Despertar
O dragão abriu os olhos lentamente. Duas piscadelas foram suficientes para ativar o painel de dados sobre suas córneas. A enorme câmara metálica possuía apenas uma fraca iluminação residual azulada. Ainda sonolento leu as informações no painel de suas lentes.Três mil anos? Isso só pode ser um erro.
O líquido viscoso e amarelado que preenchia o gigantesco tanque em que o dragão repousava começou a ser drenado. Em seguida, ele sacudiu-se todo de forma a reativar seus músculos adormecidos há tanto tempo. Seu estômago roncou de fome. Realmente havia alguma coisa errada. Nunca havia despertado de uma hibernação com fome antes. Teria mesmo o computador demorado tanto para despertá-lo? Três mil anos? Se esta informação estivesse correta, teria acontecido alguma coisa muito séria lá fora.
- Luzes - comandou o dragão com sua voz rouca e pesada, mas nada aconteceu.
- Com mil demônios... - resmungou enquanto se esgueirava para fora do tanque num movimento lento e caquético. A lamentação progrediu.
- Ai, minhas costas... Ai minha cauda...
Que fome! Me faz lembrar de quando eu caçava. E eca! Comia coisas vivas!
Finalmente estava fora do tanque. Suas escamas ainda molhadas do líquido de estase reluziam contra o fraco brilho azulado das luzes de emergência. Seu corpo tubular era longo e esguio, as costas cobertas por placas irregulares e mais escuras que as escamas. A textura da carapaça assemelhava-se a pedras lascadas. Os braços e pernas eram musculosos, mas magros e pareciam não serem capazes de sustentar todo o peso. Ele arrastava a barriga e a longa cauda pelo chão, deixando rastro da meleca amarela, mas que tinha aspecto esverdeado sob a iluminação azul. A cabeça era larga com chifres espiralados no topo, mas apenas um deles inteiro, o outro, partido pela metade. Os olhos amarelos expressivos investigavam enquanto as orelhas de abano, quase ocultas por longos pelos brancos que saíam dela e de seu entorno, giravam à busca de sons. Toda a cabeleira do dragão estava lambida e escorrida formando tufos. O bicho não era bonito, mas empapado naquela gosma estava horroroso. A boca e as gengivas rosadas apareciam pouco por baixo dos pelos brancos que circulavam toda a face, como uma barba, enquanto o velho dragão gemia e resmungava.
Preguiçosamente esticou o braço para tocar com ponta da unha negra o painel de controle ao lado do portão circular. Novamente, sem efeito. Resmungava narrando suas ações lentas.
- Liberar a trava para operação manual... Só pode ser brincadeira. Pronto! Agora, abrir essa maldita porta no muque? Ora, vamos!
O dragão rugiu enquanto fazia força. A porta cedeu e abriu poucos centímetros
Ferrugem? Não acredito!
Mais força e um rugido mais alto. Era para meu estômago rugir assim, e não eu!
- Rwargh! Agora sim!
Girou a cabeça de lado para passar na greta e esgueirou-se. Agora que cabeça passou, o resto vai com certeza. Ou não?
Estava entalado. Contorceu-se todo tentando segurar em algo para conseguir empurrar a porta. Fora da câmara de estase, estava um breu total.
- Hei, tem alguém aí? Eu preciso de eutanásia com urgência!
Agitou as orelhas. Nenhum som? Ninguém? Isso não é possível... Esse costumava ser um dos lugares mais barulhentos deste braço da galáxia!
Com algum esforço e usando sua cauda, conseguiu empurrar a porta novamente. O som como o de uma janela velha e pesada foi música para seus ouvidos.
- Ahá! Livre!
Minha voz está horrível! Será que eu envelheci?
Concentrou-se para ativar a interface neural. Logo a escuridão cedeu lugar para a visão infravermelha equipadas em suas lentes de contato. Os contornos do local surgiram em poucos tons de azul profundo. Mal dava para se orientar. Estava tudo frio. Tudo abandonado. Seguiu para sua câmara frigorífica onde mantinha seu estoque de alimentos. Outra porta fechada, que ótimo! Destravou e motivado pela fome, abriu-a com certa facilidade. O cheiro que invadiu as narinas rosadas do focinho lembrou-o de um local que visitou em um planeta, no qual ainda possuíam bibliotecas de livros de papel. O chão estava coberto com um pó esquisito e os ganchos de metal, vazios.
Lamentou - Nada de carne, não é?
Entrou e desesperadamente vasculhou as caixas. Deve ter alguma coisa... Algo que não se desintegre. Latas, ótimo! Mas não havia luz para ler os rótulos. Podia ser qualquer coisa...
O dragão era habilidoso em abrir latas com os dentões da frente da boca. Cuspiu tossindo.
- Que xarope horrível!
Abriu outra. Eca, mais dessa porcaria.
Atirou-a para o lado.
Hum... Pegou uma lata com formato diferente. Isso parece bom. Abriu a lata. Não era líquido, nada saiu dali. Tirou o metal da lata como se abrisse uma bala. O interior estava sólido, como uma grande pílula. Tentou morder, mas era muito, muito duro.
