FIM - PARTE I

CORRENTES

Nathaniel

A avalanche que cobria meu corpo cessou bruscamente. Os tremores em minha pele se acalmaram e com a mudança violenta tombei para trás. O Óculus Mundi pulsou e tremeluziu até voltar à sua natural aura azul.

Pisquei.

Fitei a imagem desfocada de Johan. O vi alisar a barba.

Apesar do turbilhão de informações barulhentas na cabeça, me sentia revigorado. Fui inundado de poder e conhecimento. Inundado pela verdade. E acorrentado pelo destino.

Agora, eu guardava o conhecimento do sagrado.

Uma força rodopiava em meu sangue. Viva.

Resolvi chamar de ironia o que me assolava. Pois foi no sagrado que me condenei.

Pisquei novamente. Foquei a vista.

Milhares de fragmentos passaram acelerados por trás de meus olhos.

Tentei levantar mas me desequilibrei.

No momento, sentia o conhecimento do sagrado como algo denso. Sólido. Uma âncora me afundando no chão.

Johan já havia me contado sobre as falhas do Conselho. Ao assisti-las entre uma das visões do Óculus Mundi, percebi o tamanho da catarse.

Eu não seria capaz de reparar o dano sozinho. Não havia como salvar Liza sem o poder dos membros para me auxiliar.

Seria isso o que Johan queria?

Fui o tempo todo manipulado para chegar à essa conclusão?

Usado como um fantoche?

Só sei que era tarde para especulações. Já havia recitado o juramento Fiel e agora, precisava cumpri-lo. Minhas pernas voltaram a sustentar meu peso e fiquei de pé.

Andei trôpego até Johan.

— Agora cumpra a promessa. Como faço para salvar Liza?

— Ainda não, anjinho.

— Chega, Johan! Já tive o bastante da sua enrolação!

— Está quase acabando, Nathaniel. — Johan espalmou as mãos no ar — Primeiro, iremos ao Jardim dos Anjos, onde encontrarei meu descanso. Finalmente, poderei ver meus filhos.

Ele fechou os olhos. Tinha o semblante alegre. Feliz por estar prestes a morrer. Feliz por ter conseguido seu algoz. Eu.

— Acha mesmo que lhe darei o que quer? Antes de me contar como salvo Liza?

— Aqui, ela pode nos ouvir. O cemitério é o único lugar seguro.

— Ela, quem?

— Ivanka, seu idiota! Morte! Esqueceu? O Jardim dos Anjos é o único lugar onde ela não pode entrar. — esbravejou

Controlei o impulso de agredi-lo. Me obriguei a lembrar que seria a última lição de Johan. Faltava pouco para me ver livre dele.

— Então, está esperando o quê? Maldito!

Ele entortou o lábio e desapareceu à minha frente. O segui até o cemitério.

♦♦♦

Johan me aguardava ao lado de fora dos portões de ferro, deitado no chão como um louco.

— É aqui que quer fazer isso? — indaguei ao vê-lo parado debaixo das estátuas. Olhava para cima absorto.

— Foi aqui onde os vi pela última vez.

Segui seu olhar e compreendi. Aquilo foi perturbador.

As duas estátuas brancas, das crianças sobre os portões, são os filhos de Johan?

O segundo seguinte respondeu a questão que não manifestei. Agora que eu possuía o conhecimento do sagrado, a compreensão me atingia. As estátuas do cemitério eram os olhos das almas. Aprisionadas, observavam apenas aquela parte do mundo, através dos buracos nas pedras.

Os olhos das crianças piscaram. Ganharam vida.

Se arregalaram para o pai, deitado no chão abaixo deles. Vi Johan sorrir e lágrimas escorrerem por suas bochechas.

— O papai finalmente está chegando, crianças.

As estátuas piscaram freneticamente. Johan se levantou e antes de cruzar o portão de ferro, gritou para mim:

— O que está esperando?! Venha, anjinho. Sua missão acabará em breve.

O segui aflito pelo que me aguardava. Estava prestes a matar pela primeira vez. A terrível expectativa barrava a entrada de ar nos pulmões e, ao mesmo tempo, eu precisava me ver livre de Johan para, enfim, chegar até Liza.

Se eu fechasse os olhos, seria capaz de provar da mesma dor que ela sentia naquele momento. E não saber o que estaria acontecendo a ela me deixava desesperado.

