31

Ao amanhecer, novamente tentei ir até o castelo, determinado a insistir quantas vezes precisasse até que estivesse livre. Com o colar no bolso e a adaga limpa e afiada, comecei a caminhar, porém mais depressa do que o habitual enquanto contava os passos.

Dez.

Vinte.

Trinta.

Fiquei esperando que minhas amarras me sufocassem, contudo nada aconteceu. Por isso, continuei avançando.

Quarenta.

Cinquenta.

Atingi a mesma quantidade de passos da primeira vez que quase morri sem oxigênio, porém permaneci bem. Arrisquei mais dez passos e então entendi que estava livre. Uma pontada de alívio preencheu meu ser. Não pensei que poderia fazer isso, mas errei ao não acreditar em mim e agir com impulso. 

Me transformei em corvo e voei o mais rápido que podia até ver o castelo pessoalmente. Voltei a ter aparência humana quando estava perto dos portões e fui recebido por dois guardas com expressões descontentes.

— Em que podemos ajudá-lo, senhor?

— Tenho assuntos para tratar com o rei.

— E o que seria?

Mostrei a corrente de ouro e me deixaram passar, a contragosto. Me olhavam como se eu fosse um ladrão ou alguma coisa do gênero. Outro guarda, que estava no pátio, foi comigo até o interior do castelo e me deixou sob os cuidados de uma criada enquanto anunciava minha chegada ao rei.

— Pode entrar. A família real está a caminho.

A primeira pessoa que vi chegando foi Amira, que pareceu contente ao me ver, mas curiosa ao notar a corrente em minhas mãos. Seus pais vinham logo atrás, acomodando-se nas cadeiras enquanto ela vinha a passos rápidos para perto de mim.

— Avren, o que está fazendo aqui?

— Vim reclamar um favor da realeza.

— Mas essa corrente... Serene deveria estar com ela. O que houve?

— Serene não está mais entre nós... — Engoli em seco, baixando o olhar — Ela... acabou perdendo a vida para me salvar.

— Oh... — Voltei a encará-la, reparando em suas lágrimas ao mesmo tempo em que um meio sorriso estava se formando — Ao menos ela sei foi por causa de quem amava. Ainda assim, sinto muito mesmo.

O rei e a rainha nos observavam, parecendo entender a situação. Amira recuou, contendo o choro enquanto tomava seu lugar.

— Acho que não nos precisa dizer o motivo da ausência da senhorita Westshine. E também lamentamos o ocorrido.

— Eu agradeço, Majestade — respondi, me ajoelhando. — E como está vossa saúde?

— Estou praticamente recuperado graças a sua companheira. E qual é o favor que podemos prestar a você?

— Majestade, o senhor deve saber que os clérigos estão tomando conta do país por conta de vossa doença.

— Sim, é claro. Receberam meu consentimento para tal.

— No entanto, muitos abusos acontecem e aconteceram, o senhor precisa retomar o governo. E é este favor que vim lhe pedir.

— Ainda não estou completamente curado e usarão isso para me impedir. Infelizmente não posso fazer nada a respeito por enquanto. — Por que as coisas precisavam ser tão difíceis? Será que as pessoas eram passivas demais ou eu que era impaciente?

— O senhor acha certo que mulheres e animais sejam condenados e mortos por superstições? A Igreja matou dezenas de mulheres desta cidade e da região, imagine quantas mais no reino todo! — Deveria controlar os nervos, sabia bem disso, mas só de lembrar tudo o que aqueles vermes fizeram, meu sangue fervia — Os corvos daqui foram todos assassinados com exceção a mim e por acusação de feitiçaria! Isso é injusto! Sem contar em gatos pretos e sabe-se lá mais quantos animais sofreram o mesmo destino!

— Connor Princeton, o que quer dizer com o fato de que todos os corvos foram extintos, com exceção de você? — Fiquei surpreso por ele ainda lembrar do meu nome de nascença após tanto tempo.

— Meu nome agora é Avren, Majestade. — Não pude deixar de corrigi-lo mesmo assim — E, respondendo vossa pergunta: Grethel, a mulher que me criou e acolheu depois do julgamento quando perdi meu pai, cedeu seus últimos anos de vida para me conceder o poder de virar um corvo e assim ter alguma proteção contra Brasjen, que lidera a caça a tudo o que fosse suspeito de magia negra.

— Entendo. Ainda assim, o cardeal está seguindo uma das leis do Nosso Senhor, que por sinal é bem clara: "não deixará viver as bruxas".

