O VELHO DO SACO: CAPÍTULO ÚNICO
Essa história aconteceu comigo, quando tinha uns doze anos. Até hoje, quando eu conto para meus filhos, sinto os cabelos da nuca arrepiarem e a dor no ombro não me deixa esquecer. Nunca mais dormi com a janela aberta ou sem deixar uma lâmpada acesa. Um medo de ranger os dentes, que só o sobrenatural pode explicar.
Estou falando do temido "Velho do Saco". Uma lenda folclórica, que presenciei. Vocês também gostariam de ouvir? Então, sentem-se e verifiquem se as janelas do seu quarto estão fechadas. Nunca se sabe quando ele estará arrastando seu saco negro, caçando aquelas crianças malcriadas.
Mesmo que elas já estejam adultas, ele irá te procurar...
Tudo começou quando meus pais resolveram ir visitar meu avô, que estava muito debilitado e foi morar na casa do filho mais velho, meu tio Élio. Ele era irmão do meu pai e vivia numa chácara bem afastada da cidade, onde só se conseguia chegar lá de carro e o vizinho mais próximo se encontrava alguns quilômetros adiante.
- Mateus, quantas vezes eu vou ter que pedir para arrumar sua mochila?
Minha mãe, com os braços cruzados e o cenho enrugado, me encarava com uma carranca, já impaciente comigo. Eu não estava feliz com a ideia de ir pra lá, onde não tinha nada para se fazer e nem telefone!
- Mãe, eu tenho mesmo que ir? Eu não posso ficar na casa da tia Dida ou no Gustavo? Por que eu tenho que ir?
- Porque não! Porque seu avô tá doente e tu vai com a gente, sim! Pronto!
- Mas, mãe...
- "Nem mais, nem meio mas"! - Cortou, dando as costas.
- Mãe! Eu odeio ter que ir para aquele fim de mundo! No meio do mato! Meus melhores amigos estão aqui! Isto é tão injusto! - Vociferei em vão.
Contrariado, larguei meu gibi¹ e levantei, soltando o ar. Não me sentia disposto a viajar por horas e enfrentar um pedaço da viagem numa estrada de chão batido, comendo areia.
Abri as portas do roupeiro, olhando com uma careta, sem saber exatamente o que iria colocar na mochila. Parecia que nada ali combinava com mato, mosquito e sapo!
- Que saco! - Murmurei. - É injusto!
Peguei algumas camisetas, bermudas, calções, algumas peças íntimas e um casaco. Fui jogando tudo na cama e com as mãos na cintura, fiquei correndo os olhos, se havia mais alguma coisa que eu pudesse levar para ocupar meu tempo. Virei o pescoço para a estante e agarrei um punhado de revistas de palavra cruzada e gibis, além de um bloco de rascunho e canetas.
- Deveria levar uma corda bem grossa e me enforcar numa das árvores de lá! - Resmunguei.
- Mateus! É pra hoje!
Meu pai buzinava e gritava para mim impaciente, já com o carro estacionado em frente a nossa casa. Para ele, era o momento de reencontrar o irmão e a cunhada e rever o pai, que depois de ficar viúvo perdeu a vivacidade de outrora.
Soquei tudo de qualquer jeito dentro da mochila, meu walkman² e meus fones. Sem música eu não ficaria nem sob tortura! Pensei, saindo do quarto e correndo em direção ao carro.
Em algumas horas, já estávamos na metade da viagem e a terra grudando na minha testa, boca e nariz. Não via a hora de chegar e jogar um litro de água na cara e mais um litro para limpar a garganta.
Chegamos lá à noitinha, quando as pererecas, pirilampos e cigarras começavam com seu concerto noturno.
- Olha, Mateus! Seus primos também vieram! Assim tu vais ter com quem brincar!
- Fala sério, mãe... - Resmunguei, revirando os olhos.
