O CHAMADO
O CHAMADO
Liza
Tomada de adrenalina, cheguei a sentir enjoo pela expectativa. Era difí- cil ter medo, se algo muito pior acontecia dentro de mim, mas se o recado fosse verdade, eu enfim descobriria as histórias que Adrian não me revelava para me proteger.
O problema era óbvio, eu não sabia onde ficava o túmulo do anjo de pra- ta. E não podia andar a esmo em um cemitério, horas antes do Luau de noivado dos meus amigos.
Mesmo assim, entrei no primeiro táxi e pedi: — Me leve para o Jardim dos Anjos.
◆◆◆
Ethan
Confirmou suas suspeitas após fitar os túmulos vazios dos pais de Liza, logo abaixo do anjo de prata. Claro que era isso. Por mais que Olaf tentasse ocultar os seus pensamentos de Ethan, nos momentos de raiva, ele os deixava passar. E Ethan descobriu que Olaf os sepultou ali em memória, para que nunca pertencessem a sua grande inimiga, Ivanka. Morte.
Ele mal acreditava nas próprias conclusões, mas lá estava, bem diante de seus olhos:
Jazem aqui em memória,
Paul Joseph Brown & Marie Elizabeth Ninot
A mãe de Liza possuía o mesmo sobrenome de sua mãe. Então Ethan finalmente compreendeu.
O ritual falhou naquela noite porque não era Raquel o elo de sangue. Era ele o elo necessário.
Eram três afinal.
Era esse o segredo que seu pai diria a Liza, antes de Olaf forçá-lo a se suicidar.
Ethan fitou a marca dos três Vs retorcidos que formavam um triscle e se uniam no meio. O símbolo nascido em seu pulso, no momento de um dos vários homicídios cometidos pelas suas mãos, sob o comando de Olaf.
Teria Liza a mesma marca?
◆◆◆
Liza
Saí do carro e me vi diante dos imponentes portões de ferro do lugar. Então foi aqui, onde minha memória se perdeu.
Acima das grades da entrada, duas estátuas brancas de crianças em ta-
manho real encaravam o chão e tinham metade do corpo para fora do portão, como se tentassem fugir dali. Pensar nisso me deu calafrios.
Abaixo delas, estavam os dizeres em letras de ferro:
"Mors ubi est vita, ibi nihil est, sic non est causa. Si qui veniunt, ut non modo suam invitat."
Minha mente traduziu o texto automaticamente.
Por que eu sei ler latim?
A morte habita onde há vida. Aqui jaz o nada para que não seja bem vinda.Ao entrares sem convite, só sairá ao pagar. Foste avisado.
O medo percorreu meu corpo, claramente provocado por uma lembrança que a mente foi incapaz de localizar. Ignorei o desejo de entender porque pude ler a inscrição e entrei no Jardim dos Anjos.
Deixei os instintos me guiarem, talvez assim eu conseguisse localizar o túmulo e encontrar aquele que me daria respostas.
◆◆◆
Ethan
Escreveu um recado sobre a pedra abaixo do túmulo e sentou para es- perar pela garota. À frente contemplava o horizonte de jazigos e o mar de névoa o cobrindo.
Liza poderia levar horas até encontrá-lo, o cemitério era gigante e as brumas confundiriam qualquer um ali. Ao menos havia deixado o recado, para o caso de ele não estar mais ali quando ela chegasse.
Imaginou se Olaf já suspeitava. Seu plano não podia falhar. Como Liza era essencial, Olaf não poderia matá-la para deixar o cemitério, logo sua esco- lha seria entre ela e Ethan. E como ele seria descartado, Olaf precisaria possuir outro corpo.
Uma silhueta apareceu debaixo de uma árvore a alguns metros de onde ele estava e se moveu de repente. Veio em sua direção na velocidade de um falcão. Ethan abaixou-se para desviar e um segundo depois ouviu uma risada abafada ao seu lado.
— Está com medo, Olaf?
Reconheceu o homem do pub. Aquele que lhe assustou por sua seme- lhança. Era como olhar um reflexo no espelho, eram idênticos, com exceção da frieza no olhar.
