O Tempo em Nossas Mãos
Fernando perdeu a comunicação com os companheiros por alguns minutos, poucos minutos desesperadores, mas o rádio logo voltou a emitir os ruídos das vozes deles.
— Fernando! — chamou o outro do outro lado do rádio.
— Estou ouvindo, Pedro. — Respondeu ele.
— Nós subimos na carga há um tempo.
— Afirmativo, vou transportar vocês para a sala principal. A situação está crítica?
— Estava melhor, amigo. — falou o outro antes de cortar a comunicação.
Pedro e Túlio estavam em uma plataforma laranja com cabos soltos das placas de metal do chão, atrás deles estava o vasto espaço e parte da estrutura megalomaníaca que só eles três estavam monitorando. Seus trajes brancos se destacavam na escuridão, mas o que estava mais chamando a atenção era a cara de preocupado dos dois, não era para menos, qual seria sua cara quando você visse uma coisa inexplicável, com “i” maiúsculo? Seria a mesma deles.
Uma comporta branca abre ao meio e a plataforma laranja vai seguindo um rumo retilíneo. O túnel era feito do mesmo material esbranquiçado daquele castelo de metal no meio do espaço, mas ao chegar no final, a parte que seria a recepção da carga estava desmontada, deixando um espaço de quase dois metros para eles pularem. Não seria problema em outros dias mais simples.
— Você não arrumou aqui, Túlio? — Quase engoliu o menino ao seu lado.
— Vou arrumar. — falou quase como se fosse um suspiro. — Nós jogaremos... isso, daqui mesmo?
O resmunguento deu de ombros. Os dois tinham, em palavras mais cruas, embrulhado aquela coisa com uma mortalha, que deixava a aparência daquilo mais nebulosa do que já era. Ambos usaram as forças que tinham para jogar aquela coisa para além da borda e ficar perto da porta. Pedro era um homem mais velho, mas que tinha músculos forjados no trabalho braçal de sua antiga vida, e Túlio é um jovem magro com problemas na coluna. Basicamente, só o velho estava fazendo algum trabalho, mas por sorte eles conseguiram cumprir o objetivo.
Fernando recebe os dois com apreensão, não estava entendendo o alarde que teve doze minutos atrás, mas não entendeu mais ainda a bolsa plástica.
— Está aqui? — olha para Pedro.
— Pensei em jogar no vácuo essa coisa, mas me impediram. — Alfinetou.
— Vamos levar para a pesquisa. — respondeu Fernando, que teve um balanço de cabeça afirmativo dos dois.
Quando os três carregam o corpo para o destino final, ou um dos destinos antes do término, todos sentem suas mãos tocarem um nada, mas ao mesmo tempo um todo. O ar estava mais puro para eles, mas, ao mesmo tempo, mais pútrido, isso era impossível porque tudo ali estava extremamente novo, os velhos materiais estavam já na sucata que viraria o combustível do núcleo daquela máquina gigante que aqueles três estavam chamando de “casa”. Na verdade, ali não era para ser uma casa, nem era para eles terem passado tanto tempo ali, mas a vida está tão bagunçada que nada mais está nos eixos, principalmente para pessoas como eles, de uma classe social baixa.
Na sala de pesquisas tinha materiais para mexer com tecidos orgânicos, mas era difícil de alguém se machucar muito sério. Então, eles usavam mais como depósito das coisas importantes para o presente. Para a sorte deles, tinham uma outra parte separada por uma parede com um vidro em formato retangular. A coisa foi encaixada em uma mesa e o plástico que a envolvia foi logo retirado. Túlio, o único com alguma especialidade em Biologia, mais precisamente botânica, usava seus conhecimentos e muita resistência mental para não se perder em pensamentos nebulosos que nem pareciam se alinhar nem com sua própria vida naquele momento.
Os outros dois foram para a outra parte da sala ligar os maquinários que o jovem estava pedindo para eles acionarem. Durante a tarefa:
— Nós estávamos na ala das plantas, o menino trabalhava no relatório delas e eu revisava o sistema de temperatura da sala. Até que apareceu a coisa na porta, pensei que era mais uma vez as miragens que víamos, mas estava tão real que, quando o novato descarregou os fusíveis nela, ela imobilizou.
— Ela? — estranhou a especificidade.
— Ela, ele, isso, aquilo, minha pomba, tanto faz! — ficou irritado. — Só sei que voltaram essas alucinações de espaço, aquela coisa falou tanta coisa que falou nada. — Pedro olha pela janela para aquela coisa.
• •
Três horas passaram, Túlio usou as ferramentas e observou imagináveis coisas. Ele chama os outros dois, que se espalharam pela nave quando lembraram que tinham mais cantos para serem resolvidos, para falar dos resultados dos experimentos.