- Mas tu só "reclama", hein! - Disse meu pai, estacionando o carro do lado do carro da minha tia Léa, mãe de meus três primos que tinham idades próximas a minha.
Descemos e já fomos recepcionados pelos meus tios Élio e Antônio, que vieram nos cumprimentar entre abraços, batidas nas costas e, é claro, passar as mãos pelos meus cabelos e fazendo as mesmas piadinhas de cinco anos atrás.
- Você tá quase do tamanho do teu pai, moleque!
Eu não sabia se sorria e concordava ou falava que já tinha passado do meu pai. Achei melhor só sorrir mesmo.
Assim que entramos, estavam todos sentados em volta da lareira, com meu vôzinho sentado na mesma poltrona antiga, com uma manta de malha sob os joelhos. Tinha os olhos azuis tão claros e límpidos, que mais me lembrava uma pintura. Corri até ele e com uma saudade genuína, me joguei em seus braços já emagrecidos. Ele era a única pessoa que me fazia sentir feliz em estar ali.
- Meu netinho Mateus?
- Sou eu, vovô. Tava com saudade do senhor.
Ele me sorriu com a boca desprovida de dentes, mas em nada tirava a beleza daquela emoção verdadeira. Eu sabia que ele me amava de verdade. E isto acalmava meu coração. Nunca me senti à vontade com meus tios e primos.
Depois de tomar um banho e comer, fomos todos dormir, e no dia seguinte, aconteceu uma coisa que deu início ao meu maior medo.
Um dos meus primos, Vitor, corria atrás das galinhas e, por pura maldade, chutou uma delas, e jogava jabuticabas nos marrecos. Minha tia berrava para ele parar, e nada. O moleque estava com o diabo no corpo.
- Se ocê não pará com isso e não obedecê a sua mãe, o véio Zacaria vai te pegá e te levá pro buraco donde ele mora e te assá e te comê!
Assim que meu avô gritou aquilo, todos se viraram na direção dele, que há muito tempo não falava uma frase inteira e num tom de voz alto, como naquela tarde.
Eu senti tanto medo daquela afirmação dele,que todo o meu corpo arrepiou num medo obscuro. Um medo primitivo que nasce conosco, desde que nascemos e não sabemos exatamente de onde ele vem e porquê, que vive adormecido dentro da alma, até que algo vem e desperta este terror até então desconhecido.
- Ocê vai fugí dele e num vai adiantá! Pruque ele vai te caçá e te botá no saco e ocê vai se esperneá e gritá e ninguém vai te ouví.
Um silêncio aterrador tomou conta de nós. Ninguém conseguia reagir, até que o choro assustado de Victor nos tirou daquele transe. Minha tia Léa foi até o filho para acalmá-lo, enquanto meu pai foi até meu avô, fazendo-o se distrair e parar de gritar aquelas coisas. Mas uma coisa chamou minha atenção. Meu tio Élio estava tremendo, com o olhar perdido no horizonte. Alguma coisa despertou dentro dele, um gatilho de infância veio à tona.
- Crianças, vocês não querem ir até o lago com o tio Toni? - Disse minha mãe, me encarando.
Eu assenti, indo com eles e meu tio. Lá, não resisti e perguntei o que tinha acontecido com tio Élio para ele ter ficado apavorado com o que o vovô tinha dito.
- Ah, Mateus... Ele sempre foi o mais terrível dos quatro irmãos.
- Quatro irmãos? O senhor tá falando do tio Miguel que sumiu na infância e nunca mais apareceu?
- Ele não sumiu. Ele foi levado pelo velho do saco. É o velho Zacarias que mora lá "pras" bandas da floresta de pinheiros e que vem pra cá à noite. Quem entra lá, nunca mais volta.
- Velho do saco? Mas não é lenda, não?
