16: Luzes da Aurora

Quando a Colecionadora abriu o mapa naquela tarde, e olhou para ele através da lente de sua lupa, viu se levantar do pedaço de papel uma imponente catedral, com janelas de vitral ornamentadas com figuras bíblicas.

Essa igreja era a construção mais antiga da cidade, cuja torre tinha sido projetada para ser vista de qualquer ponto dela.

Lá celebravam-se missas, casamentos, batizados e eventos afins, mas também era um ponto turístico, aberto para visitação das oito da manhã até as oito da noite em dias úteis.

No interior ostentava a riqueza dos templos da Igreja Católica, em seus artefatos artísticos, como pinturas e mosaicos, e banhados a ouro e prata, como cálices, candelabros e outros. No púlpito, uma grande cruz dourada, reluzente, e um órgão majestoso.

***

Era por volta de seis horas da tarde quando Ângelo e a Colecionadora chegaram lá.

Se ajoelharam entre os bancos, como se fossem rezar, mas na verdade abriram o mapa no chão para ver onde estava o objeto que buscavam. O ponto incandescente brilhava no ponto mais alto da torre.

Eles guardaram o mapa, a lupa, e a lanterna, fizeram o sinal da cruz, e foram em direção às escadas. Os degraus eram muitos, e verticais. Quando chegaram ao topo, estavam ofegantes.

A câmara de cima da torre tinha na parede principal uma grande janela redonda, que ficava bem de frente para o sol, permitindo que toda a luz entrasse, e jogando um filtro dourado sobre tudo o que ali havia. As demais paredes eram adornadas com tapeçarias, volumes ilustrados e encapados em couro da bíblia, instrumentos musicais antigos, como harpas e liras, entre outras coisas que remetiam à bíblia e à história da religião.

Eles não queriam mexer naquelas coisas preciosas, então, abriram o mapa outra vez, e viram exatamente onde estava o ponto incandescente. Estava debaixo de uma pilha de objetos variados, no canto da sala. A Colecionadora tirou alguns tecidos dobrados e caixas, e por baixo viu um livro grande de capa marrom.

Ele estava preso embaixo de outros objetos, e quando a Colecionadora puxou realmente com força, e ele finalmente saiu, caíram os dois no chão, no meio de uma nuvem de poeira.

Abriram-no, e lá dentro havia um buraco quadrado no miolo do livro, dentro do qual havia um segundo livro menor, de capa lilás, com borboletas holográficas voando. A Colecionadora o pegou, assoprou a poeira dele, e guardou-o num dos bolsos internos de seu casaco.

Ela se levantou, e olhou para a janela, de onde conseguia ver toda a cidade. Ângelo se juntou a ela, e ficaram muitos minutos em silêncio observando as luzes das casas e dos postes se acendendo aos poucos. Eram como inúmeras luzinhas de natal, enfeitando o mundo ao redor, e criando uma esfera mágica e surreal.

***

"Querido diário,

Estou olhando para fora agora. Queria que ela pudesse me ver.

Sabe de uma coisa? Não fiz planos para esse ano. Não fiz planos, mas estou sentindo.

Estou vendo as luzes espalhadas pela cidade, e, quero dizer, deve haver algo além disso. Tem que existir algo que a cidade não nos conta.

Está muito escuro, mas não sei que horas são. Deve ser bem tarde, porque tem uma brisa suave vindo de algum lugar. Eu escuto grilos ao longe. Sabe, o som da noite. Aquele que você sempre escuta quando acorda no meio da madrugada.

Sinto uma vontade besta de chorar... Não sei se por lembrar da Amélia, ou se por estar com medo, ou pelo simples fato de que não consigo dormir. Sentada aqui na sacada, imagino onde estarei no final do ano.

Imagino se terei me tornado tudo aquilo que imaginei que seria. Se estarei menos insegura esse ano. Se farei novos amigos. Imagino como será o meu setembro. O tempo passa rápido demais.

Me pergunto se esse ano as chuvas de novembro vão lavar a minha alma. Será que estarei pensando nela no dia dezenove, ou estarei vivendo a minha vida como se ela nunca tivesse existido?

Uma coisa eu sei que vai acontecer: meu pai vai embora outra vez. Mas dessa vez, eu vou saber que é a coisa certa. Sei que os dias vão simplesmente passar, como já estão fazendo agora.

Já se passaram quatro dias (cinco, se já for mais de meia noite), e ainda me sinto paralisada na noite em que estive na cidade. Ela estava lá, entende? E estava tão linda... Não paro de pensar que estava com ela. Ou, pelo menos, estávamos no mesmo quilômetro quadrado.

É tão difícil pra mim imaginar o quanto ela está distante agora... Gosto de pensar que ela está em uma das luzes acesas... Que pode me ouvir, se eu chamar. Gosto de imaginar que a qualquer momento ela vai aparecer aqui de surpresa, vai dar um jeito de tirar essa saudade de dentro mim...

Aliás, acho que em toda a minha vida, nunca vai haver um ano sem saudade. Mas haverão reencontros, alguns de quinze dias, outros de sete anos...

Aurora.

***

Querido diário,

Hoje é seis de janeiro? Porque não consigo mais ver as decorações de natal daqui, de onde estou. Amanhã é a última sexta-feira de férias, antes que eu volte para a faculdade. É isso, outro ano está começando.

Aqui na sacada é onde eu mais me lembro da Amélia. Foi a época perfeita, se você quer saber. Um verão fresco, com a mistura ideal de dias chuvosos e dias ensolarados.

