11: Minha Bela Adormecida
Ângelo e a Colecionadora estavam sentados no sofá, com o mapa aberto entre eles, marcando mentalmente todos os lugares que já tinham visitado, ou se deparado por acaso.
Reuniram em uma caixa tudo o que já tinham coletado até ali: um baú que permanecia trancado, duas cartas de Aurora, uma carta de Amélia, um relicário com fotos das duas.
O mapa não apontava para onde deviam ir em seguida. Só mostrava os mesmos lugares de antes, e a gota que representava a localização dos dois pairando sobre sua casa.
- A gente devia ir ver a minha avó - Ângelo falou de repente.
- Não sei se é uma boa ideia. Não sabemos se ela ao menos vai perceber que estamos ali...
- É, mas olha... O Lar aparece no mapa! - Ele apontou com dedo para uma casinha de janelas grandes que ficava a algumas ruas da biblioteca.
A Colecionadora ponderou o assunto. Será que valia a pena incomodar e velha senhora? Será que faria alguma diferença? Ela estava doente há muitos anos, e praticamente não se lembrava de nada, ou reconhecia alguém...
- Faz tempo que eu não vou lá - insistiu Ângelo - Era muito doloroso pra mim... Mas agora, com essa história toda, eu sinto que eu devo isso a ela.
- Tá bom. Vamos levar flores, pelo menos.
- Orquídeas roxas, como ela gostava.
Os dois se aprontaram, pegaram um vaso que já estava com as flores quase abrindo, e seguiram caminho a pé, apesar do sol estar um pouco quente demais.
O Lar dos Idosos, onde a avó de Ângelo, Amélia, já vivia há uns bons anos, ficava localizado em um casarão antigo, pintado de branco e com enormes janelas azuis e piso de madeira, que foi reformado para atender às necessidades dos moradores. Era um lugar bem bonito, para falar a verdade. Era decorado de forma calorosa, e parecia mesmo um lar.
A recepcionista viu Ângelo e a Colecionadora entrando, e foi até eles com um sorriso estampado no rosto.
- Ângelo! Quanto tempo!
- Oi, Cora! Tudo bem?
- Tudo! E aí, por onde você andou?
- Ah, viajando, trabalhando, as coisas de sempre. E você?
- Também. Muito trabalho! Você veio ver a dona Amélia?
- Foi sim.
- Só um minutinho... Assinem aqui, por favor - disse Cora, entregando o livro de visitas para eles junto com uma caneta. Os dois assinaram seus nomes, e Cora colou no peito de cada um, um adesivo com os nomes deles escritos, e embaixo em letras menores a palavra "visitante".
- Vocês vão ter que deixar seus pertences aqui no armário. Chaves, objetos, acessórios... Mas não se preocupem, ninguém vai mexer. Você deve lembrar, Ângelo, protocolo padrão.
Ambos esvaziaram os bolsos, e colocaram tudo o que levavam consigo dentro do armário, exceto pelo vaso de flores. Por sorte, estava muito quente naquele dia, e a Colecionadora não usava seu casaco de costume, senão ela teria um trabalhão para esvaziar todos os bolsos.
Feito isso, a recepcionista abriu uma porta, e chamou uma das enfermeiras, que veio para conduzi-los até o quarto certo. Ela não disse uma palavra sequer, só caminhou, e os dois seguiram.
Chegaram então em uma porta também pintada de azul, entreaberta. A enfermeira bateu com cuidado e disse:
- Dona Amélia, seu neto Ângelo está aqui para te ver. Ele pode entrar?
Eles ouviram o rangido das molas do colchão, e em seguida passos lentos se arrastando pelo piso. Um narizinho enrugado apareceu pela fresta da porta.
- Cristóvão? É você? - Disse a velhinha com voz meio tremida.
- Não, vó, é o Ângelo.
- Anjo?
- É, quase isso. Ângelo.
- Por que um anjo veio me visitar?
- Eu só queria conversar um pouco. Posso entrar?
- Está bem.
A porta se abriu devagarinho, e dona Amélia virou de costas e andou até o pé da cama, onde se sentou. Ângelo sentou-se na cama ao lado dela, e a Colecionadora, de frente para os dois numa cadeira.
- Infelizmente, eu não tenho biscoitos hoje. Você vai ter que ficar com fome, anjo.
- Não tem problema. Eu já comi antes de vir.
- Você veio do céu?
- O que você acha? - Ele rebateu a pergunta, não sabendo o que mais responder.
- Acho que sim. Acho que você toca harpa e voa, nas horas vagas... E essa moça? Ela é um anjo também?
- Eu sou a Colecionadora de Defeitos - respondeu prontamente a moça.
- Nome meio complicado. Não sei o que ele quer dizer.
- Eu te trouxe uma orquídea - respondeu a Colecionadora tentando mudar de assunto.
- Orquídea? Você não sabia que as margaridas são as minhas favoritas?
- Desculpe, eu confundi. Achei que eram orquídeas. - Ela trocou um olhar triste com Ângelo.
- Ah, deixa pra lá. Dá pro gasto. Coloca em cima da mesinha, por favor?
A Colecionadora fez o que ela pediu.