- Não. Élio, eu, seu pai e Miguel fomos lá pra caçar pinha pra colocar no fogão à lenha e também pra roubar os ovos dos ninhos de pardais. Só que era pra gente voltar antes de anoitecer e o Miguel que era o caçula dos quatros se embrenhou no fundo da floresta e, como éramos responsáveis por ele, não podíamos retornar pra casa até acha-lo.
- E o que aconteceu, tio? - Perguntei, já interessado.
Meu tio olhou na direção do lago, onde os meninos berravam, dando mergulhos. Estavam totalmente alheios a nós dois ali. Melhor assim, já que odiaria ver nossa conversa interrompida.
- O que aconteceu naquele dia, tio Toni? - Insisti.
Ele se empertigou todo no assento, pigarreou levemente, para se preparar, olhando-me diretamente nos olhos:
- Seu pai e eu tomamos a iniciativa de sair atrás dele, enquanto Élio esperava, caso Miguel aparecesse. Levamos muito tempo e cada vez mais entrando pra dentro da mata fechada, chamando por Miguel. Depois de andar muito, Paulo e eu resolvemos voltar e avisar nossos pais. A gente iria ganhar um belo castigo por deixar Miguel sozinho no mato, mas era melhor do que os quatro perdidos. Só que acabamos nos perdendo! Damos voltas e voltas e a lua já alta no céu! Foi quando, de repente, ouvimos um grito horrível! Um grito dilacerante, que te faria gelar até a alma!
- Era o grito do tio Miguel?
- Não. Era o seu tio Élio. Fomos correndo e tropeçando nos troncos caídos, escorregando no chão úmido e galhos cortaram nossos braços e arranhavam o rosto da gente. Fomos nos guiando pelos gritos de socorro do nosso irmão sem enxergar um palmo diante da gente, e mesmo que meus dois joelhos sangrassem das quedas, e seu pai com um corte na testa, não paramos de correr. Foi tão angustiante que até hoje não me aproximo daquela mata...
Fiquei olhando, querendo loucamente saber mais sobre o que tinha acontecido, mas soltei um suspiro de impaciência em sinal que estava ali esperando, e deu certo. Ele me olhou, respirando fundo.
- Você sabe que isto me traz lembranças bem ruins, não é? Seu pai vai me matar, mas ok!
Tentei controlar minha vontade de sorrir. Não seria apropriado.
- Demorou, mas chegamos no ponto de partida e encontramos nosso irmão Élio em estado de choque, todo urinado e sem nenhuma reação. Eu fui até ele e o sacudi muito e nada. Aquilo era angustiante! Então, seu pai saiu correndo em direção a nossa casa e gritou pra eu ficar com seu tio, que logo voltaria com nosso pai. Eu fiquei lá sozinho, abraçando meu irmão. Foi quando eu vi uma penumbra entre os pinheiros. Ele andava como se não tocasse os galhos de tão silencioso e tinha nas costas um imenso saco, que ia se arrastando. Um cheiro de carne apodrecida se espalhou no ar, me sufocando.
- Como o senhor conhece o cheiro de carne podre, tio? - Interrompi.
- Quando você é criado na zona rural, sabe bem como é o cheiro de carne podre. Era normal encontrar algum bicho morto no mato.
- Continua, tio.
- Precisamos voltar para casa agora. - Levantou-se.
Fiquei ali parado. Não queria voltar sem antes saber o que ele viu lá naquela floresta. Eu não ia arredar o pé, sem saber o que tinha visto.
- Eu não vou, sem ouvir o resto! - encolhi os ombros, decidido.
- Olha aqui, moleque! Você quer ficar, então fique sozinho! Eu e meus filhos vamos voltar pra lá!
- Tio! Vai me deixar aqui, sozinho?
- Se quer desobedecer, então fique e aguente a visita do velho do saco!
Ele se afastou em direção aos meninos, chamando-os para sair e voltar para casa. Antes de ir embora, veio até mim, dizendo que era melhor obedecer e se comportar bem.
