14
Ao chegarmos, permiti que ela entrasse e ofereci os pães que estavam na mesa e água, mas a única coisa que a princesa pediu desesperadamente foi um banho. Lhe indiquei o banheiro, entregando algumas toalhas e roupas da bruxa antes de ir até o lago próximo para lavar o vestido dela. Deixei a peça secando em uma árvore ao lado da casa, onde ninguém o roubaria, com o corvo sempre me acompanhando em silêncio. Quando voltei, Amira estava sentada na cadeira beliscando um pedaço de pão.
— Obrigada por me deixar ficar aqui.
— Não é nada.
— Você disse que estava aqui por causa de um favor, certo?
— Sim — concordei, pegando o outro pão.
— Mas se a dona da casa morreu, quem está lhe ajudando? — Engoli seco, pois não sabia se contava algo a respeito do novo dono da casa ou não. Pensei alguns segundos, pois ela esperava uma resposta, então decidi dizer o mínimo possível.
— Grethel, a bruxa que morava aqui, tinha um filho adotivo. Quem toma conta da casa, da plantação e mesmo da própria sepultura dela é ele desde quando ela morreu. Nos encontramos na floresta por acaso, daí como eu não tinha lugar para ficar, tive permissão para morar aqui o tempo que precisasse.
— Gentileza dele — comentou enquanto eu apenas concordei com a cabeça, rezando para que Avren não a visse até tudo isso ser resolvido. Tinha medo da reação dele. Na verdade, eu sempre temia as reações dele, e com razão.
Olhei para fora. O sol estava quase desaparecendo.
— Vou até a plantação terminar de colher algumas coisas para o jantar. Gostaria de vir junto?
— Prefiro ficar aqui, se não se importa.
— Eu não demoro.
Tratei de pegar depressa algumas batatas, cenouras e rabanetes, mas por pouco não derrubei tudo por nervoso quando fiz o caminho de volta. Ao ver a figura de Avren na entrada da casa e de costas para mim, meu corpo todo começou a tremer involuntariamente com um misto de medo e ansiedade. Por que ele tinha que aparecer agora? Por tudo o que aconteceu mais cedo, imaginei que não o veria por dias.
Caminhei na ponta dos pés, tentando não fazer barulho algum, porém logo o vi se virando na minha direção. Os olhos demonstravam a raiva mais pura apesar do rosto desprovido de emoções, o que fazia sua aparência ser assustadora. O rancor era tão grande que quase poderia ser palpável naquele instante.
Estremeci ainda mais e desviei o olhar, aproveitando o pequeno espaço entre ele e a porta para que eu pudesse passar, mas fui impedida. Avren olhava impacientemente para mim e para Amira.
— Quando foi que eu lhe dei a posse completa desta casa? — A voz dele transbordava uma calma surreal.
Não respondi. Sequer tinha coragem de estabelecer contato visual. Senti seus dedos cobertos pelo antebraço de armadura tocando meu rosto com firmeza, porém ainda cuidando para não me machucar enquanto me obrigava a encará-lo. Ainda havia raiva em seus olhos, fazendo com que aquela bela cor de esmeralda ficasse opaca.
— Vou perguntar mais uma vez: quando foi que eu lhe dei a posse completa desta casa?
— Eu só pensei que...
— Responda minha pergunta primeiro. — Ele me interrompeu com tom baixo e severo, sem afastar a mão de mim.
— V-você não me deu a posse. — Minha garganta estava seca e os batimentos acelerados. Era quase como se eu estivesse de cara com a morte.
— Certo. Então por que acolheu uma estranha sem me consultar? — Avren mantinha a voz calma demais e sem esforço aparente.
Seus dedos contornavam a linha do meu queixo enquanto os olhos ainda estavam fixos nos meus, esperando uma resposta. Eu continuava tremendo, principalmente por toda a tranquilidade que ele estava tendo, contrariando a raiva em seu interior. Engoli em seco e pigarreei, tentando encontrar minha voz.
— Amira é a princesa e precisava de ajuda... — Temi ser interrompida, contudo Avren continuou me olhando, esperando minha conclusão – Não sabia se você voltaria hoje e nem onde estava, então pensei que não teria nada de mau em...
— E o que te fez acreditar nela?!
Finalmente o ataque de fúria que eu estava esperando. Ele gritou tão alto que me senti desesperada a correr para dentro da casa e Amira abraçava a si mesma, mais pálida do que uma vela enquanto olhava para os próprios pés. Coloquei a cesta desajeitadamente sobre a mesa antes de encará-lo.
