6: Uma Carta é Encontrada
Ângelo e a Colecionadora, sobretudo ela, eram tão acostumados com aquela pequena pracinha... Tinham brincado lá tantas e tantas vezes quando crianças! Passeado lá de mãos dadas durante quase todos os dias dos quatro anos em que estavam juntos. Sentado nos banquinhos cujos pés tinham formato de cavalos, e conversado sobre a vida, olhado as estrelas, dividido um sorvete, e namorado pela madrugada a fora, quando todas as outras pessoas já tinham ido embora...
Era engraçado para eles pensar que às vezes você via uma coisa todos os dias, passava por ela inúmeras vezes, até que isso se tornava cotidiano na sua cabeça. E um dia algo acontecia e mudava totalmente sua visão daquilo. Antes, aquela era só a velha e boa pracinha. Agora, era o cenário de uma caça ao tesouro, e escondia deles uma história, um segredo, e provavelmente algum item valioso, e em todas aquelas andanças por lá, eles nunca tinham percebido nada disso.
No canto mais distante da praça, havia uma casinha bem pequena, que não devia ter mais de quatro metros quadrados. Lá ficavam guardadas as ferramentas de manutenção da praça: cortador de grama, tesourões para podar as árvores e plantas em geral, rastelos e vassouras, esse tipo de coisa. A entrada não era permitida para os moradores da cidade, obviamente. Somente o zelador tinha a chave, pois ele era também o jardineiro encarregado.
Nossos aventureiros tinham certeza de que o que procuravam só podia estar lá dentro. Se estivesse enterrado lá fora em algum lugar, primeiro daria muito trabalho para esconder e depois para procurar, e envolveria cavar em um local público, o que dava muito na cara. Além do quê, ninguém podia garantir que uma tempestade, ou fenômeno natural de alguma espécie não revolvesse a terra revelando a todos o que estava enterrado.
Na cabana, que era abandonada, e ficava fora da cidade, eram outros 500, pois era possível cavar um buraco bem fundo, e não haveria ninguém por perto para reclamar. O mesmo não podia ser feito no centro da cidade, diante de todos. Logo, a conclusão mais lógica: está na casinha de ferramentas.
- Nós temos 3 opções aqui - Refletiu Ângelo - Quebrar a fechadura, tentar usar nossa chave mestra, pegar a chave com o zelador.
- Bom, podemos começar com a opção mais discreta, usar a nossa chave e ver se dá certo. Mas daí em diante vamos ter que arriscar uma das opções. Se quebrarmos, e alguém descobrir que fomos nós, estamos encrencados. Além do quê eu não gosto muito da ideia de vandalizar um bem público. Mas enfim. Se tentarmos pegar a chave com o zelador, ele negar, e depois a fechadura aparecer quebrada, ele vai saber que fomos nós de cara.
- Mas acho que ele não vai negar se a gente souber pedir. Mas vamos fazer assim, antes de nos preocuparmos por antecipação, vamos tentar a nossa chave primeiro.
No cair da noite daquele dia, os dois tinham ido à pracinha como sempre, e reconhecido o território. Andaram em volta de todo o perímetro, e tiraram as conclusões narradas acima. Decidiram, então, voltar no meio da madrugada para tentar entrar no cômodo.
A Colecionadora, como tal, possuía um acervo de coisas das mais variadas e curiosas, dentre elas uma chave mestra, que nunca tinha tentando (ou precisado) usar até então. Ela olhou em volta para garantir que ninguém estava vendo, e ninguém estava (pois como todos sabem as cidades de interior são desertas de madrugada), pegou a pesada chave no bolso, e colocou rapidamente na fechadura da porta. Virou a chave, e um clique ressoou. A porta se abriu.
Os dois entraram, carregando suas lanternas, e começaram a procurar. Lá dentro, haviam prateleiras de madeira repletas de coisas que os dois nem imaginavam para que serviam. Eles tentaram ser o mais rápidos e silenciosos que foi possível, mas tinham muitas coisas para examinar, e a tarefa demorou bem mais do que eles gostariam. O cômodo tinha um cheiro forte de gasolina. Ou querosene, algo assim.
A Colecionadora revirou uma pilha de capas de chuva, e por trás da pilha notou um tijolo que parecia diferente dos outros. As bordas eram mais desgastadas.
- Acho que eu achei!
Tirou do bolso um canivete e tentou desgrudar o tijolo, que nem a gente faz com um bolo, quando vai desenformar. Juntos, ela e Ângelo puxaram o tijolo com muito cuidado, e no fundo do buraco que ficou, viram uma pequena latinha verde. Na tampa, tinha um desenho desgastado de bombons confeitados, e as bordas estavam descascadas.
- Exatamente como eu sempre imaginei! - Exclamou a Colecionadora.
Abriram, e lá dentro haviam dois pedaços de papel dobrados.
- Não é a chave que estávamos procurando - disse a Colecionadora, constatando o óbvio.
- Realmente. Mas se estava tão bem escondido, em um lugar sinalizado pelo mapa, deve ser importante de alguma forma... - Rebateu Ângelo deixando a reflexão no ar.
- Melhor a gente olhar com calma em casa, já passamos muito tempo aqui e não queremos ter que dar explicações - Ela disse. Guardou a latinha no bolso, os dois ajeitaram tudo do jeito que estava antes, trancaram a porta e saíram como gatunos na noite.