Desde que o meu pai partiu, tudo parecia meio triste. Mas agora eu me lembro dela, de tudo o que aconteceu... Do sol iluminando seu rosto, nos dias quentes, da chuva colando sua roupa ao corpo, e de como tudo que eu queria em qualquer clima era abraçá-la o dia todo.

E aperta, sabe? Dói pensar que estamos nos distanciando. No fundo, eu sei que preciso seguir em frente, pensar no meu futuro... Mas o futuro não me atrai, porque ela não vai fazer parte. No ano passado eu tive que mudar de cidade, deixar tudo o que eu conhecia para trás, e foi tão difícil! Na maior parte das vezes eu sentia que não tinha ideia do que estava fazendo.

Hoje, fiquei com tanta saudade da Amélia que tentei desenhar o rosto dela. Demorei umas três horas, mas até que ficou relativamente parecido. Só que é estranha essa minha obsessão por ela. Quer dizer, eu já gostei de outras pessoas antes. Não muitas, mas ainda assim.

Só que ela... Ela tem algo que ninguém mais tem. Um jeito tão doce de me olhar, que revela que ela gosta mais de mim do que gostaria que as pessoas soubessem. Eu olho para ela, e é como se estivéssemos caçoando de todo mundo, guardando um segredo bem debaixo dos narizes deles. E, ao mesmo tempo, fico feliz porque aquilo é tão exclusivamente nosso!

Dizem que a gente só ama uma vez na vida... Acho que entendo. Entendo que talvez hajam outros amores - e provavelmente haverão. Mas esse... É tão adolescente, e maluco, e cheio de sonhos salpicados de magia, que me leva a crer que essa vai ser a minha história de amor. Sabe, a mais bonita.

Esse ano muita coisa vai acontecer, eu sei. E provavelmente vai ser esse o ano que vai nos eternizar.

Aurora.

***

Querido diário,

Hoje as ruas estão molhadas, e, por isso, toda hora escuto um 'splash'.

Comecei o dia bem. Acordei cedo, mas fiquei na cama até bem tarde. Tomei café da manhã já eram quase meio-dia, e ainda consegui almoçar, uma hora mais tarde.

Passei o dia todo dançando. Nos últimos quatro meses, hoje foi o dia mais próximo da minha vida antiga. Saí com meus amigos, me diverti, e falamos sobre as coisas banais. Confesso que o tema "Amélia" surgiu na conversa algumas vezes. Mas não doeu. Era como uma realidade distante. Como se eu conseguisse admitir que é um mundo paralelo.

Agora estou sozinha novamente, olhando as luzes. Vendo as gotas de chuva penduradas na grade de proteção da sacada, brilhando como diamantes sob as luzes da noite...

Me pergunto se devo esquecê-la e seguir em frente. Me pergunto se existem sonhos onde ela não está. Me pergunto se poderei algum dia ser feliz, sabendo que não lutei por ela. Eu só... Estou tão cansada!

Pergunto-me o que é melhor para mim...

De toda forma, estou me arriscando. Arriscando viver a vida toda sabendo que não insisti, ou arriscando arcar com todas as consequências que vierem...

Aurora.

***

Querido diário,

Estou na sacada. Também choveu hoje, mas agora a chuva cessou.

São meia-noite em ponto. Ainda vejo faróis de carros circulando pelas ruas, e ainda ouço seus barulhos ao longe. Vez ou outra um passa por aqui.

Preciso falar. Preciso dizer que tudo está se desajustando. Meus pais vão se divorciar pra valer, e teremos que mudar de casa outra vez. Eu amava tanto a nossa casa antiga, mas de lá não dava para ver as luzes. Não dava para sentir a brisa.

Sei que a minha mãe está fazendo o seu melhor, se esforçando para ficar bem, e preciso ajudá-la. Então, vou começar a me despedir das luzes. Nem sei porque elas são importantes pra mim, em primeira instância. Preciso encontrar dentro de mim a força para desapegar, para continuar de pé.

Não houve razão nenhuma para não irmos para a cidade hoje. Meu pai simplesmente não quis. E eu desisti de tentar. Por mais que eu ame a Amélia, e ame as nossas lembranças, não posso mais continuar. Não tenho mais razões para voltar lá, a não ser minha fixação pelo impossível.

Decidi guardar no peito. Decidi guardar as canções, os passeios, os momentos... Decidi lembrar-lhes como coisas boas que aconteceram na minha vida... E que passaram. Decidi seguir meu caminho, sem esperar que ele nos cruze. Não sei se voltarei, ou se não. Ou se não com frequência... Talvez amanhã eu acorde e esteja decidida a procurá-la outra vez...

Mas nesse momento estamos juntas. Sinto seus braços em volta de mim, seus beijos açucarando minha vida amarga... E neste momento eterno, seremos só nós duas. Nós duas e a chuva caindo lá fora.

E eu a guardarei dentro de mim, bem no fundo, onde ninguém pode mexer. E seguirei. Realizarei meus sonhos, encontrarei força onde não tenho, e amarei novamente um dia.

E em cada passo que eu caminhar, ela estará. Estará implícita nas minhas conquistas, estará subentendida em cada linha que eu escrever. E ficaremos sós, cada vez que eu me lembrar. E eu nunca lhe direi adeus, porque nunca vou deixá-la partir de dentro de mim.

Aurora.".

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