— Fale. — disse Fernando, fechando a porta atrás dele que dava ao corredor que tinha passagem para a ala de pesquisa.
— Então, vocês vão ver coisas no mínimo... curiosas.
Túlio mostra os dados coletados por ele durante esse período: as células da coisa estavam em senescência, mas, em outros instantes, voltava a dividir e substituir, depois voltava ao primeiro processo e repetia o ciclo incessantemente. Ou seja, ele explicou, ao mesmo tempo que elas estavam envelhecendo ao ponto de morrerem, elas voltavam a metabolizar em poucos segundos.
— Essa coisa está morta?
— Sim, mas estará viva em mais uns instantes, depois morrerá novamente.
Além disso, Túlio explica que tudo com que ela interagia estava entrando nesse mesmo ciclo, então ele mostra fios de cabelo brancos na sua nuca e sua barba crescendo, a mesma que ele tirou logo quando acordou. Os dois se espantam, mas não parariam por ali. O cientista mostra uma maçã que estava podre e deveria ser descartada no lixo orgânico, agora parecia que estava na macieira.
— Não deveríamos ter mexido nessa coisa — falou o mais velho, arrependido.
— O que vamos fazer com isso? — perguntou Túlio.
— Enviaremos uma atualização para a base assim que abrir o tempo de envio de hoje. Daqui a sete horas, depois irão vir pegar.
Os três desviam o olhar para o mesmo canto: o da maca com aquela coisa. Não sabiam se estavam com uma bomba relógio ou uma ferramenta que vai beneficiar a humanidade. Talvez não fosse para ajudar todos os humanos, talvez seria melhor guardar para si, ou seria melhor matar isso? Ou entregar para os outros mais capacitados?
— Companheiros, — Túlio chamou a atenção dos amigos — iremos usar isso, não é?
— Não. Não vamos nem usar hoje e nem nunca. — Disse Fernando.
— Mas, — continuou o mais novo da equipe — isso poderá ser um elemento importante para nós, podemos mudar eventos do passado péssimos para a nossa história.
— Você está falando “nossa” em qual sentido?
— Não sei em qual sentido você quer que eu fale.
— Não quero que você invente de usar isso como meio para suas fantasias.
Pedro observava a conversa, tentando formular uma forma de externar sua opinião, a qual vai ferir os dois amigos.
— Devíamos ter matado essa coisa. — Rasgou a conversa, deixando aquele cômodo em silêncio por minutos. Ele desejou ter matado antes, mas, pelos seus olhos, transbordava a vontade de matar naquele momento mesmo e os outros dois perceberam.
Túlio fica irritado, desperdiçar aquela coisa seria a mesma coisa que jogar fora a cura dos maiores problemas da vida deles, eles se conheciam o bastante para saber os tons azuis da vida de cada. Já Fernando demonstrou ser contra, para ele, era para entregar aquilo para os superiores, não seria justo com os outros decidir algo tão importante sendo só três de milhares.
Eles imaginavam que o poder daquilo iria muito além de ser imortal, e estavam certos.
Então, o mais velho, Pedro, sai de perto deles para voltar a trabalhar na área de combustíveis. Já os dois iam para o sentido oposto, ambos trabalhariam juntos na sala de controle, mesmo com essa discordância que escalaria mais ainda no futuro.
• •
Fernando estava com metade de seu corpo enfiada no duto examinado, fazendo seus últimos reparos. Embaixo da escada estava Túlio recolhendo parafusos avariados e outros velhos demais para sustentar aquela cobra metálica que percorria todo o castelo onde eles viviam.
— Você concordará comigo ainda sobre isso.
— Pela oitava vez, Túlio, — ecoava sua voz pelo túnel — claro que passa esse tipo de pensamento, mas não quer dizer que seja uma boa ideia. — O mais novo estava tentando persuadir Fernando fazia quase meia hora, mas não conseguiu até agora.
— Tá, e você irá entregar para os nossos superiores porque saberão fazer algo com Ela.
Fernando desce os degraus.
— Eles são qualificados. Você precisa se acalmar.
— E a gente? — perguntou. — Nós seremos qualificados para tomarmos nossas próprias decisões?
Fernando sabia o que seu companheiro queria falar, qual era sua intenção. Os três foram obrigados a trabalhar naquela estação, eles estão sujeitos a qualquer tipo de perigo e ninguém daria a mínima. Eles estão ali porque nenhum daqueles amontoados de metal poderia ficar sem nenhum operador, mesmo esse sendo tão medíocre quanto eles.
— Droga, não tem a Chave WQ, quem ficou com ela?
— Pedro. — E sem mais, ele vai atrás do velho musculoso a bordo.
