MALDIÇÕES
MALDIÇÕES
Liza
Pelo reflexo estilhaçado, observei a figura de Toffee pular no pescoço de Olaf, que imediatamente se transfigurou em outra forma.
Macabra.
O corpo do homem que ele antes ocupava jazia inerte no chão ao meu lado.
Meu Deus! Será que teria morrido?
Seu pescoço sangrava onde Toffee o atacou e formava uma poça ao lado de sua cabeça.
Lutei para raciocinar. Tinha que arrumar uma forma de sair dali, antes que Olaf se voltasse para mim novamente.
Mas não podia abandonar aquele homem. Não o deixaria ali para morrer.
E se ele tivesse alguma chance de sobreviver?
O sangue escorria por meu rosto, pressionei o pulso entre as sobrancelhas, na tentativa de estancar o fluxo.
Girei o corpo ainda no chão e reuni coragem. Olhei para trás.
Adrian assumiu sua forma original, suas asas abertas batiam no ar e o elevavam alguns metros do chão. De tão grandes, chegavam a resvalar na parede do meu quarto.
Ele parecia furioso. Sua expressão não trazia nenhum resquício do Adrian tranquilo ao qual estava habituada. Exalava fúria e determinação.
Eu, por outro lado, se encarasse o que ele fitava agora, provavelmente tremeria da cabeça aos pés.
Olaf.
Não sei dizer o que exatamente seria aquilo.
Sua sombra pairava no ar. O que imaginei serem os braços estavam elevados para o lado. Me fez pensar em como seria um anjo de asas abertas, se fosse negro e sem corpo, feito apenas de sombra e névoa escura, semelhantes a ossos.
A forma de Olaf se esticou em dezenas de tiras. E, de repente, a sombra e a névoa envolveram Adrian.
As tiras rastejavam por sua pele como serpentes, envolviam seus membros e o apertavam em amarras. Onde tocavam, a pele de Adrian se cortava e filetes de sangue escorriam.
Seus gritos de agonia me aterrorizaram.
Tornei-me um misto de ódio, repulsa e desejo de vingança.
Adrian começava a desaparecer debaixo da sombra que o sufocava e o dilacerava. Seus membros, cada vez mais cobertos das tiras negras que serpenteavam por ele e o apertavam, rasgavam. As penas de suas asas bege malhadas de caramelo caíam lentamente. Uma atrás da outra, se amontoavam no chão.
O poder das chamas se manifestou, inflamado pelo meu ódio. Se eu não fizesse nada, Adrian poderia morrer.
Deixei o calor me inundar por inteira. O senti fluir. Quente. Vivo. Pulsante.
A força cresceu assustadoramente dentro de mim. Mas a deixei surgir.
Destruiria Olaf.
Agora.
Levantei as mãos espalmadas para a frente e fechei os olhos.
Eu e o fogo éramos um. Ardente. Forte. Letal.
E de repente. Perdi o ar.
Um braço envolveu meu pescoço e outro movimento empurrou minha nuca para frente.
O homem. Só podia ser o homem caído atrás de mim.
Minha garganta se comprimiu. As chamas ameaçavam me consumir por dentro.
Só haveria uma forma de me livrar do aperto.
Se eu as libertasse no homem que apertava minha garganta.
Eu não podia fazer aquilo. Não podia matá-lo.
No que eu me transformei? Sou mesmo uma assassina?
Por favor. Eu não quero. Eu não posso matar de novo. De novo, não.
Cravei as unhas em seu braço com toda a força que me restava. Ele intensificou o aperto sufocante.
O suor escorria de mim, se misturava com o sangue de meu rosto e empapava minha roupa.
As chamas brigavam para sair e eu lutava para contê-las.
Minha visão escureceu e mergulhei em um deserto vermelho. Labaredas dançantes se moviam no horizonte.
Eu morri?
Por que ainda sinto falta de ar?
Busquei alguma explicação ao redor e me deparei com um sorriso ao meu lado.
Noah.
— Você vai morrer, Liza. Mate o desgraçado.
— Não! — era isso o que ele queria. Noah pretendia selar a previsão da Casa do Mago.
— Então volte. E assista Adrian falecer.
— É você, não é Noah? Você está ajudando Olaf. Eu sei que Adrian é mais poderoso.
— Você sabe de muito pouco, Liza.
— Por que Noah? Você não é meu irmão? Me ajude!