— Por que não acreditar? — disse, apesar da minha vontade de gritar do mesmo jeito. Não estava mais com medo, e sim aborrecida por ele ser tão rabugento — Não faz bem desconfiar de todos assim.
— Só que eu confiei em você, não foi?
— Então qual é o problema em confiar nela também?
— Te acompanhei desde seu primeiro dia nesta floresta e vigiei cada movimento seu. O caso dela é diferente. — Avren apontou para nossa convidada com o queixo — Poderia ser uma ladra.
— Não há nada de alto valor para ser roubado, você sabe disso.
— Não importa. O que quer que seja tirado desta casa sem meu consentimento é sinônimo de sofrer pena de morte pelas minhas mãos.
— Você não acha que está exagerando? Amira é inocente, saiu do castelo para procurar ajuda para o rei e eu a encontrei por acaso pelo barulho incansável do corvo.
Avren não desviava o olhar de mim. Aparentemente, pouco importava o fato de Amira estar ali ou não, o único problema que o perturbava era eu ter recolhido alguém sem consultá-lo. Sim, sei que era errado de certa forma, mas qual outra alternativa eu tinha? "Sinto muito, mas você vai ter que se virar, a casa não é minha e não sei quando o dono vai voltar".
Jamais faria isso, nenhum ser humano sensato faria algo semelhante e não se deve ao fato de ela ser princesa, mas sim porque era uma garota no meio da floresta totalmente perdida, como eu estava antes de Avren me encontrar e dar um abrigo. Tudo bem que ele estava com os nervos à flor da pele depois da carta de Grethel, porém não era certo descontar seus rancores sobre mim por causa de qualquer coisa.
— E-eu entendo se minha estada aqui não for de seu agrado. Posso sair agora mesmo...
— Não seria justo expulsá-la uma vez que já lhe acolheram. — O olhar dele pousou em mim com rancor — Fique o quanto precisar.
Vi que estava fechando a porta para ir embora, mas não iria deixá-lo se safar desta vez. Corri e por sorte o peguei ainda por perto dali. Sem pensar, segurei seu pulso e reparei que permaneceu imóvel.
— Avren, escute, por favor. — Ele logo virou de frente para mim — Entendo que esses dias estão sendo difíceis e realmente lamento muito pelo que fiz. Não aceitei Amira com a intenção de desafiá-lo e muito menos para irritá-lo, só que... sabe, não acho justo você simplesmente aparecer para gritar comigo e depois se isolar sei lá onde. Tudo bem se não quiser desabafar, mas não desconte sua raiva ou mau humor em mim.
O rancor desapareceu de seus olhos para dar lugar à dor e culpa.
— Eu me importo com você e não sei o que faria se aquela mulher fosse uma ladra ou alguém que pudesse te machucar. — Engoliu seco e soltou um suspiro antes de prosseguir: — Sinto muito por ter gritado e ter perdido o controle. Acontece que, quando abri a porta e não te vi em lugar nenhum, imaginei o pior. — Por um instante, pensei tê-lo visto estremecer — E sim, prefiro guardar meus sentimentos para mim, mas gritar com alguém é um sinal de que me importo. Não é um método muito saudável ou harmonioso de demonstrar isso, eu sei, mas já faz tempo desde minha última interação com outra pessoa... e às vezes esqueço de como me comportar.
A armadura que revestia sua mão novamente tocou meu rosto com delicadeza e seus olhos transbordavam culpa e dor ao mesmo tempo. Ele estava perto demais, mas não tive coragem — nem vontade — de me afastar.
— A princesa deve estar esperando.
Sua face estava a centímetros da minha antes que se afastasse e voltasse a caminhar em direção às árvores, como se nada tivesse acontecido. Durante alguns segundos fiquei parada, digerindo tudo aquilo. Não pensei que Avren seria capaz de tal tom de voz brando, doce e sincero. Na verdade, a única imagem que tinha dele até o momento era de um rapaz arrogante sem muita consideração pelos outros além de si mesmo. E, diferente daquele momento raiva e discussão, senti arrepios e minha pele ainda formigava com o toque dele, mesmo que sua mão estivesse coberta.
O que estava acontecendo comigo?
Comecei a caminhar lenta e mecanicamente enquanto controlava meus pensamentos, os quais estavam indo longe demais. Será que Avren iria me beijar mesmo ou era apenas impressão? Me senti infantil por não saber. Sim, eu até gostava dele, mas talvez não desse jeito.
Balancei a cabeça para desfazer a confusão. Foi apenas um impulso, disse para mim mesma, ele estava com o humor instável e com certeza arrumaria qualquer motivo mínimo para vir gritar comigo outra vez, nada daquilo era verdade e pronto.
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