— Olaf não está aqui. Sou Ethan Ninot, o dono desse corpo.
— Prazer, Noah. O que você está fazendo aqui?
— Imagino que você já saiba — Ethan ignorou a mão estendida.
— Não vai conseguir, Ethan. Olaf não terá seu fim aqui, ainda não. Noah claramente se divertia com a situação, coçava o queixo e manti-
nha o sorriso de lado fixo. Após todas as atrocidades que Ethan presenciou de Olaf, calculou que deveria agir com cautela a respeito de Noah. Se possível, ele parecia ainda pior.
— Você sempre soube de mim? — tentou ganhar tempo para pensar. O que ele faria com a garota se ela chegasse ali?
— Está se sentindo abandonado, Ethan? Gostaria de ter desfrutado de mais tempo com sua família? — riu debochado — Quanto à Liza, não se preo- cupe. Ela tem outro papel nesse jogo, sua vida ainda não termina aqui — conti- nuou respondendo à pergunta que ele não havia manifestado.
— Isso é um jogo para você? Acha que a vida das pessoas é uma brin- cadeira? — Ethan gritou sem conseguir conter a raiva.
— Você já tirou uma vida, Ethan, não se faça de vítima. Detesto chorões. Mais ainda quando se trata de almas negras, como a sua.
— Almas negras?
— Quem sabe você não descobre o que isso significa? Em sua próxima vida — completou Noah à beira do tédio.
Ethan ouviu Olaf ruminar pensamentos sobre almas negras algumas vezes, mas sempre se esforçou para não escutar. Era repugnante enxergar os desejos perversos de sua mente.
Deu um passo hesitante à frente, se Noah não o deixaria contar a Liza, pelo menos cumpriria a outra parte do plano. Morrer.
E para isso teria que deixar o cemitério. Não podia voltar para aquela prisão infernal, não suportava mais ser o escravo de Olaf.
Ethan deu outro passo. Ansioso pelo fim. Pela liberdade do último sus- piro. Mas Noah o pegou por trás.
◆◆◆
Liza
Senti que dava voltas no mesmo lugar, a densa névoa branca me atrapa- lhava a enxergar as entradas para outras partes do cemitério e eu estava perden- do tempo demais me aproximando dos túmulos para ler os nomes.
Olhei para trás e sequer conseguia enxergar os portões, não sei o que esperava vindo até aqui. Uma leve crise de pânico ameaçava se manifestar. Ao redor, tudo parecia igual. Cinza, sem vida e coberto pelo mar branco de névoa.
Eu nunca vou conseguir encontrar desse jeito, que burrice!
Tropecei em alguma coisa e caí de joelhos no chão, levantei rapidamen- te e soltei um grito quando vi no que havia tropeçado.
◆◆◆
Ethan
Noah lhe estrangulava e em seu olhar assassino havia um brilho deter- minado. Talvez fosse esse o seu último momento. De qualquer maneira, não relutou. Era isso o que ele queria. Libertar-se de Olaf e atrapalhar seus planos.
Fechou os olhos e a ardência nos pulmões lhe avisou do fim, mas Noah afrouxou o aperto e Ethan caiu sentado, engasgado. Tossiu repetidamente quan- do voltou a respirar.
— Idiota! — sentiu o bico da bota de Noah no estômago. Agradeceu por estar com o estômago vazio. Com certeza teria vomitado.
◆◆◆
Liza
Cobri a boca após o grito e avaliei minhas chances de escapar, mas ela não se moveu um milímetro. Estava de pé, estática. Seu cabelo branco maltrata- do esvoaçava com o vento e as vestes eram um trapo bege, esfiapado e rasgado em várias partes.
Levantei-me do chão em câmera lenta, temendo que meus movimentos a levassem a fazer alguma coisa.
Não posso dizer que a senhora olhou para mim, porque no lugar de suas ór- bitas havia apenas a pele esticada e cinza, com linhas costuradas em pequenas cruzes.
A boca era igualmente costurada.
