CAPÍTULO QUATRO
Matheus ficou confuso com a explosão da vizinha. Ela parecia convencida de que ele a conhecia, e a determinação em seus olhos âmbar dizia que havia algo muito estranho em tudo aquilo.
Conseguiu se lembrar de quando a viu pela primeira vez no estacionamento. Naquele momento, teve a sensação de conhecê-la, mas também não era o tipo de mulher que um homem esquece facilmente. Mais baixa do que ele alguns centímetros, a vizinha era uma bela mulher. Tinha pernas bem torneadas, a cintura fina, e o rosto delicado se ajustava perfeitamente aos seus cabelos ruivos que caíam sobre o ombro. Apesar disso, não se recordava de tê-la visto; não depois do acidente.
Os últimos anos não estavam sendo fáceis e para ter um mínimo de normalidade em sua vida, sem depender da irmã, tinha que manter um caderno de anotações, além de manter seus compromissos rigorosamente agendados em seu Smartphone. Sua câmera fotográfica tinha a função de ajudá-lo a se lembrar das pessoas. Na antiga casa, tinha um mural com fotos e respectivos nomes daqueles que faziam parte do seu cotidiano. Todas as manhãs ao se levantar, costumava olhá-las só para se certificar de que ainda os reconhecia. Com a mudança, precisou fazer um novo quadro e ficava constrangido quando não conseguia lembrar o nome dos vendedores da loja, até mesmo dos vizinhos que via quase todos os dias.
Era arquiteto e por causa da doença não conseguia exercer a profissão em tempo integral. Fez pós-graduação em arquitetura de interiores, era apaixonado pelo oficio, trabalhava eventualmente como consultor em um escritório de arquitetura, e nas horas vagas ajudava a irmã na administração dos negócios que, por sua vez, o ajudava com Olivia. Seu trabalho lhe permitia passar a maior parte do tempo em casa, mas às vezes ficava difícil conseguir se concentrar no que estava fazendo. Quando isso acontecia, Samantha o obrigava a parar e concentrar as atenções na filha.
As mudanças de hábitos não estavam lhe fazendo muito bem. Na semana anterior, tinha feito muitas coisas erradas no trabalho. Se esquece de ir ao uma reunião com cliente, deixou sua pasta com um projeto importantíssimo no caixa do supermercado e, no dia seguinte, ele havia acordado sem saber onde estava e quase machucou a irmã quando ela entrou em seu quarto para guardar as roupas dele no armário.
– Espere, Matheus – ela disse naquela manhã tentando acalmá-lo – sou eu, Samantha, sua irmã.
– Conheço você? – Ele ficava muito nervoso quando acordava assim. Para sua sorte, a irmã já havia se habituado a esse tipo de episódio ao longo dos anos. – Desculpe, Sam. – Então, ele se lembrava de quase tudo. – Tem mais alguma coisa que devo saber?
Por essa razão sempre mantinha o caderno de anotações e seu Smartphone por perto. Não sabia muito sobre a sua vida antes do acidente. Tinha seu apartamento ali em São Felipe, mas nunca teve coragem o suficiente para visitá-lo novamente. Sempre foi estranho pensar que não conhecia sua própria casa. E havia a caixinha de veludo com as alianças que o deixava muito confuso.
Estava procurando coragem para ir atrás do seu passado. O apartamento dele não havia sido ocupado por outra pessoa, o que não significava que estivesse abandonado. Samantha queria preservá-lo intacto.
A cada dia, as coisas se tornavam mais complicadas para ele.
Por muitas vezes, não conseguia lembrar o nome da filha, mas tinha certeza de uma coisa: ela era a sua razão de viver. Sabia disso quando o abraçava naqueles dias em que sua vida parecia não ter sentido algum. Matheus amava a filha e a irmã, e prometeu a si mesmo que elas seriam as únicas mulheres de sua vida após a desilusão com a mãe de Olívia.
E agora, aquela vizinha maluca tinha feito uma bagunça em sua cabeça. Depois daquela noite, na qual havia perdido o controle, mesmo não sabendo o motivo, vinha pensando nela com frequência, embora nem lembrasse mais o seu nome. A mulher carregava uma mágoa enorme e sentiu raiva de vê-la tão frágil. Ao mesmo tempo, se sentiu atraído por ela. Quando ficou a centímetros de sua boca, usou todo seu autocontrole para não tomá-la em um beijo desesperado.
Dois dias que a tinha visto e agora, deitado em sua cama tentando dormir, fazia anotações em seu celular sobre a vizinha. Tentava, em vão, lembrar o nome dela quando ouviu uma batida em sua porta.
