8
Tropecei em algo ao sair para colher frutas e quase fui de encontro ao chão. Na verdade, não era exatamente "algo" no caminho, mas sim "alguém".
— Por que está sentado no meio do caminho?
— Você ainda estava dormindo, então preferi esperar do lado de fora. Ah, quase ia me esquecendo... — Ele começou a procurar algo nos bolsos — Enquanto fazia o caminho de volta para cá, encontrei algumas amoras. Elas não são tão fáceis de se achar nas redondezas.
Peguei as frutas das mãos dele e voei para a cozinha, com o intuito de fazer uma geleia. Avren me seguiu, mas parecia não entender quais eram as minhas reais intenções e percebi que ele estava apenas aproveitando o cheiro bom da geleia, que estava quase pronta.
— Nem pense em mexer aqui. — Afastei a mão dele da panela com um tapa de leve — Por acaso quer se queimar?
Ele não ficou muito feliz com o fato de eu não tê-lo deixado provar ainda. Vestiu a luva de volta e continuou prestando atenção em mim, sem dizer nada. Coloquei o doce dentro de um pote de vidro, depois entreguei a panela e a colher para Avren, cujos olhos se iluminaram ao finalmente poder raspar o restante da geleia.
— De onde você tira essas ideias?
— Minha mãe me ensinou. Grethel não fazia essas coisas para você?
Balançou a cabeça em negativa, soltando um suspiro.
— Não fazia porque algumas coisas ela não sabia e outras porque não tinha como conseguir os ingredientes nas redondezas, apenas na cidade. E jamais nos aproximamos de lá.
— Por que não?
— Não quero falar sobre isso. Não agora.
Deixei-o raspar o fundo da panela em paz enquanto pegava pães para nós dois. Naquele instante, percebi que Avren era mais inclinado para coisas doces, uma vez que não gostou muito da geleia junto com o pão e preferiu apenas a geleia pura.
— Serene, o que realmente veio fazer aqui na floresta? Também não tem família?
— Tenho, mas resolvi ir embora.
— E por quê?
O encarei com uma sobrancelha arqueada.
— Quer dizer que devo falar da minha vida enquanto você não pode contar nada da sua?
Ele revirou os olhos.
— Se é assim, que façamos uma troca: você me conta sua história e eu conto a minha. Não acho que tenho muito a perder. E então, por que resolveu ir embora?
— Acho que você sabe que agora a Igreja está tomando conta de tudo...
— Isso não é novidade para ninguém.
— Eles me obrigaram a me tornar uma serva real dotada. Queimaram todos os livros e não tive mais liberdade para nada. — O desgosto me dominou enquanto relembrava de tudo o que passei — Além disso, meus pais, por servirem fielmente ao clero, aceitaram um dos pedidos de casamento absurdos que fizeram para mim. Iria me tornar noiva do filho adotivo de um Cardeal contra minha vontade.
— E decidiu fugir? Mesmo sem um objetivo concreto de fato?
Balancei a cabeça em concordância, comendo outro pedaço de pão.
— E quanto a você? — perguntei.
Avren olhou para o chão durante algum tempo, talvez tentando se situar e não me importei, apenas aguardei pacientemente. Até porque, a julgar por sua expressão, o assunto deveria ser delicado e acabei decidindo que não me preocuparia em fazê-lo dizer nada.
— Não precisa contar se não...
Ele fez sinal para que eu ficasse em silêncio. Depois de alguns segundos ainda pensando, começou:
— Quando criança, eu morava em uma das cidades mais próximas da capital. Minha mãe me abandonou quando completei dois anos e desde então meu pai me criou sozinho. Isso não era um problema, pois nos entendíamos bem e éramos melhores amigos. No entanto, perdi a única família que eu tinha aos oito anos, quando ladrões invadiram nossa casa. — Seu olhar estava fixo no chão, como se estivesse revendo tudo — Meu pai me empurrou pela porta dos fundos, me mandando fugir sem olhar para trás e assim o fiz. Corri o máximo que pude, mas quando parei ele não estava comigo...
"Logo, arrisquei fazer o caminho de volta e então vi o cadáver do meu pai a três metros de casa. Não sabia o que fazer e nem para onde ir, mas não tinha coragem de ficar naquela moradia depois do que houve. Vaguei pela cidade sem teto por dois dias, quando guardas me chamaram para uma audiência.