Espasmos elétricos desceram por minhas costas quando a senhora ele- vou o braço e apontou para a esquerda. Sua voz grave reverberou junto ao vento, mas os lábios permaneceram imóveis.
Vá e desvende o segredo.
Lentamente ela se virou e desceu por uma escada para dentro da terra.
Corri para o lado apontado por ela. Se é que havia alguma lógica em aceitar seu direcionamento.
Tropecei algumas vezes pelo caminho mas, ao que parecia, ela estava certa. Pude ver um anjo de prata reluzindo a distância.
Passados alguns metros pude enxergar dois homens. Um de pé e o outro sentado no chão, com o corpo projetado para a frente e as mãos cobrindo a bar- riga em um gesto de alguém tentando se proteger.
Aproximei-me sorrateiramente e me abaixei atrás de uma lápide. Es- tremeci ao reconhecê-los. Eles eram iguais. Observá-los juntos foi diferente. Aterrorizante.
O homem de pé seria Noah? O dono da voz macabra que despertou algo negro em mim aquela noite, na Casa do Mago.
Poderia ser Olaf, levando em conta o que ele fez em seguida.
Ele moveu sua perna direita para trás, me pareceu ser um impulso para chutar o outro no chão. Não havia como saber quem era quem apenas por olhar e, de qualquer maneira, eu não ficaria assistindo aquilo.
— Pare! — ouvi meu grito denunciar minha presença. Levantei-me e sai de trás da lápide que me protegia.
— Ora, ela chegou, finalmente. — o homem de pé cessou o movimento e cruzou os braços após exibir um sorriso cuja emoção estava ausente.
— Noah? — quis que minha voz tivesse soado mais firme quando lhe perguntei para ter certeza.
— Que bom que se recorda de mim, Liza. Afinal, pode ter perdido a memória, mas aposto que as visões lhe recordam constantemente quem você é de verdade.
— Não vou cair no seu joguinho. E deixe ele em paz! — Apontei o ho- mem no chão cobrindo o estômago. Algo em seu semblante me dizia que aquele não era Olaf. Agachei-me para olhar em seu rosto:
— Ethan?
Ele me fitou assustado e aquiesceu. Parecia estar com dor demais para falar.
— Mas...como? Você está livre? — me distraí por um instante com essa suposição, era bom demais para ser verdade. Se Ethan estava livre, o que teria acontecido com Olaf? Estaríamos eu e minha irmã livres também?
Liza, eu sou... — ele começou a falar mas sua voz soou engasgada, Ethan de repente começou a sufocar. Levou suas mãos à garganta para se liber- tar do aperto invisível. O som agoniante de seu engasgo ecoou no cemitério. Subi os olhos e vi Noah com uma mão apontada em sua direção e as íris brilhan- do na cor púrpura.
Levantei-me e fui até Noah, que estava concentrado demais em matar
Ethan sufocado. Pulei em suas costas, num gesto incontrolado de pura coragem, e apertei seu pescoço.
— Deixa ele em paz!
Mas foi inútil. Escutei apenas a tosse de Ethan algumas vezes antes que voltasse a engasgar. Noah me deu uma cotovelada na costela. Caí estatelada e bati as costas em cima de uma lápide no chão. A dor latejante me fez gritar.
Ainda tentei chutar Noah do chão para atrapalhá-lo, mas ele se desven- cilhou. Segundos antes de Ethan desmaiar, ouvi sua voz ecoar no vento:
— Ethan... Ni...not — e em seguida, veio o baque seco de seu corpo caindo no chão.
Estremeci. Ele disse Ni...not? Não tive tempo para raciocinar, ouvi os passos de Noah próximos de mim. Era a minha vez e ele era muito mais forte, eu não teria chances.
Ainda deitada no chão, girei meu corpo para a direita e lhe dei as costas. A minha costela latejava e eu não conseguiria correr.
Um segundo antes de Noah me erguer do chão pelos cabelos li três pa- lavras em garrancho, arranhadas na lápide cinza do anjo de prata:
"Nós somos três."
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Gennnte, alguém de queixo caído aí?
Então preparem-se, porque tem mais um a seguir!
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