– Matheus, está acordado? – A voz aveludada da irmã o trouxe de volta.
– Sim, estou. Entre – disse, enfiando o celular embaixo do travesseiro.
– Já tomou seus comprimidos? – Samantha sentou-se na cama.
– Claro que sim – respondeu - Olivia já dormiu?
– Sim, feito um anjinho. No que está pensando? – ela quer saber.
– Nada em particular. – Algo em sua irmã estava estranho. - Mas não foi para saber o que estou pensando que veio, foi?
– Não, estou preocupada com sua saúde. Acho que devíamos consultar seu médico – sugeriu. Matheus coçou a cabeça impaciente quando Samantha começou a falar de suas preocupações – Semana passada, acordou sem saber nada de si mesmo. Sem falar nos erros que tem cometido no trabalho.
– O que fiz de errado na loja?
– Nada que não pudesse ser reparado. Por enquanto... Está vendo, Matheus? Acho que não deveria trabalhar até o fim de semana.
– Por quê? – Mesmo não sendo adepto à ideia, pensou que aquela poderia ser uma boa oportunidade para ir atrás de sua história.
– Por que não tenta cuidar um pouco de si mesmo e dar mais atenção a sua filha nos próximos dias? – Samantha era superprotetora e sempre fazia esse tipo de coisa com ele. – Tem certeza de que tomou a medicação direito nesses últimos quinze dias?
– Talvez – disse, fazendo careta. Estava tentando fazê-la rir, mas não conseguiu – Ok, foi só uma brincadeira. Marquei no Smartphone data, hora, tirei uma foto também, para o caso de querer confirmar a veracidade dos fatos – indica o calendário em sua mesa.
– Não preciso, acho que acredito em você – riu finalmente – mas o que está te incomodando? Teve novas lembranças?
– Nada. Aqui tudo parece tão estranho para mim.
– Voltou a ver Helen? – perguntou desconfiada.
– Quem é... – Ah! Era esse o nome da vizinha – Helen. – Tinha que escrever o nome dela logo, senão esqueceria novamente. – Ah, a vizinha. Não, eu não a vi, por quê?
– Por nada, só queria saber. – Após se levantar, beijou a testa do irmão, desejando-lhe boa noite.
Ele tinha a sensação de que a irmã escondia algo, mas talvez fosse só coisa da sua cabeça. Logo que saiu, Matheus correu para o quarto da filha, que dormia profundamente, deitou-se ao lado dela e a abraçou.
– Me desculpe, princesa – disse baixinho – Papai anda tão perdido.
Olivia se mexeu e colocou sua mão pequenina no rosto do pai, como se estivesse aceitando suas desculpas. Tinha tanto medo de um dia esquecer aquele rostinho meigo. Talvez fosse por isso que a fotografava tanto e espalhava as fotos por todos os cômodos da casa. Escrevia, todos os dias, sobre as descobertas que ela fazia e havia, inclusive, feito uma tatuagem em seu punho com o nome dela; era uma maneira de mantê-la viva em suas memórias.
***
Matheus estava sentado sozinho em uma mesa de restaurante e olhava impacientemente para o relógio. Esperava alguém que devia ter chegado às oito horas, mas quinze minutos já haviam passado e nada de ela aparecer. Ansioso, se virava a cada vez que escutava a porta se abrindo.
Levantou decidido a ir embora e quando ergueu a cabeça foi surpreendido por uma bela mulher, vestida elegantemente, de pé diante dele. Seu rosto lhe pareceu familiar, porém naquele momento não conseguia lembrar se a conhecia. Seu coração disparou e tinha dificuldades de raciocinar; tinha certeza de que havia esperado por ela a vida inteira. Admirou-a por um breve momento. Ela parecia um tanto tímida, mesmo assim bela. Seus cabelos castanhos estavam presos em uma trança, o vestido preto realçava suas curvas, a forma como ela o olhava o deixou confuso, mas ela era perfeita. Puxou a cadeira para que a moça sentasse e ela lhe sorriu, mas seu olhar pareceu triste.
– Acho que demorei um pouco - ela disse, timidamente.
– Sem problemas, mas por que está tão triste? – indagou, preocupado.
– Você não sabe quem eu sou. Não é mesmo, Matheus?
Ele procurou as palavras certas.
– Está enganada. Sei que é a mulher que vou amar por toda a minha vida – disse, prendendo o olhar dela no seu – Posso não saber o seu nome, mas isso não importa.
Os olhos dela encheram-se de lagrimas e quando falou, sua voz saiu trêmula.
– Então por que demorou tanto?
***
Matheus, acorda! A irmã chamava seu nome, apreensiva.