- Não é uma historinha de criança que vai me botar medo, tio! Não sou mais um bebezinho chorão! E quer saber? Eu odeio este lugar! - Gritei, me levantando.
A atmosfera sombria da floresta envolvia-me, como se as árvores retorcidas conspirassem contra minha presença. O eco distante dos protestos de meu tio se perdia na densidade do bosque de pinheiros, e a incerteza se instalava à medida que eu descia pelo barranco.
Desviando-me de pedras cobertas de musgo e galhos retorcidos, uma sensação de desespero tomava conta, pois cada passo parecia conduzir-me a um labirinto implacável. Acreditava que aquelas histórias caipiras eram mera fantasia para encobrir a irresponsabilidade de meus tios mais velhos, mas a floresta revelava sua própria narrativa macabra.
Ao me sentar sob um pinheiro, a escuridão ao meu redor era a única companhia. A espera pela salvação tornava-se angustiante, mas um farfalhar de folhas secas e um gemido distante cortaram o silêncio como lamentos de almas perdidas. Meu medo crescia, segurando a eminente vontade de chorar.
E então, o arrastar de algo pesado nas folhas secas ecoou, sugerindo que não estava sozinho naquele lugar enigmático. A floresta dos pinheiros tornara-se um cenário onde o desconhecido se misturava ao terror, desafiando a lógica e instigando um pavor crescente.
- Quem tá aí? - Tentei gritar, mas saiu um arremedo de voz.
Outra vez um gemido gutural vindo na minha direção. Eu olhei para todos os lados, me levantando de onde estava, para tentar ver se tinha alguém atrás de mim. Meu instinto ordenava meu cérebro a sair correndo dali o mais rápido possível, mas minhas pernas não obedeciam.
- Menino mal criado é por mim devorado...
Uma voz horripilante, cortante como agulhas que perfuram os ouvidos, serpenteou em minha direção. Enquanto ela se aproximava, lágrimas involuntárias escapavam de meus olhos, e minhas preces ecoavam alto, uma tentativa desesperada de sufocar o som aterrorizante:
- Menino mal criado é por mim devorado. Teço meu caminho nas sombras e encontro deleite na agonia. As preces serão meros sussurros perdidos, pois minha presença sinistra é inevitável. Não adianta rezar, pois meu abraço sombrio é a única fuga que terás. - Uma risada arrepiante ecoa, lançando o medo como sombras inescapáveis sobre qualquer coragem que ouse desafiar a escuridão iminente.
- Não!! Não sou um menino mal criado!! - Clamei, minha angústia ressoando nas palavras, buscando em vão libertar-me do destino sombrio que parecia cada vez mais iminente.
Eu chorava descontroladamente, colocando as mãos nos ouvidos para abafar aquela voz de gelar até os ossos. Fui me encolhendo, colocando a cabeça entre as pernas, sentindo um líquido morno se espalhar no meu calção. Estava me urinando, como meu tio no passado.
- Por favor, me deixe em paz!! Vá embora, Zacarias!! - Gritei, a voz trêmula e embargada pelos soluços, implorando desesperadamente por um alívio que parecia escapar pelas frestas da escuridão.
Foi quando senti algo pontiagudo roçar por entre meus cabelos. Pensei que era algum galho que tinha caído, mas não. Era uma mão esquelética de unhas compridas. Os dedos eram tão finos e retorcidos como galhos, em pele disforme e decomposta. O cheiro de podridão era tão intenso que minhas narinas ardiam e deixavam minha traqueia arranhando. Aquela mão deslizou em direção ao meu rosto e foi descendo até meu ombro, apertando até perfurar a pele, me fazendo sangrar. Eu não conseguia me mexer e minha voz se perdeu diante do terror que sentia. Nem a dor dilacerante que queimava meu ombro, se igualava àquela angústia visceral que embrulhava meu estômago.