Seus pensamentos o guiam pelo corredor, tinha uma grande distância até onde o terceiro passageiro estava, se pudesse usar o outro caminho, mas queria passar por ali. Na verdade, ele queria entrar ali. Olhou a porta fechada da sala de pesquisas com desejo de adentrar, mas precisava resistir e focar. Se virou para o corredor novamente e deu mais meia dúzia de passos, até que do cômodo sai alguém.
Era Pedro. Junto com uma caixa de ferramentas que estava suja de um líquido viscoso verde. E aquela cor, aquela matéria, fez Túlio achar algo.
— EI! — gritou o botânico. Pedro ainda não tinha visto Túlio e se assustou com aquele grito. — Você se arrependerá — ele empurra o mais velho e aperta o botão adjacente para abrir a porta.
A sala estava como antes, suja, mas estava com algo a mais no chão, uma viscosidade que grudava em seu pé, parecendo geleia, e na maca improvisada estava o corpo daquilo, ou o que restava de sua carcaça totalmente perfurada de um lado ao outro. Entrou em desespero, pensou que a morte tinha alcançado aquele ser de tempo, mas viu a sua recomposição voltar a funcionar.
— É, não consegui acabar com o trabalho por aqui. — falou Pedro, em contraluz do corredor.
— IMBECIL! — exclamou mais uma vez, queria espancar aquele velho, pode ter danificado Aquilo de alguma forma, pode ter acabado com a sua chance de resolver seus problemas, mas Pedro resolveu o condenar para aquela situação para sempre.
Túlio precisava... precisava se livrar dele. Ele o empurra para o lado e passa correndo pelo corredor, apertando botões de emergência nas paredes. Aquilo ajudaria no tempo dele, Pedro precisaria correr metade desse corredor e ir pelo outro mais curto, seria tempo o bastante para convencer Fernando.
Já do outro lado, estava um homem experiente, confuso.
— O que aconteceu com ele?
Ele tinha acabado de consertar um dos motores que dava energia para o sistema de regulação da temperatura ambiente, deveria ser um trabalho mais fácil, mas ele teve muita dificuldade enquanto mexia com as placas metálicas. Pedro passou ali perto para reunir as ferramentas que estavam naquela sala. Logo depois de uns minutos, teve esse encontro estranho com Túlio.
Ele estava estranho, na verdade sempre foi. Mas aquele momento evidenciava sua bizarrice do momento, talvez foi afetado pela vastidão do espaço, isso era bem mais normal do que deveria. O jovem tinha discursos e opiniões divergentes, sempre sendo extremista em alguns casos. O que Pedro achava uma bomba-relógio, a qualquer momento ele poderia tomar o lado de alguma revolução colonial, e perderiam mais um homem por causa disso.
Suspirou e voltou vários passos pelo corredor até entrar na curva da esquerda e depois virar mais uma vez na mesma direção, e seguiu por esse corredor adjacente com o corredor “principal”.
Seus passos emitiam os sons metálicos que se misturavam com sons do seu passado, um que ele estava sozinho em sua casa do interior. A mata emitia um cheiro refrescante, o sol queimava sua pele, diferente do presente – mesmo que estivesse mais perto dessa grande estrela, não era a mesma coisa -, e os pássaros, ah, os pássaros... eles cantavam e cantavam. Cantavam sons metálicos.
Tinha saudades desses tempos mais simples, uma vida distante que ele abandonou por medo de não conseguir se orgulhar dele mesmo. Seu eu interior não conseguia se confortar, então seguiu essa voz, mesmo não sendo a voz da razão. Essa estava adormecida naquela decisão.
Um ruído rompe sua imaginação e volta a encarar a realidade. O mais velho achou que aquilo foi alguém errando a mão no conserto de algum maquinário. Porém, não podia estar mais errado.
Chegando à porta do lugar de onde veio aquele barulho, se deparou com uma cena de horror. Com o corpo em choque, estava Fernando de joelhos, com a parte superior do corpo jogada para frente, sua cabeça suja de sangue, o seu próprio, virada para a porta, olhando para o recém-chegado. E quase em cima estava Túlio com um martelo ensanguentado, não com seu sangue.
Há um tempo atrás, quando o mais jovem conseguiu fechar as portas que podia, ele entrou na sala esbaforido, buscando ajuda do único que estava são naquele momento. Ele clamava para que ele o ajudasse a se livrar de Pedro.
— Você está doido? — Disse Fernando, tentando buscar algum resquício de sanidade daquele na sua frente.
Túlio explicava e reexplicava o que ele tinha visto, o outro negava a ocorrência, não era do feitio de Pedro fazer aquele movimento precipitado. O mais jovem falava que eles deveriam fazer algo para impedi-lo antes que ele enlouqueça e mate os dois. Fernando nega e vai atrás do computador para extrair as últimas gravações das câmeras de segurança.