"Os ladrões haviam sido pegos e seriam condenados, mas foram absolvidos por Brasjen, que já não simpatizava nem comigo ou com meu pai por não frequentarmos as celebrações e não sermos tão adeptos da fé como os demais. Segundo aquele desgraçado, os criminosos foram enviados diretamente por Deus para punir minha família por pecados gravíssimos que cometemos. O caso se espalhou tão depressa que alguns dias depois todos já sabiam. O fato também chegou aos ouvidos do rei quando ele retornou da viagem que fizera até o lado sul, mas infelizmente os assassinos fugiram e ninguém os encontrou para serem julgados outra vez."
Percebi o rosto dele assumir uma expressão abatida e jamais poderia culpá-lo por isso.
— Avren, se quiser parar, saiba que está tudo bem.
— Não tem problema. — Ele pigarreou um instante — Bem, como estava dizendo... Depois do julgamento, acabei me embrenhando na floresta de vez, pois não aguentava mais comentários a respeito de tudo o que aconteceu. Tinha fome, frio e sono e não sabia me virar muito bem no começo. Chorava com frequência sentindo falta do meu pai, mas aprendi a cuidar de mim de qualquer maneira. Aprendi a caçar peixes e cozinhá-los, colher frutos e a sobreviver.
"Quando me senti mais adaptado, passei a explorar até chegar por aqui. A primeira coisa que vi foi a horta e não pensei duas vezes antes de pular a cerca para pegar algumas cenouras, porém fui surpreendido pela velha, que me deu algumas vassouradas."
Avren parou para me encarar fixamente enquanto não pude segurar uma risada. Sei que eram momentos difíceis naquela época e por um momento me senti mal por rir, mas não conseguia imaginá-lo levando vassouradas com um punhado de cenouras nas mãos.
— Ainda assim, não parei de ir até lá e continuar "pegando emprestadas" algumas cenouras quando eu não achava alimento. — Voltei a prestar atenção nele — E a mesma coisa se repetia de tempos e tempos até chegar ao ponto em que a velha ameaçou a me amaldiçoar. Aquilo também não me intimidava, pois nunca acreditei em bruxas.
"Percebendo que isso não foi o bastante para colocar medo em mim, as ameaças acabaram e logo comecei a encontrar pratos de sopa durante o dia e à noite na horta. Um dia, Grethel decidiu conversar comigo e me ofereceu seus cuidados e sua casa.
"Acabei aceitando com um pouco de desconfiança, porém o modo como ela cuidava de mim conseguiu me amolecer gradualmente e passei a aceitá-la como algo parecido com uma mãe. A velhota me ensinou a ler e escrever nesta língua e em latim, cuidava de mim e se preocupava como se eu realmente fosse seu filho... O que você está fazendo?"
Tentei enxugar uma lágrima discretamente, mas acabei falhando. Não tinha culpa de ser tão sentimanl para com histórias desse tipo e isso o fez rir antes de continuar:
— Aos dezoito anos, ela tentou me ensinar alguns feitiços, só que nunca tive aptidão para essas coisas. Daí, pelo fato de eu conhecer a floresta tão bem, passei a procurar pelos ingredientes que precisava, já que a idade avançada dela não a permitia se aventurar tanto para tal. E assim fomos vivendo, até o dia em que tudo aconteceu.
"Antes que a Igreja realmente se instaurasse no poder, Grethel temia pelo que poderia acontecer comigo caso fosse condenada por fazer feitiçaria. Logo, me fez tomar um dos encantamentos que eram feitos apenas para casos especiais, pois isso custava o restante de vida de quem o lançava. Quando o bebi, não sabia disso, mas quando descobri já era tarde. Para que eu pudesse me cuidar e me proteger, ela não conseguiu viver até o quanto deveria.
"Felizmente, não foi sentenciada à fogueira, por mais que soubessem da existência dela. Eu mesmo a enterrei e passei a cumprir a promessa que havia feito em seu leito de morte, sem mais nenhum objetivo por enquanto."
— Sinto muito por você.
— Não sinta. No fim, não tenho muito do que reclamar.
— Agora entendo... você não vai para a cidade por causa do que aconteceu com seu pai e Grethel por realmente ser uma bruxa.
— Fico feliz por ter entendido.
— Mas e sobre o encantamento?
— Não posso dizer muito. A única coisa que sei além daquilo é que ele acabou por me tornar dependente do bosque e não posso me aventurar longe dele depois de certa distância... É como se algo estivesse me sufocando e preciso voltar para não morrer asfixiado.
— Então você tem dois motivos para ficar longe da cidade... No fim, está condenado a ficar isolado.
— Já me acostumei a viver por conta e sozinho, não é tão ruim quanto parece. Além disso, não há nada que eu precise fazer fora da floresta.
Avren não parecia abalado, mas sim tranquilo e em completa paz, como se aquilo não significasse absolutamente nada. No entanto, tudo o que disse deixava várias coisas para eu pensar.
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