- Devorarei cada pedacinho deste corpo lentamente, saboreando cada momento de seu desespero, enquanto escuto o eco angustiante de seus soluços, antes de selar seus olhos para sempre no abismo do terror...
- Não! Não faça isso! Eu imploro, por favor, não me faça passar por isso! Tenha piedade! - Supliquei, a voz trêmula, enquanto meu desespero ecoava em resposta à cruel ameaça, como um eco melancólico na escuridão iminente.
Fechei os olhos e pensei na minha mãe e nas vezes que ela me pedia para arrumar meu quarto, dos professores que pediam para eu me comportar, do meu pai que me olhava entristecido, por saber que eu estava me tornando um péssimo filho.
A língua, densa e áspera, deslizou sinistramente pelo meu rosto. Uma gosma negra, fétida, amalgamou-se às minhas lágrimas e saliva, criando uma fusão repugnante. No desespero, minhas preces ecoaram, implorando ao meu anjo da guarda proteção contra as malevolências do mundo, ansiando por uma segunda chance para redimir-me como filho.
Contudo, a entidade sinistra persistia. Senti suas mãos obscuras arrastando-me implacavelmente em direção a um gigantesco saco negro, cuja escuridão sugava a esperança. Agarrei-me com desespero aos galhos retorcidos da árvore, enfrentando a resistência sobrenatural que tentava arrebatar-me para um abismo desconhecido. O embate entre minha determinação e o destino sombrio tornava o ar carregado de tensão, como se cada segundo fosse uma batalha pela minha própria existência.
- MATEUS! MATEUS! ONDE VOCÊ ESTÁ? FILHO! GRITA SE CONSEGUIR! JÁ ESTAMOS CHEGANDO! MATEUS!
Ao ouvir a voz de meu pai me gritando ao longe, comecei a chamá-lo o mais alto que eu conseguia. Estava quase perdendo a voz, mas não facilitaria as coisas para aquele velho desgraçado!
- PAIIIEEE!! PAPAIII! EU TÔ AQUI!! ME AJUDA!! PELO AMOR DE DEUS!! ME AJUDA!! ELE VAI ME LEVAR!! EU PROMETO SER UM BOM FILHO, PAPAI! EU JURO POR DEUS!!
Então, distantes luzes de lanternas tremulavam, e meus gritos ecoavam no vazio, enquanto as garras ossudas do velho do saco mantinham seu cruel domínio. A fraca luz de uma lanterna se aproximou, revelando meu tio Élio, acompanhado por meu pai, e meu tio Toni, com mais dois homens. Estendi as mãos, lágrimas escorrendo ao vê-los correndo em minha direção.
- Ele vai me levar! Não deixe, pai! Não quero morrer!
- Mateus, meu filho! Te acalma! Estamos aqui, filho!
Quando os braços de meu pai envolveram-me, uma onda de alívio me inundou, como se todo o desespero fosse arrancado de meu peito, permitindo-me respirar novamente.
- Mateus, fica calmo. Já vamos tirá-lo daí. - Disse meu tio Toni.
Contudo, a mão de unhas afiadas persistia, cravando-se em minha pele, rasgando a esperança a cada instante.
- O velho do saco, tio! Ele tá me puxando! Me ajudem! - Chorava em desespero, enquanto as trevas pareciam resistir à chegada da salvação.
Os outros que estavam em pé com as lanternas voltadas na minha direção, sem magoar meus olhos, se olharam confusos.
Meu pai e meu tio Antônio, que estavam ajoelhados perto de mim, tentavam me acalmar.
- Meu filho? Olha pra mim. Não tem velho algum, filho.
- Como não, pai?! Ele tá me agarrando!
Senti o excesso de saliva escorrer pela boca, pingando no peito. Era pelo medo angustiante que crescia cada vez mais, de morrer devorado pelo velho.
- Mateus! Olha pra trás! Não há velho algum! Olha! Tu tá preso nos galhos deste arbusto!
