7: Imagens de Felicidade Plena

Eles dormiram até a hora do almoço, almoçaram, trabalharam como no dia anterior, e quando o sol estava quase começando a baixar no céu, subiram nas bicicletas e pedalaram até a biblioteca municipal, que a Colecionadora conhecia bem, pois já fizera vários trabalhos e consertos por lá.

De frente o prédio havia uma área verde com muitos quarteirões de distância, árvores que cobriam tudo de sombra, verdes e floridas de roxo, rosa e branco, e lá embaixo passava um rio. Era uma paisagem maravilhosa.

Ao chegarem, a Colecionadora se dirigiu à senhora sentada atrás da mesa da recepção, que trabalhava ali desde quando eram crianças, e muito antes:

- Boa tarde! Como vai a senhora?

- Vou bem! Que bom te ver, Colecionadora! Fazia tempo que você não vinha aqui!

- É mesmo, eu andei viajando muito nesse último ano. Mas agora estou de volta em casa!

- Ah, que bom! Você precisa de algo?

- Na verdade, sim. Eu estava pensando se a senhora não conhece uma mulher chamada Aurora.

- Aurora de quê?

- Eu não sei seu segundo nome... - Tirou do bolso o marca-páginas e entregou à senhora - Eu sei que ela vivia nessa época, e que era aspirante a escritora. Ao que tudo indica, ela era amiga da família do Ângelo.

- Acho que eu sei de quem você está falando... Quando comecei a trabalhar aqui, tinha uma mocinha que vinha todos os dias de tarde, sentava naquela mesa ali - E apontou para uma das mesas da sala de leitura, que ficava de frente para uma enorme janela, com mais de dois metros de altura - E ficava o dia inteiro lendo. A dona Adelaide, que trabalhava aqui antes de mim, conta que desde de pequenininha ela fazia isso. Chegava assim que as portas abriam, escolhia um monte de livros nas estantes, fazia uma pilha do lado esquerdo, ia lendo e passando os livros já terminados para o lado direito, até ter lido tudo. Depois ia embora, e voltava no outro dia para fazer a mesma coisa. Era conhecida de todo mundo aqui, a menina! Curiosa, gostava de aprender sobre tudo! E muito esperta também. Muito inteligente e educada, todos gostavam dela!

- A senhora sabe o que aconteceu com ela? Onde ela morava, quem eram seus amigos?

- Não sei se ela tinha amigos, pelo menos quando vinha aqui, era sempre sozinha. Tem gente que diz que ela fugiu com o circo, mas acho que deve ter é mudado daqui, ido estudar em outra cidade, ido pra faculdade, não sei. Uma menina tão sabida não ia desperdiçar a cabeça nessa cidadezinha, é o que eu penso.

- Como será que podemos achar informações sobre ela?

- Olha, até onde eu sei, ela tinha casa no setor ali do lado, talvez ainda more algum parente dela lá... Sabe essa rua que estamos?

A Colecionadora confirmou com a cabeça.

- Então, você vai reto aqui até o fim da rua; lá no fim ela se divide em duas, você vai pegar a da direita e descer. É uma descida. Você vai passar pelo rio que atravessa a cidade, e continuar seguindo reto, até ver uma mangueira bem grande. Nessa esquina você vira à esquerda. A casa dela é a quinta do lado de baixo, uma que tem a fachada de pedrinhas brancas.

- Ah, eu sei onde é - Respondeu a Colecionadora que já tinha passado nessa rua muitas vezes - Uma que tem um pé de flor amarela na porta, né?

- Essa mesma! É lá.

- Tá bom, muito obrigada. Se a senhora precisar de algo, já sabe onde me procurar, né?

- Pode deixar, tenho seu telefone anotado aqui no caderninho.

- Ok. Tchau, vejo a senhora depois!

- Tchau, vai com Deus, minha filha!

- Amém.

***

A casa estava fechada, e coberta de poeira. O pé de flores amarelas estava enorme, com os galhos desgrenhados e folhas por todo lado, flores murchas caídas aos montes na calçada, e o branco das pedrinhas escondido sob uma grossa camada de terra.

- Desnecessário dizer que ninguém mais mora aqui. - Ângelo falou.

- Ah, não! Você está pensando em invadir?

- Bom, invadir é uma palavra muito forte... Reconhecer território, talvez... Primeiro, ninguém mora aí, ninguém vai ver. Segundo, não vamos fazer nada. Não vamos roubar ou estragar nada, nossas intenções são as melhores!