Então, ele começou a acessar as gravações de quarenta minutos atrás. Túlio estava atrás dele, esperando ser processado o vídeo, mas o botânico começou a inspirar mais forte, o bastante para chegar na sua nuca. Até que finalmente apareceram imagens do corredor principal e da sala de cirurgia improvisada. Estava tudo normal, estava o ser totalmente imóvel até que ele é abraçado por alguém que o acolhe como se fosse uma dádiva dos deuses.
NÃO. Ele era um Deus, um esquecido pela vastidão do universo. E por causa desse negligenciamento, aqueles pobres humanos cairiam na espiral infinita dele. A morte e a vida estavam coexistindo desde a chegada daquela coisa. A pessoa ouve passos ecoando no corredor principal, então ele para de agradecer aquela dádiva, saindo da sala.
Ele se deparou com Pedro e começou a falar letras, fonemas e suspirou ares diferentes do que podia ser compreendido, e depois disso fugiu, fechando todas as portas.
Fernando fez o que pode o mais rápido possível, mandou um pedido de ajuda em uma linha de transmissão de emergência, demoraria para chegar ajuda médica para ver o que ocorreu com seu colega mais jovem, mas seria mais rápido do que a linha normal.
Fernando olha para trás a tempo de desviar de uma martelada, que acaba atingindo o computador e o danificando. Mas esse não seria o último movimento dele. Perplexo, como se fosse um coelho na frente de um lobo sedento, ele tem sua cabeça rachada por Túlio em uma única martelada.
O caçador tinha matado sua presa, mas não era Túlio que era o caçador, não o verdadeiro. A sombra parecia encará-lo, não era o suficiente. Ainda faltava outro para ser condenado.
Assustado e sem chão, era assim que o homem mais velho estava se sentindo. Aquela cena não era nenhuma das que ele poderia imaginar naquele mar de acasos. Mas, um fator embaralhou as peças o bastante para aquilo tudo ficar impossível para sua mente pequena. Aquela coisa estava afetando sua realidade, os números e letras se esvaiam na inexistência.
Túlio compreendia tudo, ele tinha o dever de se libertar daquele lugar, precisava libertar Ele, não ele. Na verdade, esses pronomes eram outra prisão, seria mais correto “Nós”. Uma única unidade.
— O que você fez?
— Nós iremos fazer a libertação sua, Pedro.
Não demorou muito para o mais velho ligar os pontos. E, talvez por causa da adrenalina crescente, ele recuou rapidamente após uma tentativa de Túlio martelar seu crânio, passando bem pela sua frente. Mesmo tendo uma massa corporal maior, ele não tinha tanta certeza se só os músculos seriam suficientes.
Pedro recuou o mais rápido possível, indo em direção ao corredor principal atrás do responsável por aquela loucura. Mas, Aquilo surgiu a vinte passos, estava como tinha o encontrado no início disso tudo, ele estava intocável. Então, quando começou a deslumbrar, ele teve sua existência congelada.
Sua vida bucólica era tudo para ele em uma vida passada, agora simplesmente não existia. Na verdade, tudo parecia tão distante no seu tempo que parecia não existir mais. Então ele se engasgou com sua tristeza, faltava algo, mas isso estava trancado em algum lugar. Ele encarava o tempo, e Aquilo sorriu, ou pareceu isso, enquanto tirava o sentido da sua linha do tempo.
O quão estúpido eles foram ao menos cogitarem manipular o que eles não conseguiam tocar. Como eles poderiam mudar o passado, se ele já é seu presente e seu futuro? Não tem como mudar a trajetória de algo que é incontível para corpos simples como eles. E mesmo quando é perceptível o destino, ele é imutável. O tempo não era deles, não é nosso. Mas sua crença de mutabilidade fez aqueles caírem.
Então, ele teve sua cabeça esmagada com um golpe de cima para baixo, que fez com que seu corpo tombasse para frente e espalhasse mais sangue e uma massa branca pelo chão gélido. Quando acabou, Túlio não tinha outra escolha, só tinha que obedecer. Ele começou a se atingir mortalmente com o martelo até não conseguir mais manusear. Mesmo assim, ele ainda estava vivo.
Túlio era o único da área das ciências biológicas, mas era um operário daquela máquina que a humanidade virou. Colonização e destruição eram somente aquilo que eles faziam. Ele não desejava isso, não enquanto estivesse sendo um dos dedos que arrancavam as raízes da enorme árvore que era a vida.
Porém, Ele estava ali. Aquilo estava. O antigo Nós. Estava lá. Só para fazer o jovem definhar cem anos, olhando para o teto imóvel, ele vivia todos aqueles anos em segundos.
Assim, o tempo escapou de nossas mãos. E acabou a história do passado, arrependido do que fez, do presente, figurante no fluxo temporal, e do futuro, mais preocupado com o próprio passado do que com ele mesmo.
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