— Eu sou muitas coisas. E já ajudei você. Aceite a previsão, Liza. Não há como escapar de si mesmo.
— Não!
O grito ecoou nos meus ouvidos quando me vi de volta ao quarto.
Mais uma vez, percebi que não havia escolha. Passaria o resto da vida assim.
Tendo que causar a morte de alguém por minhas mãos para evitar que Morte arrancasse alguém de mim.
Segurei os braços do homem e expeli o fogo. O som de sua pele estalando me deixou enjoada. O homem gritou e me largou.
O cheiro de tecido queimado invadiu o ambiente.
Virei-me para o homem que lutava para apagar as chamas do próprio corpo. Precisava matá-lo. Somente se ele morresse, Adrian viveria.
— Não, Liza!
Adrian gritou atrás de mim e uma explosão de luz me cegou. Uma forte luz branca invadiu o recinto.
Senti o jato de fogo deixar meu braço. O poder flamejante que me consumia foi subitamente substituído pela calma.
A mesma explosão me elevou no ar.
Meu corpo atravessou um túnel desconexo em alta velocidade e parou.
Ao ver onde estávamos, resfoleguei.
Pessoas andavam normalmente empurrando malas de rodinha. As portas pantográficas do aeroporto abriam e fechavam. O ar saiu bruto de minha boca. Apoiei as mãos nos joelhos.
Adrian acariciou meu rosto, e puxou meu queixo suavemente para cima.
Ele arregalou os olhos e me encarou de boca aberta antes de perguntar totalmente sem voz:
— Seus olhos, Liza. O que aconteceu naquela praia?
— Agora não, Adrian. E você saberia, se não tivesse me abandonado.
— Eu acabei de te salvar. E ainda duvida de mim?
— Talvez fosse melhor ter deixado Olaf acabar comigo.
Adrian suspirou parecendo cansado e me apertou em seus braços quentes. Inspirei com força, detestava a forma como ele me deixava segura.
Massageei a nuca com a mão esquerda enquanto retomava o fôlego, depois enxuguei a testa suja de suor e sangue.
Estranhei a ardência que senti na pele do pulso, e engoli o grito ao ver a marca da pele rasgada.
Os cortes desenhavam dois Vs retorcidos que se uniam ao centro. Bastaria mais um corte, e o terceiro V, formaria um triscle. Exatamente como Noah previu, na Casa do Mago:
"Quando o terceiro V em seu pulso se fechar, um dos dois morrerá. Pois ambas as almas não podem coexistir. O negro sempre absorverá aquele de luz."
E finalmente aceitei o destino.
Eu preciso morrer.
♦♦♦
Raquel
Limpou a boca com o dorso da mão e girou as pernas de volta para dentro do carro.
— Vamos logo — ordenou ao motorista.
O taxista retomou o caminho pela estrada sinuosa.
Apesar do estômago completamente vazio, a verdade daquela página se contorcia lá dentro, virava suas entranhas do avesso.
Como se não bastasse perder os pais daquela forma, ter uma irmã com falta de memória e o noivo morto, apontado por assassinato, ela perdia a própria vida. Se perdia de si. Pois toda a verdade que conhecia, era mentira.
Releu as duras palavras, na esperança de que seus olhos tivessem entendido errado na primeira vez:
"20/12/1980.
Baltimore — Maryland
20:19
Providenciamos a adoção do bebê abandonado e a batizamos de Raquel.
A pobrezinha tinha um mês quando foi largada em nossa porta.
Temos duas filhas agora.
Fico me perguntando o que prova que um relacionamento é sólido.
Sempre ouvi falar em obstáculos, superação.
Nosso caso envolve isso, mas existe algo mais poderoso.
Segredos.
Naquela madrugada nosso vínculo se fortaleceu.
Paul me contou receoso sobre tudo. Disse que a mulher desapareceu e ele nunca imaginou que estivesse grávida.
Confesso, doeu.
Muito.
Mas a culpa era minha. Se eu não o tivesse abandonado ele não teria se envolvido com outra.
Oh Deus!
Se fosse apenas isso que tivesse acontecido, seria mais simples.
Mas Paul sofreu do mesmo mal que eu.
Seduzido por vozes no escuro, seguidas do despertar desnorteado no dia seguinte e o vislumbre de um rosto, ele me disse.
E isso era tudo o que sabia sobre a mãe de Raquel.
A mulher tinha olhos púrpura e cabelos vermelhos.