- Vovó... - começou Ângelo - preciso te fazer uma pergunta... Tudo bem se eu fizer?
Amélia assentiu, em silêncio.
- O que aconteceu com a Aurora?
- Eu gosto de ver o sol nascer! - Respondeu ela, alegre.
- Que bom! Mas não é essa aurora. Eu estou falando sobre a sua amiga... Lembra?
- Eu não tenho nenhuma amiga. Quer dizer, a Marta joga cartas comigo na quarta-feira, mas eu não chamaria isso de amizade.
- Tá bom. Vamos tentar de outro jeito. A senhora se lembra, que quando era mais nova, bem mais nova, tinha uma amiga muito especial?
- Isso foi antes ou depois do presidente careca?
- Não vai adiantar nada - constatou Ângelo, se dirigindo à Colecionadora.
- Espera. Deixa eu tentar - ela se aproximou da senhorinha - dona Amélia?
- Pois não?
- Qual é o seu sabor de sorvete favorito?
- É flocos! Mas aqui eles não me deixam tomar.
- Que pena, sinto muito! E qual é o seu dia da semana favorito?
- Domingo, eu acho. É no domingo que tem purê de batata no almoço.
- Eu adoro purê! A senhora tem mesmo muito bom gosto! Você prefere azul ou vermelho?
- Azul, como o céu!
- E quem é a sua pessoa favorita no mundo?
- É a Bela! - Respondeu a velhinha, pulando de animação.
- Qual Bela?
- A Bela Adormecida!
- A Aurora? - Sugeriu a Colecionadora.
- Ela era tão linda! Nunca vi na minha vida uma pessoa tão bonita, você tinha que ver!
- A senhora sente falta dela?
- Muita, muita mesmo - seus olhos se encheram de lágrimas.
- Pra onde ela foi?
- Ela foi embora. Faz tanto tempo que eu não a vejo... Eu quase esqueci o seu rosto... Mas aí sonhei com ela, e era como se estivéssemos juntas de novo! Foi tão real!
- Você não sabe onde ela está?
- Não. Alguém me disse que ela morreu, mas eu não quero acreditar nisso. Quando penso nela, ela sempre está em casa, cercada por sua família, amigos e animais de estimação, vivendo em paz - a velhinha contemplou o vazio por um bom tempo, e depois, seu rosto se transformou, como se tivesse caído em si depois de um longo tempo de devaneio.
- Ângelo! - Disse ela num sobressalto - Meu filho, como você cresceu! - As lágrimas escorriam por suas bochechas - Que homem lindo você virou! Meu Deus! Essa é sua namorada?
A Colecionadora acenou, tímida, ao que a senhora cruzou o cômodo e a abraçou bem forte.
- Eu sabia que você ia encontrar alguém e ser muito feliz! Escuta! Não temos muito tempo. Tem algo que eu preciso te entregar. Vem, me ajuda aqui.
Os dois juntos arrastaram a cama, e ela se agachou e começou a escavar as bordas de um dos tacos de madeira que compunham o piso. Com algum esforço o taco se soltou, e ela tirou de lá de dentro uma corrente, toda suja de terra, com uma chave pendurada.
- Quero que você fique com isso. Não deixe ninguém ver, não conte pra ninguém. Só entre nós dois, está bem?
- Tá bom vó. É tão bom te ver de novo, eu nem sei o que dizer!
Os dois se abraçaram e choraram juntos mais um pouco.
- Ângelo, meu anjinho, tem mais uma coisa que eu preciso te dizer. Presta atenção! Quero que você saiba que eu fui muito feliz nessa vida, tá? Ter a sua mãe foi a maior alegria do mundo, e depois ter você... Eu não podia pedir nada mais que isso! Eu fui muito feliz nessa vida! Mas... Eu ainda era incompleta. Nem eu entendia como alguém podia ser assim tão feliz, e ainda sentir uma parte vazia... Eu queria que essa parte fosse feliz também... Eu tive que dividir essas duas partes, só assim eu seria feliz por inteiro. Desculpa eu não estar mais aqui, é que eu tinha que estar lá, era o único jeito! Mas eu te amo muito, tá? Mais do que tudo! Só que eu amo muito ela também...
- Vó, fica calma. Tá tudo bem! Tudo bem. Shhh...
Dona Amélia se soltou do abraço e foi para a janela olhar para fora.
- O sol já está alto no céu. Eu perdi! Eu perdi! Eu perdi o amanhecer!
- Vó, você está bem?
- Sem querer ser rude, senhor anjo, mas você pode ir agora? Eu estou muito cansada mesmo...
- Ok. Nós já vamos. Foi bom te ver.
- Volte no natal, quem sabe eu não tenha biscoitos, ou bolinhos.
Ângelo fez um gesto afirmativo, e despediu-se, com um olhar desolado. A Colecionadora assistia tudo sem saber o que fazer, ou mesmo como reagir a tudo aquilo.
Os dois saíram do quarto em direção à recepção, onde Cora arrancou seus adesivos de volta, amassou-os, e jogou na lixeira. Pegaram seus pertences no armário, e voltaram para casa refletindo sobre o que aconteceu, cada um com seus próprios pensamentos.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top