- Que porra.
Não dá para morder pedra, né? Colocou a coisa toda na boca, deixando a saliva envolvê-la.
- Hum, them gosstho dhe albuma coissa... Mem lá londie... O que dhevia sê isso?
A única comida que achou tinha petrificado, mas depois de algum tempo chupando como uma bala, começou a se dissolver. Já era alguma coisa.
Depois de algum esforço para abrir mais um par de portas, conseguiu sair de sua habitação. Estava tudo deserto na Torre do Mundo. Cadê todo mundo? Ali fora, a escuridão cedeu espaço à fraca iluminação distante das estrelas e das duas luas que orbitavam o planeta Crejave. A Torre do Mundo era, sem dúvida, a maior construção daquele braço da galáxia. Sua base tinha o formato aproximado de um círculo com oito quilômetros de diâmetro. O gigantesco esqueleto estrutural era composto por módulos metálicos tetraédricos que suportavam as diversas estruturas que compunham os seiscentos e cinquenta níveis que se afunilavam lentamente até que no seu topo, nos limites da estratosfera, o diâmetro do grande porto e estaleiros espacial era de seis quilômetros. No passado, centenas de elevadores funcionavam ali de modo incessante. Era um lugar barulhento, e também uma megalópole vertical que consumia cerca de um quarto da energia gerada em todo o planeta.
A sensação de vazio que preencheu o dragão era maior que a gigantesca estrutura, pois ele próprio havia sido o arquiteto e projetado a Torre do Mundo, há muitos milênios. Seu projeto não era apenas para tornar seu mundo um importante porto comercial, com o mais fabuloso elevador espacial da galáxia, mas havia sido um projeto para os povos de Crejave. Era uma de suas muitas ações para buscar redenção contra os crimes de seu passado. Sempre pensei que duraria para sempre. Sentiu-se só e deprimido. Parece mesmo que três mil anos haviam se passado e pelos sinais, talvez não houvesse ninguém ali há mais de mil anos. Quando o dia surgisse, poderia melhor averiguar, visto que a Torre não era uma estrutura fechada. Fora projetada para gozar de iluminação natural em toda sua extensão. Enquanto esperava apreensivo o nascer do novo dia, a memória do dragão alçou voos distantes.
Lembrou-se quando avistou pela primeira vez uma espaçonave dos celestiais. Seu mundo, até o contato com os celestiais, praticamente não havia evoluído tecnologicamente, ou mesmo, culturalmente de forma significativa. A sua raça era venerada pelas demais como deuses e tudo no mundo funcionava em função das vontades da raça dos dragões, que governava o mundo de modo cruel e arbitrário.
Os visitantes celestiais, já não eram adeptos da violência, mas seu surgimento juntamente com sua incompreensível tecnologia, fez com que o povo oprimido pelo governo draconiano, passasse a adorar os próprios celestiais como um tipo de divindade, e mais tarde, compreendesse que os dragões não eram deuses de verdade.
O contato e absorção de conhecimentos e tecnologias foi gradual, mas em pouco tempo, uma guerra de nível global contra os dragões se iniciou. Os celestiais tentaram mediar o conflito e convencer os dragões a mudarem seus pontos de vista, mas todos se agarraram às suas tradições milenares e a certeza de que eram deuses e que deviam ser venerados e obedecidos. Exceto por um. Antes do final da guerra, que culminou com o extermínio de sua raça, ele reconheceu seus crimes, abdicou de seu poder e converteu-se num servidor das raças que oprimiu por tantos milênios. Abandonou seu antigo nome e adotou o nome de Servo para nunca esquecer-se do voto que fez: servir.
Com o passar dos séculos, Servo aprendeu todas as ciências dos celestes. Física, matemática, engenharias, computação, cibernética, medicina, biologia e incontáveis outras. O cérebro draconiano era cinco vezes maior que o dos celestiais e era organizado em cinco camadas funcionais, duas a mais que a maioria das outras raças inteligentes do universo possuíam. Muitos séculos depois, após a construção da Torre do Mundo, o velho draconiano voltou a ser venerado, não como um deus, mas como a criatura mais sábia de toda a galáxia.
Agora, Servo, o último draconiano, respirava o ar da noite e imaginava se havia se tornado o último Crejaveano. Voltou a pensar no destino tomado por sua raça. Se não fossem tão inflexíveis, as coisas podiam ter sido diferentes.
Em certa ocasião, um grupo de celestiais quis restaurar a raça dos dragões. Servo não quis colaborar, pois havia construído simulações no computador central da Torre do Mundo e vislumbrou coisas terríveis acontecendo caso mais dragões, virtualmente imortais, como ele, adquirissem o conhecimento dos celestiais e colocassem seu intelecto superior para agir em benefício próprio. Concluiu que em poucos séculos toda a galáxia seria subjugada e forçada a obedecer e venerar os draconianos como deuses vivos. Ele tinha que ser o último draconiano.
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