o7| Vincent Callum é um mentiroso
O dia já está nascendo quando entramos nos arredores da fazenda. Ao longe sinto o cheiro de leite, café e mel. A carruagem nos protege da grossa neblina do alvorecer que invade os campos, fazendo o ambiente ficar um pouco abafado por causa de nossa respiração. Garry observa o movimento pela janela, tão tranquilo e ao mesmo tempo tão nervoso por ter que lidar com tia Cornélia, que pode ser uma mulher bem temperamental às vezes.
Penso que eu poderia não ter dormido bem, pensando sobre isso, mas a verdade é que eu dormi muito, muito bem. Tão bem que acordei apenas quando Garry me chamou para fazer o desjejum. O cheiro de leite e mel se intensifica quando entramos no vale e passamos pela casa de Delila, nossa caseira, e me controlo para não pedir que parem para que eu posso tomar um pouco daquele leite com canela e mel que ela faz antes do alvorecer. Vejo que a postura de Garry está tensa, seus lábios estão contraídos e a testa retesada. Ele mal sabe que ela não irá falar nada com ele, e sim comigo. Pelo menos não vou deixar que Garry leve toda a culpa, que na verdade é toda minha. Eu que comecei tudo, e eu sei que no fundo eu queria ainda estar naqueles lençóis quentes e macios, aninhada em seu peito... como fiz a noite inteira.
Estou apenas fingindo.
A carruagem diminui o ritmo e faz uma parada, é quando o vejo apertar com força sua bengala e me lançar um olhar tão tenso que tive que colocar minha mão sobre a sua e assentir de forma confiante. Ele sai primeiro da carruagem, me estendendo a mão para descer. Reparo que ele está muito bem vestido, como se fosse assistir a algum concerto ou ópera, além de estar cheirando muito bem. Seu perfume me faz recordar de meu avô, que por acaso usava o mesmo. É uma antiga colônia de aroma muito agradável produzida na Polônia, que hoje em dia é bastante cara, pois foi um dos produtos que sobreviveram as guerras.
Ele me estende o braço para acompanha-lo, mas pondero se seria adequado. Tia Cornélia pode desconfiar de alguma coisa, eu não quero que ela saiba agora.
- Não Garry, todos sabem que eu não ando acompanhada dessa forma com cavalheiros.
Ele está tão tenso que apenas assente e então começamos a caminhar até minha casa. Enquanto caminhamos vejo que a chuva fez um estrago no vale, e que Delila e o velho Dorson vão ter bastante trabalho nesses dias. Penso em como deve ter ficado meu pomar e o jardim, e que eu vou ter bastante trabalho. Meu estômago se revira quando vejo tia Cornélia sentada na cadeira de balanço, com uma lamparina ao seu lado. Por quanto tempo ela ficou parada ali, apenas me esperando? Me sinto culpada e zangada. Ergo o queixo para não deixar que ela veja que estou me sentindo arrependida de alguma maneira. Quando finalmente nos avista em meio a neblina grossa, ela levanta da cadeira com um solavanco e coloca a mão trêmula na boca, sufocando um choro desesperado.
- Ah graças a Deus! – ela grita e desce a escada, me dando um abraço forte. – Larsa, por onde andou?
Dou um abraço reconfortante nela e percebo Callum parado logo ao lado da cadeira que balança sozinha. Ele esteve me esperando também? Se esteve, então deveria ter avisado a tia Cornélia que eu estava com Garry...
- Desculpe tia – murmuro, limpando suas lágrimas com seu lenço. – Eu estou bem.
- Mas por onde você andou querida? – ela aperta minhas mãos e me lança um olhar aflito. – Eu pensei que nunca mais a veria! O Sr. Callum retornou de seu passeio sozinho, disse que a perdeu de vista e achou que você tivesse retornado ao vale.
Abro a boca para me justificar, mas Garry coloca a mão em meu ombro e cumprimenta tia Cornélia, que logo abre um imenso sorriso ao vê-lo, parecendo esquecer que que tudo aquilo havia acontecido.
- Bom dia Sra. Phillips...
- Ah, por favor! Me chame apenas de Cornélia – reviro os olhos por dentro. – Fico tão feliz que minha querida sobrinha esteja acompanhada de um grande homem como você!