– É, papai, acorda. Tem que me levar para escola – Olivia parecia eufórica.
Abriu os olhos e deu graças a Deus quando, reconheceu aqueles rostos. Só que não reconheceu o quarto.
– Onde estou? – disse, sonolento.
– No meu quarto. – Sua filha estava radiante – Papai dormiu comigo! – ela cantarolava.
– Que horas são, hein? – indagou, ainda tomado pelo sono.
– Hora de levantar e levar Olivia para aula. Hoje você tem muitas coisas para resolver. – Sam puxava os lençóis dele. – Acho bom começar a anotar ai na sua agenda o que vai fazer, já que tem a cabeça oca.
– Papai não tem cabeça oca - a filha repreendeu a tia.
– Meu Deus, não se pode mais dormir nessa casa? – Puxou a coberta e virou para o outro lado. – Depois reclamam quando não consigo saber quem são as duas, me deixem dormir mais um pouco.
– Não! - elas disseram em coro, puxando o cobertor.
– Vamos levantar, seu dorminhoco. – Samantha fingia estar zangada. – Olivia já está atrasada.
Levantou-se com a sensação de estar esquecendo algo importante, mas não conseguiu saber o que era.
Foi para o próprio quarto se arrumar. Eram seis da manhã e a aula da filha só começava às sete e meia, porém o trânsito até a escola era caótico. Para evitar atraso, teria que sair com pelo menos quarenta minutos de antecedência. Tomou um banho e, com a água morna escorrendo pelo corpo, recordou-se de ter sonhado, mas não conseguia saber com o que. Após se secar, pegou o celular e desbloqueou a tela. As anotações da noite anterior estavam logo à sua frente, leu o que estava escrito e sentiu o já conhecido aperto em seu peito. Por mais que tentasse, mais uma vez não conseguiu lembrar o nome da vizinha.
***
Helen passou os dias seguintes se odiando por ter feito aquela cena com Matheus. Só voltou a vê-lo uma semana após o jantar. Samantha ficou preocupada, talvez por sentir-se culpada, e tinha ligando para ela a semana inteira para ver como estava. As ligações acabaram por deixá-las mais próximas. Além disso, Tatiana que estava louca para saber se ela já havia reencontrado o ex. Por enquanto, estava evitando responder as perguntas da amiga.
Não seria por muito tempo, apenas o suficiente para resolver o que iria dizer, inclusive a Matheus. Tentaria manter a melhor amiga longe de sua casa, pois ela se o visse, não entenderia o que estava acontecendo. E, francamente, não estava com paciência para explicar nada a ninguém. Pelo menos por enquanto. Qualquer atitude desse tipo poderia deixá-lo ainda mais confuso.
Para piorar, durante a semana havia encontrado o seu anel de noivado, enquanto mexia em suas coisas, e aquilo trouxe à tona recordações que vinha tentado esquecer.
Uma joia magnifica, pois Matheus alegou que merecia o seu melhor. Um anel solitário em ouro branco com vinte três pontos de diamantes; na parte interna, uma inscrição que a machucava sempre que lia: Neoqeav
"Nunca Esqueça O Quanto Eu Amo Você". Lembrou-se das palavras dele ao colocá-la em seu dedo.
Olhando aquilo, ficava difícil acreditar que o antigo noivo não fazia a menor ideia de quem ela era.
Chegou da academia por volta das oito da manhã. Entrou no elevador de cabeça baixa e revirando sua bolsa a procura das chaves de sua casa. Quando levantou o olhar, sua surpresa foi tamanha que, por um momento, ficou sem ar. Lá estava ele.
O silencio foi constrangedor e o homem parecia incomodado. Franzia a testa e apertava a placa de metal do cordão entre os dedos. O mais engraçado era que ela conhecia cada um daqueles gestos e o que significavam; no fundo, ainda era o mesmo cara por quem se apaixonara.
– Oi – finalmente resolveu quebrar o silencio, e ainda faltavam dez andares, mesmo que parecessem vinte.
– Oi. – Estava tenso, podia sentir pela maneira como a fitou. Então, Helen se lembrou de que queria pedir desculpas e essa era a oportunidade.
– É... Desculpe-me pelo outro dia. Bebi mais do que deveria – mentiu – Devo ter confundido você com outra pessoa.
– Ah, sim – disse, lembrando-se de que haviam se desentendido. Aquele devia ser o motivo, então. – Aquilo realmente foi estranho – estava blefando, claro, depois de um tempo convivendo com o esquecimento, havia aprendido algumas técnicas, mas ela devia ter bebido muito para tê-lo confundido com sei lá quem – Considere-se desculpada,... – Fechou os olhos tentando lembrar-se do nome dela – Droga – disse entre dentes – Perdão, mas qual seu nome mesmo?