— Mas nem toda mulher que sabe como curar as doenças é uma bruxa e nem toda bruxa necessariamente prejudica os outros.

— Não se tem como avaliar isso. — O tempo que fiquei isolado na floresta me fez esquecer como lidar com certos seres humanos pode ser desgastante.

— Então o que me diz de Serene?

— O que tem ela?

— Ela era uma bruxa por lhe trazer o chá e a pomada?

— De forma alguma. A senhorita Westshine era apenas uma moça comum, embora as vestes lembrassem uma bruxa.

— E como sabe disso? — provoquei. — Ela estava sendo caçada por Brasjen como se fosse uma. Inclusive a mãe dela foi queimada como sendo uma bruxa.

— Foi uma intuição, pois não senti nenhuma energia ou intenção ruim dela. Inclusive, admito que se não fosse por ela, eu certamente estaria à beira da morte... — Ele modificou a expressão, entendendo até onde eu queria chegar. — Gosto de pessoas com uma mente perspicaz como a sua. No entanto, as coisas não são simples. Como disse, ainda não estou de todo curado e, caso insista ou intervenha nos assuntos da Igreja, criarei uma tensão e um conflito perigoso, ainda mais quando o povo está sob tutela dos religiosos.

— Majestade, todos sabem que Brasjen e a maioria dos clérigos incriminam as pessoas como sendo pecadoras e cobram delas para serem perdoadas. — Aquele era meu último recurso para fazê-lo tomar alguma atitude — Por acaso é algo justo de se fazer?

— Eu não sabia disso. — Aparentemente, toquei em um ponto crucial para conseguir o que eu queria, visto sua surpresa — De forma alguma cobrar indulgências é algo justo! Isso é um absurdo. — Minha esperança durou pouco, visto que a conformidade transparecia em seus traços — No entanto, aqueles que cobram já sabem para onde vão.

Comecei a ficar inquieto, desesperado, irritado e tudo o que tinha direito. Como alguém poderia ser tão tranquilo mesmo sabendo de tudo isso? Será que nada o faria mover um dedo sequer para me ajudar? Se continuasse assim, teria que dar um jeito eu mesmo de arrancar cabeça de Brasjen o quanto antes, ainda que fosse suicídio por ter gente de todos os lados para me caçar. Fiquei em pé e os três pareciam não entender o que se passava.

— Algo errado, Avren? — Lucios perguntou.

— Não, Majestade. Apenas levantei porque minhas pernas estavam começando a ficar dormentes. Além do mais, não sou uma pessoa muito paciente para discutir esses assuntos com alguém que se nega a aceitá-los e vê-los.

A rainha não gostou do que eu disse e Amira parecia incerta sobre como reagir, mas o rei se mantinha impassível, como sempre.

— Está fazendo isso por vingança? — Ele me perguntou por fim.

— Não totalmente, senhor. É claro que quero vê-los pagarem por terem livrado os ladrões que mataram meu pai, assim como por serem os responsáveis pelas mortes de Serene, Grethel e dos pobres corvos — expliquei, decidindo ser sincero. — No entanto, também não acho justo que sejamos obrigados a entrar em um período onde tudo é interpretado como "punições" ou "recompensas" divinas, onde somos oprimidos e vendados de toda a verdade. E não está longe de piorar, Majestade. — O encarei por alguns segundos, entendendo que deveria dar um jeito de envolvê-lo na lista de prejudicados caso quisesse resultados de fato — Além de matarem pessoas inocentes sem provas o bastante, é claro como água que desejam e esperam vossa morte, do contrário não impediriam todos os médicos e curandeiros de se aproximarem do castelo.

O silêncio tomou conta da sala, de modo que seria possível ouvir um alfinete caindo. Rei e rainha entreolharam-se, mas nada diziam. Amira, por sua vez, lançou um olhar na minha direção que parecia me encorajar.

— O senhor vai abandonar seu povo por causa de seu "Deus"?

— Não use destes termos. Não é isso o que se passa.

— Não tente enganar a si mesmo, Majestade. O senhor é como o pai de Serene: cego e submisso a ponto de não enxergar a dor e sofrimento ao redor quando estão bem evidentes.

Novamente ele ponderava enquanto a rainha não mais me olhava de maneira rancorosa. No entanto, nem mulher e nem filha ousavam dizer qualquer coisa.

— O que tem em mente, Avren? — Lucios perguntou por fim.

— Senhor, apenas reivindique o que é seu por direito.

— Já lhe disse que não é algo fácil de fazer, ao menos não sem provas.

— Certo. Se é assim, acho que tenho uma ideia.

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