Johan parou diante de um jazigo de mármore branco e ergueu sua tampa. Estava vazio.

— Vamos logo com isso, rapaz. Crave a espada do sacramento em meu peito, só você pode usá-la. — Ele puxou o objeto de dentro do manto mostarda e me ofereceu uma lâmina que reluzia como diamante.

— Johan, acho que se esqueceu da sua parte do acordo. Ou me diz agora como faço para salvar Liza, ou nunca mais verá sua família.

— Insolente! Está se tornando cruel como Ivanka. Ameaçando meu bem mais precioso.

— E você não fez o mesmo comigo? Não, Johan! Fez muito pior! Hipócrita! Vamos, diga de uma vez o que deveria ter dito meses atrás!

— Primeiro segure a espada.

— Não!

— Pegue a espada e o pergaminho.

Johan tirou um rolo grosso de dentro do manto e me ofereceu:

— Você vai precisar resgatar os Totens do Destino e devolvê-los ao Óculus Mundi no Templo.

— Como vou saber o que são os Totens? Vai falar em enigmas até o último minuto, Johan!?

— Cada membro do conselho recebeu um Totem representando um poder. Quando fomos amaldiçoados, o Óculus Mundi os escondeu. Somente uma alma digna teria o poder de encontrá-los para libertar os membros das estátuas no Templo e, talvez assim, livrar a todos de Ivanka. No pergaminho estão as tarefas que precisará cumprir.

— Desgraçado. Você me escondeu a verdade até o último segundo. Graças ao seu egoísmo, pessoas inocentes estão sofrendo, Johan.

Segurei o rolo do pergaminho e a espada que chegava a ofuscar a vista com seu brilho e encarei o traidor. Lutei com o desejo de minhas mãos. Pareciam possuir vida própria, e queriam esganar o pescoço do desgraçado.

Cravar a lâmina em seu peito já não me parecia uma tarefa muito difícil. Seus olhos púrpura brilharam na escuridão:

— Espero que um dia possa me perdoar, Nathaniel. Quando perdi minha família, perdi tudo de bom que havia em mim. Foi seu amor por Liza que me despertou para a verdade. Agora, penso que talvez ainda exista bondade nesse mundo, algo que mereça ser resgatado. Por isso, obrigado. Porque falhei como seu mestre, pois acabei aprendendo muito mais do que ensinei.

Johan falou, pela primeira vez demonstrando um sentimento genuíno. Apenas assenti, já com o ímpeto de matá-lo enfraquecido por suas palavras sinceras. Pensando no quanto meus próprios pensamentos me torturariam depois, por saber que sua morte foi provocada por minhas mãos. Independente do acordo, eu teria que conviver com a culpa.

Ele sorriu e ergueu os braços ao lado do corpo, ansioso pelo fim. Guardei o pergaminho no bolso e segurei o cabo da espada com as duas mãos.

O poder do objeto vibrou por meus braços e se espalhou pelo tronco e pelas pernas, como uma espécie de bálsamo iluminado que fazia o sangue esquentar por debaixo da pele.

Enchi os pulmões e fitei seu semblante para reunir coragem. Ele parecia em paz, apesar do peito subindo e descendo rapidamente. Fechei os olhos e fiz o mais rápido que pude, torcendo para que a dor terminasse logo, enterrei a lâmina em seu tórax. Johan sorriu. Vi o sangue escorrer por seu manto e uma explosão de luz aconteceu. Milhares de partículas cintilaram no ar como poeira e ele desapareceu, restando apenas o tecido amontoado de suas vestes no chão.

Cobri o jazigo com a tampa do mármore branco onde ele ficou sepultado em memória, e saí apressado:

— Adeus, Johan.

Andei entre as dezenas de caixões, estátuas e jazigos com um desconforto instalado na boca do estômago. Sentia olhos sob minhas costas. Como se Morte estivesse à espreita. Apressei o passo. O ar enevoado do cemitério se apertava. Dizia para que eu andasse rápido, antes que o pior fosse inevitável. Eu não podia dizer de onde vinha, ou o que seria, mas corri.

Assim que saísse dali, iria até Liza. Estava afoito. Incapaz de acreditar que finalmente nos encontraríamos.

Uma pequena esperança crescia em meu peito. No fundo eu desejava acreditar que, contanto que estivéssemos juntos, seríamos capazes de enfrentar qualquer coisa. Por Liza, eu iria até o inferno se fosse preciso.

