19

 Acordei sentindo um par de mãos e uma faixa no meu ombro. Pisquei algumas vezes para me acostumar com a iluminação e vi o rosto sério de Avren perto de mim enquanto cortava a faixa.

— Como está se sentindo?

— Como se tivesse ficado cara a cara com a morte. — Estremeci à medida que as lembranças voltavam.

— Você levou um tiro no ombro e uma pedrada na cabeça — explicou, verificando o curativo que fizera. — Por sorte, consegui abaixar o galo e devo dizer que não foi nada bonito. – Ele franziu a testa e logo aumentou o tom, irritado — Por que fez isso? Poderia ter sido morta!

— Eu não iria deixar o corvo para trás.

— Eles quase colocaram as mãos em você por essa ideia de querer salvar um corvo idiota! — Sua fala se transformou em gritos — O que tinha na cabeça? Eu mandei você correr e não se importar com nada!

— Acontece que se eu não salvasse o corvo idiota... — Olhei para o braço direito dele, que estava enfaixado também — O mesmo idiota que está gritando comigo seria morto! — Agora quem tinha aumentado o tom de voz era eu — Mentiroso! Por que se fez de desentendido toda vez que eu falava do corvo?! 

— Eu não devia satisfação disso. — Avren suspirou — Além do mais, não estava tão difícil você perceber isso sozinha. Escolhi não contar para evitar qualquer sacrifício impensado com esse, mas quando a teimosia é de nascença todo esforço é em vão, certo?

A voz dele estava no tom natural outra vez, porém com um tom de vergonha e suas íris demonstravam desgosto ao olhar para minha faixa.

— Sei disso... — admiti por fim, envergonhada por ter gritado também. — Pensei que você sentiria confiança para me contar tudo e não parei para juntar as coisas, porém faz sentido para mim agora. 

E realmente fazia. Nunca prestei atenção em nada mesmo com a verdade na minha cara o tempo todo. O nome dele era um anagrama da palavra "raven", que significa "corvo". Eles nunca apareceram ao mesmo tempo e o fato de Avren ter tomado uma poção para se proteger era a peça mais importante. Afinal, qual jeito melhor do que poder se transformar em corvo? Poderia voar e se misturar entre as árvores.

— E sinto confiança, mas eu temia que você fizesse alguma besteira simplesmente por saber que sou eu.

— Então a morte dos corvos... 

— Um dos membros da igreja viu minha transformação certa vez e depois disso começaram a caçar todos os corvos, com o intuito de darem um fim na minha vida por me considerarem um demônio.

— Sinto muito. — Finalmente compreendi o porquê da Igreja insistir na caça aos corvos, mas jamais imaginaria que fosse por isso se não soubesse da verdade.

— Não adianta lamentar.

— Como está seu braço?

— Foi apenas uma flecha, nada demais, vai se curar dentro de alguns dias. O que me preocupa é seu ombro. Foi difícil tirar a munição, mas consegui depois de muito trabalho. – O olhar dele se transformou em duas esmeraldas líquidas e calorosas – Obrigado, Serene, por mais que isso tenha sido praticamente suicídio.

Ele levantou da cadeira que estava ao lado da cama e me cobriu.

— Aproveite descansar.

— E quanto ao cardeal?

— Ele teve que se preocupar com outras coisas. Os camponeses estavam sangrando mais do que deveriam pelos cortes e tiveram que recuar. Afinal, um religioso de elite não pode ser responsável por mortes assim, soaria como irresponsabilidade da parte dele.

Concordei com a cabeça.

— Vou te chamar quando o jantar estiver pronto.

— Você está machucado, não pode fazer isso sozinho.

Me apoiei para levantar, porém não pude conter um rosnado de dor no meu ombro pela tentativa e Avren me fez deitar outra vez.

— Meu ferimento no antebraço não me impede tanto de cozinhar, mas o seu sim. Você não pode se dar ao luxo de usar muito esse braço por alguns dias, portanto tudo o que pode fazer é descansar. Caso queira sair daí, chame, ou então os pontos vão se romper pelo esforço.

Assenti, sem opções ou argumentos melhores. Não estava com sono, mas fiquei deitada pensando no sofrimento dele em ter que me carregar de volta para cá com o braço ferido e tive o sentimento de ser um peso morto. Comecei a pensar na razão de ter saído de casa para acabar virando um fardo para Avren. Não havia realmente um motivo para ter fugido. Apenas fui uma mimada idiota e que não conseguia cuidar de mim, apesar de ter idade o suficiente para isso. 

— Está com dor?

Ele apareceu quando eu estava enxugando uma lágrima. O choro não era pela dor no ombro, apenas por vergonha de mim mesma. Ouvi seus passos perto de mim e olhei em sua direção. Avren estava se aproximando da beirada da cama, me fazendo sentar enquanto tinha um algodão molhado no colo e passava onde eu tinha levado o tiro. 

— Não está doendo, não se preocupe — respondi, por fim.

— Porém ainda está chorando.

Sequei duas lágrimas e ele olhou para mim, confuso. Não segurei o impulso de esconder meu rosto em seu peito e desabar.

— Me desculpe. — Um soluço escapou — Me desculpe por ser um peso morto, por ser inútil e não poder cuidar de mim mesma. Me desculpe, Avren.

Seu abraço era firme e delicado ao mesmo tempo. Uma de suas mãos afagava minhas costas lenta e cuidadosamente enquanto eu ainda chorava feito uma idiota.

— Não fique pensando besteiras. Você não é um peso morto para mim e nunca vai ser, Serene.

Ele me fez encará-lo. Seus olhos continuavam como uma esmeralda líquida e com um brilho gentil.

— Não é um tiro que vai te fazer inútil. Pare de pensar absurdos.

— Se fosse outra pessoa isso não teria acontecido.

— Se fosse outra pessoa eu estaria morto. Além disso, qualquer um que fizesse o que você fez teria o mesmo destino. Seria impossível escapar ilesa.

Avren enxugou uma lágrima minha, sem tirar os olhos de mim. Começou a sorrir e depois riu.

— Qual é a graça? — indaguei.

— Acho que a pancada que você levou na cabeça está fazendo efeito agora. — Ele se afastou de mim e permaneci sentada — Não quero saber de mais absurdos desse tipo, entendeu?

Concordei e logo a sopa estava pronta. Com a ajuda dele, me levantei e fui até a mesa para comer. É claro que depois disso não fui autorizada a lavar os pratos, o que me incomodou de certa forma. 

Na hora de dormir, Avren se manteve sentado na cadeira, com os pés sobre a mesa. Disse que ficaria tomando conta de mim todas as noites até que eu melhorasse. 

"Ele gosta de você." 

As palavras de Amira ecoavam na minha cabeça até que finalmente cedi ao sono.

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