- Pra quem detesta invadir coisas, eu estou chegando perigosamente perto da minha cota de invasões.

- Mas olha, foi a minha avó quem escondeu essas coisas, então tecnicamente, nós só estamos recuperando bens de família...

- A gente não sabe se foi ela quem escondeu.

- Quem mais poderia?

- Não sei, a Aurora?

Ângelo revirou os olhos.

- O ponto é que a minha avó está envolvida até o pescoço nessa história. Não importa quem, pessoalmente, escondeu essas coisas... O que importa é que o mapa era da minha avó. Ou ela quem fez, ou alguém deu pra ela. De todo jeito, é uma coisa de família, e nós somos a família! Se a gente não fizer isso, o tesouro dela vai ficar escondido pra sempre! E a gente nem sabe o que é! E se for algo importante?

- Tá bom, tá bom... Mas que fique claro que eu não gosto nadinha disso.

Ângelo impulsionou a Colecionadora, que ao aterrissar do outro lado sussurrou um "desculpe proprietários, melhores intenções", e pulou em seguida. Os dois contornaram a casa, e chegaram até a porta da cozinha, que era velha e estava enferrujada e carcomida em vários pontos.

- Essa não vai dar pra abrir civilizadamente, amor, desculpa - disse Ângelo e chutou com toda força a porta, que não ofereceu nenhuma resistência e de imediato se escancarou.

***

A casa era antiga. O chão, de cimento queimado na cor verde. As paredes da sala e dos quartos tinham um padrão pintado em vermelho e rosa, e não havia parede separando a sala e a cozinha.


Os cômodos eram bem pequenos, e tudo era bem simples. Nenhum móvel ou objeto estava à vista.

- Não vamos encontrar nada aqui. - Ângelo constatou depois de inspecionar o local - Deve fazer tempo que está vazia.

- É, não vi nada curioso ou suspeito. No quintal, talvez?

- Tem um barracão no fundo, eu vou olhar lá, e você olha no quintal, ok?

- Pode ser.

A Colecionadora caminhou para o quintal, observando como era bonito de um jeito meio selvagem. O chão era coberto de grama, que estava alta como um colchão verde, e várias plantas cresciam ali, desordenadas... No canto esquerdo do terreno tinham rodelas de madeira formando um caminho, que guiava um pé atrás do outro, e alguns banquinhos feitos com pedaços de troncos.

A Colecionadora sentou num desses banquinhos, e observou as coisas ao seu redor... Um sentimento incomum de nostalgia invadiu seu coração, e por um momento foi como se ela conhecesse aquele lugar tão bem, como se aquele sempre tivesse sido o seu lar.

Ela lembrou de quando acordava de manhã cedinho e sentava nos degraus da área, para assistir sua mãe cantando enquanto podava a roseira que tanto amava, lembrou de quando construiu uma cabana com folhas de palmeira para acampar com sua prima, lembrou de sua cadelinha vira-lata, cor de caramelo, desgrenhada e suja correndo por aí com o rabinho balançando...

Imagens de felicidade plena, de contentamento, passaram por sua mente. De um tempo em que tudo era tão mais simples, em que tudo parecia tão fresco, e novo, e em paz....

Olhar para aquele lugar era como encontrar uma parte perdida dela mesma, como completar finalmente um quebra-cabeças e contemplar a imagem final. Mas algo dentro de si sabia que não pertencia ali.

Uma parte dela sabia com certeza que havia perdido tudo o que lhe era caro. Tudo o que mais amava. A roseira não existia mais, não passava de um monte de galhos apodrecidos no chão; sua mãe não estava em lugar algum pra se encontrar; a cabana tinha sido destruída pelo tempo, e não havia ninguém mais por perto. Ela estava completamente sozinha. Até onde sabia, era última pessoa viva no mundo, e as lágrimas rolaram por suas bochechas.

Ângelo saiu do barracão com uma caixa de sapatos empoeirada debaixo do braço, e viu a Colecionadora imóvel, fitando o vazio e chorando. Foi até ela, e, colocando a caixa no chão a seus pés, a abraçou.

- Ei, o que houve? Tudo bem?

A Colecionadora despertou de seu devaneio, enxugou os olhos, e retribuiu o abraço.

- Tudo. É que... Eu acho que... Ela...

- Tudo bem. Em casa a gente conversa, ok? Vem.

Os dois se levantaram, pularam de volta o muro, e pedalaram para casa em silêncio.

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