Movido por esse pensamento, cruzei o portão de ferro, mas fui obrigado a frear com a visão.

Ela parecia me esperar ao lado de fora. Tinha o rosto inchado, como se tivesse chorado. Sua voz saiu embolada:

— Nathaniel, é você?

— Amanda? O que faz aqui? Você não parece bem.

— Vo..cê... Vo...cê é o primeiro a me ver. Estou há horas vagando — ela fungou. — Eu... eu acho... a...cho que morri! Me ajuda!

— Mas como?! Do que está falando?

Tentei segurá-la pelos ombros, mas minha mão atravessou seu corpo. Ela se distanciou como se o vento a levasse.

— Amanda! — gritei e corri atrás dela.

— Me ajuda!

Ela estendeu os braços para mim e desapareceu.

Capítulo 116 - Pecados

Liza

A água da banheira esfriou com o tempo que passei imersa em pensamentos. A penúltima página do diário me provocava dor física.

"11 anos depois — 10 de maio, 1999 — Viagem pela costa da Califórnia

De nada serviu narrar todos os episódios de Liza. Por isso, parei naquela tarde macabra de seu aniversário de dez anos. Não tenho conseguido dormir. Porque falta um mês agora. Trinta dias para Liza completar vinte e um anos e o pesadelo chegar ao fim, ou realmente começar. Pensei em contar a verdade à ela, mas Paul foi veemente contra. Argumentou que não faria nenhum bem, disse que não adiantava falar sobre o que nós mesmos não compreendíamos.

Fomos no shopping essa tarde. Agora somente Raquel mora conosco. Liza cursa psicologia e dorme na faculdade. Felizmente, arrumei desculpas convincentes para as celebrações dos últimos três anos e essa seria ainda mais especial.

Uma viagem de carro a Los Angeles. O destino, a famosa gruta do sono.

Em último recurso, Paul e eu concordamos em apelar. Ouvimos falar de um santuário onde aquele que passava uma noite, era abençoado pelo Santo Amón. Centenas de relatos na internet falavam de milhares vidas salvas pelo espírito que as curava durante a madrugada.

Mas se nada disso funcionasse, eu teria uma carta na manga. Enquanto Paul almoçava, comprei um presente para Liza. Inocente. Um livro, mas um livro cofre. Através dele, ela saberá de tudo o que aconteceu.

"Vou te contar uma coisa Liza. Ninguém sabe disso. Eu nunca fui uma pessoa de ignorar sinais.

E foi naquela tarde que percebi a tempo o sinal de que você era boa, e pude evitar de cometer o pior erro da minha vida.

Eu estava no taxi. A caminho da clínica de aborto quando a avistei. Uma única flor, nascida no meio de uma poça de sujeira, imaculada, com as pétalas brancas que reluziam naquela tarde chuvosa.

Lembra do que lhe contei sobre a flor de lótus? E mesmo com toda a história por trás da flor, era improvável que uma nascesse ali. Interpretei a visão como um sinal, e assim fiz a minha escolha. Pedi que o taxista desse a volta e me levasse até o aeroporto, onde peguei um avião para Londres e fui encontrar minha mãe. A única a quem eu contaria a verdade, com a esperança de receber abrigo. Lógico que me enganei quanto a isso.

Mas eu acreditei que mesmo daquele ser escuro que me dominou em um beco na madrugada, poderia vir algo belo, puro e inocente. E no momento em que passei a crer, o veneno que corria em minhas veias foi substituído por uma imensa paz. Você não era e nunca será um monstro, Lizzie. Eu apenas tive medo. E agora digo a você, não tenha.

Nem sempre a escolha certa é uma opção. Às vezes, só precisamos decidir com qual pecado seremos capazes de conviver..."

Faltava uma única folha, mas deixei para ler no fim. Assim teria algo dela comigo quando o momento chegasse.

Deixei a banheira com falta de ar. Era mesmo verdade. A podridão de minha alma vinha de nascença. Eu, Noah, e Ethan. Irmãos.

Peguei as peças de roupa no armário. Tirei o colar com as asas de anjo, uma dourada e uma prateada, e o estendi sobre o lençol da cama para observá-lo. Algo lá no fundo dizia que o cordão estava relacionado a Nathaniel, mas a memória continuava incapaz de localizar a lembrança.