- Filho, confia em mim? Olha pra trás, devagar. Não há ninguém. Está preso entre estes galhos e um deles perfurou seu ombro.
Foi então que reuni coragem para virar o pescoço, apenas para deparar-me com uma visão aterradora. Não havia ninguém além de galhos retorcidos e espinhos monstruosos dilacerando a pele do meu ombro, provocando um sangramento profuso que ecoava o horror subjacente.
Meu outro tio, junto com os demais homens, em um sinistro ritual de remoção, cortaram os galhos e retiraram os espinhos, cada movimento ecoando na câmara sombria dos meus pesadelos. A dor era uma sinfonia agonizante, mergulhando-me em um desmaio inevitável.
Só recobrei a consciência dois dias depois, preso em um leito de hospital. A febre alta tornava as noites uma procissão de delírios, onde a sombra do velho se arrastava pelo quarto, apertando meu ferimento com uma presença insidiosa.
Ao ter alta, a recomendação de terapia com um psicólogo ecoava, pois a experiência naquela mata tinha deixado cicatrizes invisíveis, transformando-se em um labirinto psicológico do qual mal conseguia escapar.
E assim, foi. Foram anos me tratando com terapeutas e quando cheguei à idade adulta, meu psicólogo disse estar curado.
Eu sabia assim como meus tios, o que vi e ouvi naquela floresta fechada de pinheiros e espinheiros. Por muito tempo aprendi a esconder meu pavor, mantendo a janela do quarto fechada e dormindo sempre com a luz acesa.
Até os dias atuais.
Mesmo após aquele episódio na floresta, carrego comigo as cicatrizes emocionais do encontro com o temido "Velho do Saco". A cada noite, o eco daquela voz horripilante ainda reverbera em meus pensamentos, e a lembrança da mão esquelética permanece vívida, transformando meu refúgio em um território assombrado pelo medo que jamais se dissiparia.
Ao longo dos anos, tentei suprimir o medo, mas uma voz interior persistente ecoa em minha mente, assombrando meus pensamentos e questionando minha coragem.
- Será que realmente superei aquela noite na floresta? - indago a mim mesmo em um diálogo interno marcado pela inquietação. Mesmo com a racionalidade adquirida através dos estudos em filosofia, o medo teima em ressurgir, sussurrando dúvidas insidiosas.
O fantasma do "Velho do Saco" ainda assombra meus sonhos, influenciando minhas decisões e moldando minhas ações. Eu evito florestas escuras como se fossem portais para um desconhecido sombrio, e a cautela ao anoitecer tornou-se um hábito arraigado. O trauma, gravado indelevelmente em minha memória, moldou meu comportamento, tornando-me relutante em enfrentar as sombras do meu passado.
No entanto, a vida segue seu curso inexorável, e busco refúgio na filosofia. Em meio aos estudos, encontro um espaço para refletir sobre o significado do medo e da existência, tentando encontrar respostas que possam dissipar as sombras que continuam a assombrar minha jornada.
Decidido a enfrentar meus temores, retornei à cidade natal para uma visita à chácara onde tudo aconteceu. Avisei a família da minha decisão e viajei com o pensamento no passado traumatizante.
- Amor, estou voltando à chácara. Preciso enfrentar tudo aquilo de uma vez por todas! Caso contrário, nunca irei descansar. - Compartilhei com minha esposa, buscando seu olhar para encontrar apoio.
Ela assentiu, compreendendo a importância desse passo.
- Estarei aqui esperando por você, Mateus. Lembre-se de que não estará sozinho nessa jornada. - Suas palavras eram um conforto enquanto eu embarcava na viagem, com o peso do passado traumatizante ecoando em cada pensamento.
Ao adentrar a mata, os galhos retorcidos pareciam sussurrar lembranças, como se o próprio bosque guardasse segredos sombrios. Cauteloso, eu seguia em frente, ansioso por desvendar os mistérios que, por tanto tempo, haviam me atormentado. A paisagem familiar se transformava lentamente, metamorfoseando-se em um palco de sombras dançantes que ameaçavam minar minha sanidade.