Enquanto Garry conversa com ela, meus pensamentos vão aos poucos se distanciando. Meus olhos pousam em Callum, que ainda nos observa. Ele nem sequer devia estar aqui fora, nesse ambiente totalmente frio. Continuo o encarando com a expressão mais neutra que posso, e ele desvia o olhar para os campos, como se eu não estivesse mais ali. Passei quase três dias com Garry, e ele sabia e mesmo assim omitiu tudo, não falou nadinha para tia Cornélia, e por quê? Ele poderia ter avisado com quem eu estava e tranquilizado os nervos de minha tia.
Vincent Callum é um mentiroso.
Um mentiroso.
- Larsa estava comigo o tempo inteiro – Garry apertou meu ombro levemente, afastando o devaneio e me fazendo fitá-lo. – Eu a convidei para dar uma volta e fomos para minha casa para nos abrigar da chuva.
Ele me olha como se pedisse para eu concordar, então assinto. Talvez Garry também tenha entendido que Callum havia mentido sobre meu paradeiro e achou melhor não o contrariar na frente de tia Cornélia. Bem, isso foi o melhor a se fazer mesmo. O mal-entendido pareceu se resolver entre eles, então começamos a seguir para casa.
- Não quer ficar para o almoço, Dr. Heiko? – ouço ela perguntar, mas meu olhar ainda está fixo em Callum, que não para de observar o campo. – Seria uma honra em tê-lo novamente em nossa mesa, principalmente quando você e Larsa estão se dando tão bem agora.
Me viro para Garry e ergo uma sobrancelha para ele, avisando que deve ficar de boca fechada sobre nossa recente relação.
- Eu adoraria Cornélia, mas creio que há muito trabalho acumulado em meu consultório. Esses últimos dias foram agitados, tive bastante trabalho na madrugada inteira.
Meu rosto entra em combustão ao perceber a sútil indireta.
- Ah é claro, compreendo perfeitamente. Mas espero que reconsidere o convite para outro dia, sim?
- É claro, será um prazer – ele segura a mão de tia Cornélia e a beija. – Obrigado por ser tão gentil comigo.
- Sempre será bem-vindo em nosso vale, Dr. Heiko – ela está tão radiante que penso que seria ela quem deveria se casar com ele. – Se me dão licença, vou me recolher.
Falando isso ela se retira, com um sorriso radiante no rosto. Olho para Garry e abro a boca para me despedir, mas ele sobe os dois primeiros degraus da escada e me estende o manto que usei em nossa noite, perfeitamente dobrado.
- Ficou melhor em você, pode ficar – meu estômago embrulha, mas tia Cornélia não está por perto. – Não tem problema, aceite.
Pego o manto macio e o acaricio em minhas mãos. Um sorriso discreto surge em meus lábios, mas logo morre quando lembro que Callum ainda está lá. Ele agora está nos olhando, segurando sua máscara de contenção.
- Vincent – cumprimenta Garry. – Está tudo bem?
Posso jurar ter visto Callum cerrar o queixo.
- Está tudo ótimo – ele murmura e passa por nós sem dizer mais nada e muito menos nos olhar, entrando na casa.
- Acho melhor você ir agora – falo para Garry, que está com o olhar fixo em Callum. –
Ouviu? Vá para casa.
Ele sobe rapidamente os degraus e me dá mais um beijo, bem rápido. Dou alguns passos para trás e quase o xingo, apontando em direção a saída. Ele me lança um sorriso e depois monta na carruagem, partindo em seguida. Observo os cavalos se tornarem um pequeno borrão no horizonte e então meu sorriso morre. Olho para a cadeira de balanço e penso em afundar ali para sempre. O que fiz? Sou tão boba! Respiro fundo e observo o sol lançar seus primeiros filetes de luz no vale, banhando todo o campo de calor. Pondero em quem confrontar primeiro, tia Cornélia ou Callum? Eu tenho que conversar seriamente com os dois, pois nenhum possui o direito de interferir em minha vida daquela maneira. Tomo fôlego e começo a entrar em casa, pisando duro em direção ao quarto de Callum.