Lágrimas grossas escorreram por meu rosto enquanto eu me vesti lentamente. O cheiro de sal, de terra e de orquídea impregnava o ambiente, mas ignorei os sinais. Eu sabia que minha hora estava chegando. Sabia que não podia mais adiar a decisão. Não existia outra saída. Ou eu morreria, ou dia após dia um inocente sofreria em meu lugar. Agora que Nathaniel retornaria, se eu ficasse seria responsável por seu fim. Só por cogitar a possibilidade, o desespero me invadia.

Além de tudo, se eu vivesse seria como Noah. Impura. Dominada pelo mal. Eu já havia matado Ethan. Minha alma não possuía mais salvação.

Fechei os botões da blusa, vesti o tênis e a calça jeans ciente de que a roupa era irrelevante.

O que devemos usar quando sabemos que vamos morrer?

Sentei no colchão e escovei os cabelos lentamente com os dedos. Meus pensamentos rodavam em todas as direções.

Qual é a melhor forma de se matar? Sem dor, sem traumas para os que ficaram?

Pular do prédio? Cortar a própria pele? Engolir uma caixa de compridos?

Céus, como vou fazer isso?

Enterrei o rosto nas mãos e suspirei.

Busquei a última folha com a mensagem de minha mãe no bolso:

"11 de junho de 1999.

Liz, se está lendo isso agora, significa que eu falhei. Nunca pensei ter que escrever algo assim para minha filha, e logo no dia de seu aniversário. Mas é preciso.

Sei que é desnecessário pedir que cuide da sua irmã, pedir que se mantenham unidas.

Conheço você.

Você é forte. Jamais desistiria de sua família.

Então pedirei outra coisa.

Uma única coisa.

Não deixa essas verdades apagarem tudo de bom que há em você, filha.

Deve ter lido o meu medo no início, desculpe se a assustei.

Se existe algo que aprendi nesse tempo é que se existe a luz, ela é presente em você.

Talvez eu nunca venha a compreender porque isso aconteceu conosco. Sim, desejei muitas vezes que tivesse sido diferente, mas saiba que não me arrependo de nada.

Tenho muito orgulho de você.

E, se a escuridão existe de verdade, não será o bastante para apagar sua chama, filha, tenho certeza disso.

Seja forte, resista.

Acima de tudo, nunca duvide da bondade, ela está presente em todos nós e é vibrante em seu espírito, Liz. Eu a senti todo esse tempo.

Lembre-se sempre:

O que nos diferencia uns dos outros é uma escolha."

Tem razão, mãe. E eu escolho não deixar mais ninguém morrer em meu lugar.

Os rostos de Ben, Amanda, Raquel e Adrian surgiram quase nítidos à minha frente. Eu não me despediria de nenhum deles. Não agradeceria por toda a ajuda que me deram, não deixaria nenhuma palavra de apoio para Raquel. Ela ficaria totalmente só nesse mundo. Abandonada.

Meu peito bateu acelerado e o som dentro de mim, parecia entoar um canto, dizia repetidamente o mesmo nome: Nathaniel, Nathaniel, Nathaniel.

Eu queria me lembrar, ter a memória de volta e. pelo menos por um segundo, ser capaz de sorrir ao reviver nossos momentos. No meu íntimo, eu guardava a certeza de que fomos felizes, mesmo com todas as histórias horríveis que ouvi.

— Eu não sei explicar como, mas sinto esse amor aqui dentro, Nathaniel. Queria poder te dizer isso antes de partir para sempre.

Você tinha razão, mãe. Nem sempre a escolha certa é uma opção. Mas já escolhi o pecado com o qual serei capaz de conviver.

Afinal, não é para isso que amamos? Para salvar?

Apoiei as mãos no colchão e suspirei. Fechei o colar com as asas de anjo no pescoço e, por via das dúvidas, peguei o pequeno punhal esquecido debaixo da cama e o guardei no bolso da calça.

Fitei minhas íris púrpura no espelho do armário aberto. Olhei a orquídea na janela.

Não. Eu não tinha outra escolha.

Teria que causar minha própria morte antes que Ivanka fizesse o chamado.

Só pude pensar em um lugar. Lembrei da árvore coberta de glicínias. Das cachoeiras jorrando com abundância. Seria alto o bastante. A queda do Penhasco teria que bastar.