– Helen, o meu nome é Helen. E a sua filhinha – disse tentando mudar de assunto –, como vai? Como é mesmo o nome dela?
– Está bem, obrigada, nome dela é... – Ele puxou a manga da camiseta e virou o punho – Olivia. É isso.
Ela moveu a cabeça em um sinal afirmativo. Acidentalmente, suas chaves caíram no chão e ambos estenderam as mãos para pegá-las. No momento em que se tocaram, Helen pôde sentir cada terminação nervosa do seu corpo respondendo a ele. Foi dominada pela saudade.
– Helen, você está bem? – A voz dele soou preocupada e perigosamente perto de seu rosto.
– Ah... Claro. – gaguejou. Ele tinha uma pequena cicatriz no supercilio. Outra atrás da orelha esquerda descia até o pescoço. Talvez fosse esse o motivo de ele usar barba. Como ainda não tinha notado aquilo? Sentiu uma enorme vontade de tocá-las.
– Tem certeza? – Ele estendeu a mão para ajudá-la a levantar. – Você está ficando pálida – disse, tocando uma mecha ruiva dela e colocando atrás da orelha. Helen sentiu as pernas falharem, a profundidade do olhar a convidava para tantas coisas. Sentiu a mão livre dele segurar firme sua cintura, os corpos agora colados. O coração de Matheus batia descompassado, no mesmo ritmo do dela, e seu cheiro a embriagou. Aquele sempre fora o lugar que desejou estar, ela pensou, inclinando a cabeça e fechando os olhos, um leve sorriso brincou nos lábios dela. A mão dele traçou o desenho do sorriso de Helen, lhe trazendo pequenos arrepios pelo corpo.
Não faça isso, por favor. Por favor. Aquela voz dentro de sua cabeça implorava. Ele não podia simplesmente ter esquecido tudo o que viveram juntos, de alguma maneira tinha que se lembrar dela.
O azul dos olhos dele a inundava, a mão dela se agarrava a sua camiseta como se dependesse daquilo para manter-se de pé. Sentiu a barba bem cuidada fazendo cocegas em seu rosto. Ele inalou o cheiro da mulher, levando a mão à nuca dela. Seus lábios, então, se encontraram em um beijo desesperado. Naquele milésimo de segundo, Matheus soube quem ela havia sido em sua vida.
A porta do elevador se abriu, chegando ao andar dele, que se afastou cedo demais e sem maiores explicações.
Helen levou a mão aos lábios. Quem era aquele homem que a tinha beijado com tanto desespero? Ele parecia outra pessoa e não ia conseguir evitar ficar perto dele. Não depois daquele beijo que lhe tirou o chão.
Droga! A quem queria enganar? Sempre foi ele e ninguém poderia mudar isso.
O telefone tocou assim que abriu a porta de casa. Era seu pai querendo notícias.
"Nem queira saber", cogitou por um momento dar essa resposta, mas quando abriu a boca, o que saiu foi outra coisa.
– Papai, estou ótima. – Tirando a parte do elevador, quis acrescentar. – E o senhor?
– Ah, estou muito bem. Já te contei que arrumei uma namorada?
– Não! – disse sem nenhuma surpresa. O homem havia cismado que iria casar de novo, mesmo que as filhas não quisessem – Papai, por favor, não inventa.
– Ah! Você está com ciúmes de mim? Filha, preciso de alguém para cuidar de mim – disse entre risos – e já vou avisando que vou me casar.
– Mas, papai, Daiane não está cuidando bem de você? – disse, referindo-se à enfermeira que cuidava dele – Helena já sabe disso?
– Filha, não se trata disso. Casar é saber que você vai ter alguém com quem compartilhar suas alegrias e tristezas; é ter o seu melhor amigo, companheiro e amante em uma única pessoa. – Parou de ouvir o pai e começou a pensar si mesma. Ele usava os mesmos argumentos que anos antes ela tinha usado para convencê-lo de que deveria aceitar seu casamento com Matheus.
Conversaram um pouco em pouco tempo estavam se despedindo. E ela ficou novamente sozinha com seus pensamentos.
As palavras de seu pai não saiam de sua cabeça. "Casar é saber que você vai ter alguém com quem compartilhar suas alegrias e tristezas; é ter o seu melhor amigo, companheiro e amante em uma única pessoa.".
Foi sempre assim que quis o ex-noivo, ao seu lado, compartilhando uma vida juntos. E o novo Matheus arrancava sensações e a fazia sentir coisas que nem mesmo ela sabia sentir.
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