Um fato curioso sobre a Colecionadora, e que talvez alguns de vocês já tenham notado, é que ela era uma assídua seguidora de regras. Gostava de jogar de acordo com elas, e se sentia segura quando tinha um roteiro a seguir. Era pontual, e quando marcava um compromisso, sempre aparecia, não importa o que acontecesse. Não quebrava sua palavra, não mentia, e não gostava de enganar ninguém. "Como o mundo seria melhor se as pessoas valorizassem suas palavras", pensava ela, "e cumprissem seus combinados!".
Bem, ao chegar em casa, Ângelo e ela sentaram-se à mesa e abriram a lata. Um dos papéis era um marca-páginas, com uma versão antiga da logomarca da biblioteca municipal desenhada, a foto de uma orquídea roxa, e um pequeno calendário de cinquenta anos atrás.
O outro papel era uma carta, dobrada em muitas partes. Ângelo abriu a folha e leu em voz alta:
"O papel no qual te escrevo essa carta, numa primeira impressão, não parece ter nada de especial. Não é decorado como os papéis de carta que costumo usar. Mas ele é, de fato, especial, porque é de um caderno que encontrei por acaso naquela antiga papelaria que fechou, numa prateleira lá no fundo, onde, pela poeira acumulada, ninguém costumava ir.
As páginas dele já estavam amareladas pelo tempo, e fiquei me perguntando quantas pessoas passaram por ele, indo e vindo, enquanto ele repousava ali, por anos a fio, somente observando todas essas pessoas, talvez até sendo tocado por algumas delas, mas sempre deixado no fim das contas.
É engraçado pensar essas coisas, você não acha? Pensar na história das coisas, dos lugares. Nas pessoas que vieram antes de você... Por exemplo, minha rua tem o nome de alguém. Mas, quem foi ele? O que ele fez de tão importante para ter uma rua batizada em sua homenagem?
Penso que ele deve ter sido um dos fundadores da cidade, mas não consegui encontrar nenhuma informação a respeito. Ninguém sabe sobre ele. Parece que a não ser pelo nome da rua, não há indícios de sua existência.
E mesmo assim ele existiu. E um dia, pisou a mesma rua que piso todos os dias. Viu o mesmo horizonte que vejo agora. Quantas pessoas já estiveram aqui antes de mim? Quantas estarão depois?
Outro dia eu pensava sobre o meu livro favorito, e em como esse livro mudou a minha vida. E ele foi publicado há mais de cem anos! Será que a autora algum dia imaginou que o seu livro pudesse fazer a diferença na vida de uma menininha do interior, em um país remoto, tanto tempo depois? Será que tinha noção da grandiosidade de suas palavras?
Se você me perguntasse, eu diria que não. Que ela, como a maioria dos artistas, não tinha ideia da preciosidade de sua obra. Mas esse é o poder das palavras, viajar através do tempo, dos idiomas, e dos lugares. Será que algum dia algo que eu escrevi vai mudar a vida de alguém? Eu queria um dia ter esse tipo de talento.
Para falar a verdade, eu já tinha desistido de escrever. Por um tempo, senti como se todo o meu esforço criativo fosse irrelevante, se eu escrevesse ou não, não faria diferença para ninguém. Mas ultimamente tenho sentido como se escrever fosse o meu chamado... Faz sentido? Eu sinto que não importa quantas voltas eu dê, no fim sempre vou parar no mesmo lugar: nas palavras.
Acho que dessa vez eu sei de algo que não sabia antes: que ninguém precisa gostar do que eu escrevo, ou sequer ler. Eu preciso escrever porque eu amo. Por mim. E se eu conseguir ficar feliz com o que escrevi, pelo menos uma vida será transformada: a minha própria.
Essas palavras que escrevi aqui ganharão asas e voarão até você. Quem sabe até onde elas vão chegar? Quem sabe se, algum dia, encontrarão uma jovem sonhadora, num lugar distante, num tempo futuro? Quem sabe se essa jovem não sou eu, ainda este ano, ainda aqui? Ou se não é você, em algum momento, presente ou futuro, quando tirar essa carta da sua caixa de lembranças, e reler tudo que eu escrevi?
Ou seus filhos, quando contar a eles sobre mim?
Para sempre sua,
Aurora."
- Uau! Essa pode ter sido uma das coisas mais inspiradoras que eu já li! - Completou Ângelo ao terminar a leitura.
- Você conhece alguma Aurora?
- Assim de nome não. Talvez uma antiga amiga da família? Aqui na cidade todo mundo se conhece...
- A gente precisa descobrir o que ela tem a ver com o mapa. O mapa era da sua avó, elas deviam se conhecer... Senão, o que teria ela a ver com a história? Com o mapa? - Os dois ficaram pensativos por um momento - Você acha que a carta era para a sua avó?
- Provavelmente. Em algum momento deve ter chegado nas mãos dela, se está incluída no mapa...
- Nosso próximo passo deve ser pesquisar sobre ela, se conseguirmos encontrar algo. Não sabemos seu sobrenome nem nada.
- Bom, esse marca páginas é da biblioteca municipal, e ela está marcada no mapa... É possível que a gente encontre lá alguma informação sobre quem ela foi.
- Ou por que sua carta é importante nessa busca.
Quando os dois terminaram de ler a carta e planejar o que fariam em seguida, já estava quase amanhecendo. A Colecionadora não gostava de virar a noite acordada, sempre se sentia estranha durante o dia que se seguia... Mas pelo menos tinha o consolo de saber que estavam mais próximos de encontrar o que quer que estivesse marcado no mapa com um grande "x" luminoso.
Ela não era uma pessoa curiosa, necessariamente, mas gostava de terminar as coisas, esclarecer mistérios e encontrar respostas. E era divertido estar numa missão novamente.
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