Eu não sabia exatamente como chegar lá, então deitei na cama, tentei relaxar e fechei os olhos.

Desculpa, Nathaniel, espero que um dia possa compreender. Se eu ficar, vou destruir você.

Senti que meu corpo era puxado, a cabeça girou, o estômago embrulhou. Milhões de cores passaram por debaixo das pálpebras.

Até que tudo parou. Havia alguma coisa errada. Não ouvi o som das cachoeiras. Não fui tocada pela brisa suave.

Ergui as pálpebras e vi somente areia ao redor.

Gêiseres explodiam do chão perto de mim.

Uma mulher de cabelos curtos e vermelhos surgiu à minha frente. Os olhos dela também eram púrpura. Arregalei os olhos, e antes que pudesse perguntar ela me derrubou e apertou meu pescoço:

— Enfim nos conhecemos, Liza. A garotinha sem graça, amada por todos.

As unhas dela quase rasgavam minha pele. Puxei os dedos dela na ilusória tentativa de me livrar do aperto. O peito ardia pela falta de ar.

Eu já perdia as forças quando a ouvi gritar para o deserto:

— Ivanka, se estiver me ouvindo, apareça! Peguei a alma dourada e tenho uma proposta!

Tentei dizer a ela que estava errada. Que era impossível que eu fosse a alma dourada, mas perdi o ar e caí num abismo escuro.

♦♦♦

Nathaniel

Procurei por Amanda de todas as formas e por todos os cantos próximos ao cemitério. E não podia mais adiar. A consciência de Liza gritava meu nome. Ela estava em apuros.

Eu volto pra te ajudar, Amanda. Prometo.

Fechei os olhos, me concentrei para me conectar a Liza com o elo que possuíamos, e vi o que Gaia fazia.

— Desgraçada! Traidora!

Cheguei ao deserto e puxei Gaia de cima de Liza. Derrubei-a a metros de distância e ajoelhei perto de Liza.

Não! Ela não respirava! Segurei o rosto dela entre as mãos. Seu corpo estava mole. Um buraco pareceu se instalar dentro de mim.

— Liz, abre os olhos. Respira! Miosótis, não faz isso comigo, não agora que finalmente podemos ficar juntos.

— O amor não é lindo? — ouvi Gaia gargalhar e levantei.

— O que você fez com ela?! Por quê, Gaia!? Por quê!?

— Porque eu mereço uma chance. Eu nunca tive isso, Nate! Nunca serei amada! Ouço gritos dos mortos o tempo todo. Eu quero viver. Viver! Também já fui inocente um dia. O Conselho me destruiu! Estou presa nesse deserto! E ela não está morta, ainda. Ivanka virá buscá-la. Enfim serei livre. A alma dourada em troca da minha libertação!

— E você acha isso justo? Sua egoísta, desgraçada! Eu estava disposto a te ajudar quando tudo passasse. E você me traiu, Gaia! Desfaça o encantamento que jogou nela, ou vai morrer agora e seu esforço terá sido em vão.

Gaia dobrou o corpo e riu.

— E como pretende fazer isso, queridinho?

Mostrei a lâmina da espada usada para matar Johan presa em meu cinto, e Gaia recuou um passo com as órbitas arregaladas.

— Não. Não pode ser você! — Ela puxou os próprios cabelos. — Como não é ela!? Como não é a garota!?

Gaia me fitou parecendo desesperada de repente. Se jogou por cima de mim e caí de costas na areia. Ouvi Liza tossir e ao olhar para trás fui atingido por uma corrente elétrica. Meus braços e pernas tremeram em espasmos convulsionados, enquanto a risada de Gaia zumbia em meus ouvidos. Pensamentos obscuros lutavam para se apoderar dos meus.

Meu corpo ardia como se queimasse de dentro para fora. Os nervos eram esticados e repuxados. Ácido corroía meu sangue e a dor chegava aos ossos. Engasguei quando o ar me faltou.

Comecei a perder os sentidos, a consciência implorava pelo descanso do desmaio. O mísero resquício de força se esvaía. Se eu apagasse, nunca mais veria Liza. Tudo estaria perdido. Condenado. Se Ivanka aparecesse e a levasse, teria enfim o que tanto buscava. Meus pais teriam morrido em vão. A vida de Johan, dos membros do Conselho, e de todos os inocentes perdidos nessa jornada, teriam sido em vão.