Dou três batidas fortes na porta. Segundos depois ouço o som das molas da cama e madeira rangendo com seus passos. Quando escuto a chave destravando entro de supetão, quase fazendo a porta dar um encontrão na testa de Callum. Ele apenas me olha ainda com o queixo cerrado e caminha até a janela, como seu eu não estivesse ali. Fecho a porta e fico ao seu lado, lhe lançando uma careta zangada.
- Por quê? – indago.
- Não entendi – minhas mãos formigam para não o estapear. Ele nem sequer me olha, fitando o vale com aquele queixo cerrado.
- Eu terei que desenhar para você? Sr. Hoffmann...
Ele retira a máscara e a joga na cama. Posso ver resquícios de sangue nela e engulo em seco. Respiro fundo e tento suavizar a expressão.
- Por quê não contou para tia Cornélia que eu estava com Garry?
Ele passa a mão nos cabelos acastanhados e finalmente me encara com aqueles grandes olhos acinzentados.
- Isso importa agora? – grunhe.
Comprimo os lábios e tento ao máximo não me exaltar, pois tia Cornélia havia acabado de se recolher e estava exausta por causa da longa espera.
- É claro que importa! – quase grito, não conseguindo me controlar. – O que acha que ela vai pensar de mim? O que você acha que os outros vão pensar?
- E você por acaso se importa com o que pensam de você agora? Acho que Garry vai cuidar muito bem de você, como deve ter cuidado o resto da noite inteira...
Lanço minha mão contra seu rosto e som ecoa pelo quarto.
- Você me decepcionou Callum, muito – murmuro. – Não espere que eu lhe dê alguma explicação do que ocorreu entre mim e Garry, pois não darei. Eu o deixarei imerso em suposições, como fez até agora. Espero que esteja satisfeito com o que acabou de dizer...
- Larsa! Me perdoe – ele agarra minha mão e a beija. – Eu só estou inseguro.
- Com o quê? – recolho minha mão com violência, deixando um pequeno corte em seu lábio superior. – Não desconte em mim a sua insegurança sobre o que quer que seja!
Lanço para ele um olhar hostil e me dirijo até a porta, deixando-o sozinho. Minha cabeça dói, sei que preciso pensar melhor. O que diabos estava acontecendo com Callum? Me tranco em meu quarto, aliviada por ele não ter me seguido. Sinto meu corpo estranho, como se algo estivesse mudando desde aquilo. Deito na cama e suspiro, vendo o tempo passar e o dia ficar cada vez mais claro. A manhã avançou tão rápido que não percebi que peguei no sono. Acordo com alguém batendo na porta e penso em ignorar, mas as batidas se tornam cada vez mais insistentes até que finalmente levanto e vou até lá pisando duro.
- O que é? – indago irritada quando abro a porta.
Uma mulher bonita, de cabelos loiros e vestido azul me encara, ela tenta esboçar um sorriso amigável, da qual não retribuo.
- Quem é você? – pergunto, já impaciente.
- Eu sou Rosamund, esposa de Callum. Eu vim visitá-lo e gostaria de conhecer a famosa Larsa, de quem tanto ouvi falar nas cartas que recebo
Engulo em seco e tento não arrancar os cabelos. Você está zangada com ele, não é mesmo? Apenas releve, sorria e cumprimente. Fecho a porta atrás de mim e dou um abraço em Rosamund.
- Estou muito feliz por te conhecer! – arfo.
Rosamund e eu passeamos bastante, durante as últimas horas que sucederam a manhã. Mostrei para ela o pomar, o vale e fomos provar o leite com mel de Delila. Me surpreendi com a facilidade que ela possui de me fazer falar que nem uma tagarela. Ela me contou sobre como é estudar em uma universidade e de como tem planos de se tornar uma grande escritora. Falei tanto que minha boca ficou seca, e fomos descansar da caminhada no lago que corria água gelada. O dia está meio quente, e o som da água corrente me fez querer mergulhar. Talvez Rosamund também quisesse, pois, suor escorria de seu pescoço para seu vestido.
Horas depois voltamos para casa, onde preparei uma limonada gelada e servi na varanda, onde uma brisa gelada emanava do vale molhado.
- Li muito sobre seu pomar nas cartas que recebi, sinto como se já estivesse o visitado! – Rosamund fala com muita empolgação, ao ponto de as bochechas corarem. – Tens um vale encantador, Srta. Lumya. Talvez eu fique por aqui alguns dias.
