mas só daqui a um mês. São muito novos para serem afastados da mãe."
"Claro. Vai ser... Este aqui! O cinza!" ele apontou um filhotinho de pelo cinzento que estava mamando.
"Certo."
"Sr. Alceu! Sr. Alceu!" uma criada aproximou-se correndo em nossa direção. "É uma carta de seu pai!" ela entregou o envelope e se retirou.
"Será que aconteceu algum imprevisto?" Viktor murmurou para si mesmo enquanto abria o envelope.
De repente, senti um estranho aperto no peito. Um mau pressentimento?
"O quê?" Viktor murmurou novamente, ficando pálido.
"O que foi, Vick?" indaguei com a garganta apertada.
"Sinto muito, Lily...", ele ergueu o olhar dolorido para mim. "Acho melhor falarmos disso lá dentro, vamos..."
"Fale logo de uma vez! Está me assustando!"
Não sei se alguma nuvem encobriu o Sol, ou se foi pura arte da minha mente, mas eu senti como se todas as cores tivessem sumido naquele momento, sugadas de mim.
"Lily... Seu pai morreu."
***
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