Enchi os pulmões com todo o ar que pude.

Se eu era o filho do vice-líder do Conselho, um anjo com o conhecimento do sagrado completo, a mãe de todos os vícios não poderia me derrotar.

Espalmei as mãos na areia, ergui o tronco apesar da dor de atravessar os ossos e tirei a espada presa em meu cinto.

O poder vibrou pelos braços e se espalhou como uma cura. Apontei a lâmina para Gaia, que mantinha os braços estendidos para mim, e uma explosão de luz a derrubou para longe.

Estilhaços brilhantes pontilharam o horizonte até Gaia cair a metros de distância.

Levantei arfante, guardei apressado a espada no cinto e peguei Liza no colo.

Suas pálpebras subiam e desciam.

Vi de soslaio o vulto vermelho de Gaia erguer o tronco no chão entre os gêiseres que explodiam. Antes que Ivanka aparecesse, me antecipei para nos levar ao Penhasco. Somente lá ficaríamos seguros e sozinhos, ainda que eu não soubesse por quanto tempo.

— Vai ficar tudo bem, Liz. — murmurei sem acreditar muito no que dizia.

Segundos antes de completar a travessia, um toque no cotovelo me impediu, e ele se colocou a minha frente.

Adrian. O infeliz, desgraçado.

— Adrian, vou dizer isso uma vez só. Eu tenho a arma capaz de te matar, e se não me soltar no próximo segundo, vai se arrepender.

— Eu errei, Nathaniel. Mas reconheço minha falha e não vou ajudar Gaia.

— Então saia do meu caminho.

— Só vim te dar um aviso. Não deixe a Liza fazer o que está planejando. Não deixe ela pular, Nathaniel.

— Do que você está falando?!

— Agora, vá! Eu me ocupo de Gaia.

Apertei Liza junto ao peito.

Não deixe ela pular?

O que aconteceu com você, Liz?

Perguntei para seu rosto de menina desacordado em meus braços.

No tempo em que fazíamos a travessia até o Penhasco, a voz de Adrian me atingiu como uma adaga nas costas:

— E tome cuidado, Nathaniel. Sendo a alma dourada, elas virão atrás de você e serão piores do que pode imaginar.

Eu, a alma dourada?

Chegamos ao Penhasco e agachei debaixo da árvore, com o peito enchendo e esvaziando com força. Uma corrente de emoção vibrou por baixo de minha pele. Um péssimo presságio. Um sentimento avassalador de impotência, de angústia, ameaçou varrer a esperança que ainda me restava.

Se estive enganado esse tempo todo, isso faz de Liza, o quê?


Capítulo 117 - Súplica

Irmã Daiana

Decidiu se fortalecer com orações antes de cruzar o corredor e, pela primeira vez, encontrar seu filho. O sonho de uma mãe, transformado em pesadelo. Sabia que Mathews estaria acompanhado daquela presença obscura. A podridão do ser se espalhava pelas paredes do orfanato. Irmã Daiana pensou que implorar por clemência aos inocentes arrastados para essa trama, não custaria nada. Assim, ajoelhou-se aos pés da cama e segurou o terço entre os dedos. Recordou-se do dia em que recebeu a missão, enquanto se perguntava constantemente: Por que eu, Senhor?

Infelizmente, sua memória a fazia reviver palavra, por palavra, daquela maldição:

— Vimos o futuro, Irmã. Vimos o reflexo de nossa escolha ao forjar as três almas. E ele é negro. Vazio. Os humanos cairão no abismo. Os anjos se extinguirão. E Morte reinará entre o Céu e a Terra, sedenta por vingança. Em breve ela não saberá mais do perdão. Vimos os planos de Ivanka.

"Três almas foram geradas no ventre de uma humana. Do primogênito nascerá a queda onde todos ruiremos. A criança mais velha trará dor e sofrimento, pois sua alma será manchada. Uma reprodução de Ivanka, ainda mais forte e mais poderosa. Somente a alma dourada poderá impedi-la, mas haverá somente uma chance.

Quando o terceiro V se completar o filho de Ivanka terá o poder necessário para reinar e a alma dourada se extinguirá. Ele não pode permanecer na Terra.