Subitamente, uma voz ecoou, não mais horripilante, mas um murmúrio carregado de redenção:
"Mateus, encare seus medos, pois somente ao confrontá-los você encontrará a verdade."
A voz, uma amalgama de lembrança e imaginação, desafiava-me a compreender a fronteira tênue entre realidade e fantasia. Cada palavra reverberava em meu íntimo, alimentando a curiosidade enquanto eu me embrenhava mais profundamente na trama que a floresta tecia ao meu redor.
Em uma clareira na mata, entre as árvores, avistei uma figura idosa, não mais assustadora, mas envolta em uma aura de sabedoria. Era como se o "Velho do Saco", em sua versão redentora, estivesse ali para me guiar através das sombras do passado.
- Mateus, encare seus medos, pois somente ao enfrentar, você encontrará a verdade sobre si mesmo. - sussurrou o velho, sua voz agora carregada de compreensão.
- Agradeço por suas palavras, Velho do Saco. É curioso perceber como o medo pode se transformar em uma jornada de autoconhecimento. Estou disposto a enfrentar as sombras do passado e explorar as profundezas da minha alma. Você, que já foi meu tormento, agora se torna um guia em minha busca por compreensão.
Respondi, sentindo uma mistura de coragem e gratidão diante dessa inesperada reviravolta em minha jornada filosófica.
E antes de dar as costas e ir embora, Mateus o encarou, ainda cético:
- Você é realmente o Velho do Saco? - questionei, buscando nos olhos sábios da figura enigmática uma resposta para a transformação ocorrida.
O velho sorriu de maneira enigmática, sua expressão carregada de mistério.
- Às vezes, somos aquilo que tememos, e outras vezes, somos a redenção que buscamos. As fronteiras entre temor e superação são tão fluidas quanto a dança das sombras nesta mata.
Deixou-me com essas palavras, alimentando ainda mais o enigma que envolvia sua identidade.
O encontro proporcionou-me uma jornada interior de autoconhecimento. Percebi que o medo não precisava ser um fardo eterno, mas sim uma oportunidade para explorar as profundezas da minha própria alma. "O Velho do Saco", agora transformado em símbolo de superação, tornou-se parte integrante da minha jornada filosófica, guiando-me pelos caminhos do entendimento e da aceitação.
Ao deixar a floresta, senti-me renovado, como se tivesse conquistado uma vitória sobre minhas próprias trevas. A chácara, antes carregada de lembranças sombrias, agora refletia a luz da superação e do entendimento.
A experiência transformadora levou-me a escrever sobre minha jornada, compartilhando não apenas a história do "Velho do Saco", mas também a jornada emocional que me levou a encarar meus medos de frente. No entanto, enquanto as palavras ganhavam vida no papel, a linha entre realidade e imaginação parecia distorcer-se, deixando-me em dúvida sobre a veracidade do que vivenciara.
A escrita tornou-se uma ferramenta terapêutica, não apenas para mim, mas para outros que buscavam compreender os próprios fantasmas internos. Cada leitor interpretava a narrativa de maneira única, alimentando o mistério que pairava sobre a verdade por trás daquela experiência.
Enquanto eu mergulhava na incerteza, um enfermeiro aproximou-se, quebrando a ilusão de luz e redenção. Com uma seringa na direção de meu braço e um sorriso mecânico se aproximou silenciosamente, iniciando o processo. E a linha tênue entre a realidade e a narrativa que construí desfez-se como fumaça na escuridão, deixando-me penetrar cada vez mais fundo na teia da sonolência mental.
Me pergunto se o "Velho do Saco" fora apenas uma criação da minha mente ou se eu realmente havia enfrentado sombras além da compreensão humana?
Nunca saberei...
Fim.
(4181 palavras)
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