Por favor, suma daqui!
Olho para seu rosto limpo, o cabelo bem cuidado e toda aquela etiqueta. Ela e Callum formam um casal digno de qualquer tabloide. Rosamund fala o tempo inteiro de como é estudar na Lituânia e como aproveitou as férias para visitar o marido. De repente me sinto horrível por julgá-la daquela maneira, de como a tratei mais cedo e de tudo que eu pensava a seu respeito. Tia Cornélia estava na cidade, disse que tinha assuntos da hipoteca para resolver. Sirvo mais chá para Rosamund e ela me lança um sorriso amável.
- Já é casada? – essa pergunta me pega desprevenida.
- Eu... é.... – meus pensamentos aceleram. – Sim... quero dizer, não!
Olha o que está dizendo Larsa!?
- Como? – ela faz uma expressão confusa. – Desculpe, eu não entendi.
- Não! – me esganiço, lembrando de Garry. – É que, eu não sei.
Quando percebo já estou me abrindo para Rosamund, uma estranha. Ela coloca a xícara na mesa e fita o vale durante alguns instantes, parecendo selecionar cuidadosamente suas palavras. Seu olhar vago me lembra Cristina, quando costumávamos passear às margens de um lago qualquer, seu olhar sempre ficava vago quando chegava perto da água.
- Eu sei que é difícil – ela finalmente fala, me fitando. – Principalmente quando parece que nós não temos escolha. Mas acontece que sempre temos uma escolha, e não devemos optar pelo mais conveniente.
Os olhos de Rosamund brilham de uma forma diferente e então eu entendo que ela fala de si mesma. Será que ela sabe que Callum me contou tudo sobre eles? Então no final tudo acaba sendo uma questão de escolhas.
- Eu estou confusa, com muitas coisas – sinto meu rosto corar ao desabafar com ela. – São muitas escolhas e tenho medo de ser precipitada, como acabei sendo.
Usei Garry... me usei daquela forma.
- Como se chama seu noivo? – outra pergunta que me pega de surpresa.
Ela leva a xícara aos lábios e me olha novamente de forma intensa. Rosamund é uma mulher muito esperta e gentil, ela sabe que estou em uma enrascada. Será que você sentiu o mesmo quando soube que ia casar com Callum?
- Garry Heiko – seu nome soa de forma incrivelmente leve em meus lábios.
- Garry? O médico? – ela parece bastante ansiosa com minha resposta.
Quando assinto ela quase engasga com o chá, me fazendo rir.
- Minha nossa! Não acredito que Garry vai casar... – finjo uma expressão chocada. – Oh, me desculpe! Acontece que Garry é meu velho amigo de infância, faz bastante tempo que não o vejo. Ele ainda me manda cartas, ultimamente todas são sobre você.
- Sobre mim? – indago.
- De quem você acha que recebo as cartas? De Callum? Ele nunca me escreveu absolutamente nada desde que parti – ela solta uma risada ao ver o desespero estampado em meu rosto. – Garry se corresponde comigo diariamente, ele fala muito de você. Só não falou que estavam noivos.
- Isso eu também não sabia, até ontem – murmuro mais para mim mesma.
- Mesmo? Eu nunca vi o Garry assim por ninguém, ele sempre foi muito reservado quanto às pessoas depois que perdeu a família.
- Perdeu... a família? – me sinto tonta.
- Ah, ele não te contou ainda – ela volta a colocar a xícara na mesa e me olha com pesar. – A família Heiko foi massacrada quando a SS invadiu a fronteira. Eles não conseguiram passar, mas o jovem Garry foi poupado quando Klaus Hoffmann o jogou dentro de um bunker e o deixou vivendo lá até que os membros da SS achassem que tinham dizimados todos na fronteira. Foi um golpe de sorte, ele voltou para o pegar quase um mês depois... quase morto, é claro. Garry foi criado como um irmão na casa de Callum, e jurou tornar-se médico para ajudar os feridos de guerra.
- Bem, acho que ele conseguiu – consigo dizer.
- Sim, é por isso que eu digo que você está com um homem bom Larsa. Um homem muito bom – ela coloca a mão sobre a minha. – Você o ama?
- Não, não sinto nada por Garry – murmuro.
- Não falo de Garry. É sobre Callum, você o ama, não é?
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