Em breve, um bebê será trazido a você, de cabelos negros e olhos verdes. O pai dele lhe entregará um cordão. Guarde-o. E somente o repasse quando o bebê crescer e lhe disser que encontrou sua alma gêmea. Faça com que ele entregue o cordão à ela. Pois se não o fizer, é dela que virá o fim. A mais velha dos três. Está escrito no pergaminho. O Óculus Mundi nos mostrou nossa desgraça. Em pouco tempo, pagaremos pelo erro de nossa criação.

Ninguém fica impune aos vícios.

Grande é o seu papel nessa história, Irmã. Faça o que eu digo. E quando o desfecho chegar, vinte e um podem ser salvos."

Ela foi instruída quanto a isso anos antes de tudo realmente começar e, mesmo assim, no dia em que soube do nascimento de Liza, relutou para aceitar.

Pois daquele dia em diante se deu o início. Dia um. O dia em que trigêmeos nasceram. Cada um com seu destino, o qual seria melhor chamado de maldição. Porque não considerava justo nascer sem escolha, não era justo se ainda existia a inocência.

Por outro lado, quem disse que a inocência existe? Irmã Daiana se perguntava.

Ela não ignoraria as histórias que ouviu, também não poderia, mesmo se tentasse.

Como ignoraria a visita que recebeu, poucos anos antes do nascimento da menina. Lhe pareceu um homem a princípio, antes de duas enormes asas se abrirem na lateral de seu corpo, brancas, imaculadas. Recordava-se de apertar a cruz que carregava em seu pescoço e se benzer. Descobriu tardiamente, que orações nem sempre servem ao seu propósito. Súplicas também não. Não no seu caso.

O anjo deixou bem claro. A menina precisava cumprir seu destino a qualquer custo. Para um anjo, achou cruéis suas palavras. Cruel era o destino dela. Mas ela não era a única inocente. Uma bela criança, doce e angelical, veio dormir em uma cama no orfanato pouco tempo depois, exatamente como o anjo previu. Criança a qual acabou se afeiçoando absurdamente. O menino de cabelos pretos, e olhos incrivelmente verdes.

E ele era crucial ao destino da menina. E mais uma vez, o destino era terrível demais, para ambos. Lembrou-se que, de joelhos, implorou ao anjo que escolhesse outra pessoa:

— Por favor, não terei forças!

Seu olhar duro, permaneceu vítreo, condenando sua súplica. E o silêncio de sua resposta lhe bastou. Irmã Daiana não teria escolha a não ser cumprir sua missão.

Irmã Daiana rogou por semanas pelo anjo. Necessitava de suas instruções. Sabia que teriam nascido trigêmeos, anjos não poderiam se enganar. Mas os céus ignoraram seu apelo e até hoje permanecia em si a dúvida.

Dos três filhos, do primogênito viria o vazio e aos vinte e um anos, um deles seria evocado. Buscou vinte e um anos pela terceira criança, quase vinte e dois agora.

E se o colar foi entregue a criança errada?

Apertou a cruz em suas mãos e orou com fervor.

— Perdoe-me senhor. Mas o sirvo no escuro. Tudo o que penso é nas vinte crianças mortas no orfanato, no incêndio infernal. O anjo me prometeu. Se a evocação acontecer como previsto, além das vinte crianças mortas, mais um será salvo. É só o que importa. É só isso o que me importa.

Ao terminar a oração, levantou-se do chão com dificuldade. Havia chegado a hora. O momento de rever seu filho. O momento de ver seu fruto, possuído pelo ser obscuro que tantas vezes antes encontrou.

Andou devagar pelo corredor, com o peito acelerado. A bengala ecoava no velho piso de madeira. O ar queimava ao entrar na garganta. A angústia de uma mãe, impotente diante do filho que sofreria. Se estava possuído pelo ser obscuro, algum mal deveria ter causado.

Irmã Daiana parou na soleira da porta e ouviu a respiração pesada de Mathews. Sonhou milhares de vezes com aquele instante. Em sua fantasia, se abraçariam, conversariam por horas, se entenderiam e se tornariam amigos. Ele teria filhos. Seria um homem honrado e feliz. O que seria impossível agora. Imaginou suas feições. Será que pareceria com ela?

Tolas indagações de um coração materno.

A realidade era outra. Oposta.

Escutou Mathews arfar. O som de um móvel arrastado. Algo de vidro espatifando. E, na primeira vez que a voz de seu filho chegou aos ouvidos, foi somente para ouvi-lo dizer:

— Saia daqui, antes que eumate você.    

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