Qual a ligação existente nisso?
Como poderíamos eu e ele sermos violados de maneira tão semelhante?"
Após reler, Raquel concluiu que a verdade soava tão incontestável quanto a dor ardente em sua garganta. Seus olhos queimaram, lutou para conter o soluço e engasgou com o próprio choro. Enxugou da página a lágrima que pingou na folha seguinte, deixando uma marca borrada da sua tristeza.
"07/05/1981.
Baltimore — Maryland
07:16
Paul fez uma viagem a trabalho no último final de semana e voltou perturbado.
Um de seus projetos voluntários.
Precisei insistir muito para que me contasse.
Ao finalmente ouvir, desejei voltar atrás.
Ele encontrou a ruiva em NY.
Em uma visita ao Orfanato Santos Anjos, se assustou ao vê-la.
Me disse que parecia ainda mais louca e obsessiva que antes.
A maldita mulher que aterrorizava minha paz de espírito das duas piores formas possíveis.
Por se envolver com meu marido. E por ter gerado minha filha.
Pelos detalhes que Paul me cedeu entre lágrimas desesperadas, essa mulher era tão vil e poluída quanto a sombra que me possuíra.
Teria Raquel algo obscuro escondido em sua alma? Como Liza?
Senhor! Por que amaldiçoou essa família?"
Raquel abriu o vidro automático da janela do carro, esperava que o vento frio adormecesse suas emoções. Esticou o rosto para fora e deixou o vento cortante secar suas lágrimas.
Sentia-se abandonada. Triste. Furiosa.
Por que sua mãe escondeu isso dela? Por que seus pais tinham que desaparecer?
Por que Liza sempre ficava com tudo?
Era sempre ela. A melhor aluna, a responsável, a queridinha dos seus pais, a coitadinha amaldiçoada.
Mas agora ela entendia essa preferência de seus pais.
Liza era sempre a coitada e a mãe de Raquel, era outra. Dividiam apenas o mesmo pai.
Não compreendeu nada daquilo.
Como teria algo obscuro em sua alma?
Como seu pai e sua mãe teriam sido possuídos e gerado filhos?
Não sabia o que faria de sua vida de agora em diante. Se dedicaria a desvendar essa história.
Ficar chorando pelos cantos com pena de si mesma era uma atitude típica de Liza. Raquel sempre foi mais forte, independente. E Liza ainda conquistou Nathaniel.
O homem que Raquel conheceu antes dela, o homem que, para sua surpresa, a apresentou à Ethan. Logo quando ela acreditou finalmente ter gostado de alguém.
Agora que descobriu que não eram mesmo irmãs, abandonou qualquer resquício de culpa que ainda poderia existir em seu corpo. Estava cansada de ser deixada de lado. Cansada de ser sempre a segunda opção. Até mesmo Ethan, antes de morrer, parecia preferir sua irmã.
Por isso e pelo relacionamento distante que mantinham, não sentiu sua morte. Porque, além de tudo, seu noivo falecido era um assassino. Sentia-se grata somente por continuar viva. Agora teria finalmente a liberdade que tanto sonhou. Seriam ela, o mundo, e a verdade que tanto lhe esconderam.
Releu as últimas páginas e registrou mentalmente o que sabia. Uma breve descrição daquela que seria sua mãe e o nome de um orfanato em Nova Iorque.
Procuraria pela ruiva de olhos púrpura, começando pelo orfanato Santos Anjos.
Ia perguntar ao taxista se faltava muito para chegarem ao aeroporto mas não foi necessário. Avistou as luzes pálidas da área de embarque. O carro se aproximou e freou a alguns metros de distância de um casal que conversava.
Raquel pagou a corrida e desceu segurando as folhas do diário.
Reconheceu as duas figuras ao se aproximar da entrada.
Como ela conseguira chegar ali antes dela?
Estacou no percurso.
Liza tinha o rosto coberto de sangue. Reconheceu o homem que a acompanhava. Ele esteve em sua festa de noivado. Suas feições contorcidas a fizeram pensar em alguém que acabava de levar uma surra.
Percebeu que os encarou por tempo demais porque Liza a viu.
Deu as costas, correu o lugar com os olhos em busca de um refúgio. Como previu, ouviu Liza gritar seu nome.
Raquel a ignorou e apertou o passo.
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Gennnte, estamos chegando na reta final =,(
Vocês vão ficar com saudade?
Eu já estou!
beijosss e até sexta
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