DESPEDIDAS
DESPEDIDAS
Liza
Soltei Adrian ao ver Raquel descendo do táxi. Ela arregalou os olhos e me deu as costas, sorrateira. Gritei por ela e fui ignorada:
— Raquel, volte aqui!
Ela simplesmente correu. Mas, no lugar onde estávamos, não teria como se esconder. E se deixasse o aeroporto sairia no meio da estrada.
Aparentemente, ela chegou a essa mesma conclusão, pois se virou para trás e jogou as folhas em cima de mim.
— Toma! É isso que você quer, não é?
Observei as páginas pairando no ar. As palavras que me revelariam a verdade que tanto esperei, a um passo de serem perdidas.
Se um carro acelerado aparecesse naquele momento, o vento levaria tudo embora.
Tateei arfante pelo ar e fui pegando folha a folha o mais rápido que consegui.
Raquel correu na direção da entrada do aeroporto.
— Espera, Raquel! Precisamos conversar!
— Leia o diário Liza. Descubra por você mesma e faça o favor de me deixar em paz! Para sempre!
Peguei pelas minhas contas a quinta folha e tentei imprimir significado as palavras de Raquel.
Porque ela está com raiva de mim?
Adrian apareceu mudo ao meu lado e me entregou as páginas que ele mesmo havia catado.
— Quer que eu a impeça de ir? — Ofereceu.
— Não, deixa. Preciso ler e entender por que ela ficou desse jeito. Viu se alguma folha se perdeu?
— Não. Peguei quase todas, as outras estão com você. — Adrian me olhava fixamente, como se me enxergasse por dentro.
A expressão triste. O cenho franzido.
Imediatamente levei meu braço esquerdo para trás, não queria que ele visse a marca em meu pulso, não discutiria o assunto, já havia aceitado meu destino. Mas o gesto me dedurou.
Ele puxou meu braço e arregalou os olhos estupefato. Haviam milhões de exclamações em sua expressão e um pedido mudo de socorro na minha. Nos fitamos em silêncio por um tempo. A compreensão pairava entre nós. Interrompi a troca de olhares ao pedir:
— Me leva para casa?
Ele assentiu sério, e me abraçou.
Apertei as folhas no peito e pensei que faríamos a travessia mas, outra vez, Adrian me enganou.
Enquanto meu corpo era transportado de volta à Nova Iorque, não sei como ele conseguiu, mas invadiu minhas lembranças, e fui obrigada a reviver a verdade macabra, que descobri na Casa do Mago.
♦♦♦
Subi as escadas para o andar de puro breu. Ignorei o som perturbador das gárgulas que pareciam respirar. A madeira rangia sob os pés. O cheiro de mofo me sufocava.
— Amanda? — perguntei com um fio de voz.
— Veja, Liza!
Olhei na direção de onde vinha a voz masculina, e recuei. Uma forte luz azul tremeluzia em volta do que parecia um espelho. O que quer que fosse aquilo, eu me manteria longe.
Tentei voltar, mas as pernas travaram no piso. Meus batimentos aceleraram, forcei os músculos e comecei a entrar em desespero.
— Não há como fugir do que está em você.
O espelho deslizou pelo corredor em minha direção. A luz aumentou e se aproximava a cada segundo.
— Eu quero sair daqui!
Fechei os olhos ao ver que não escaparia. O espelho de mais de cinco metros colidiria direto comigo. Agachei e acabei caindo sentada. Prendi o ar e esperei pelo impacto.
Cobri o rosto e um brilho azulado iluminou minhas pálpebras. Abri os olhos e a luz azul ofuscante cintilou antes de desaparecer.
Escureceu de repente. Ouvi os cacos se estilhaçando e tirei as mãos do rosto.
Tudo o que vi foi um enorme retângulo metálico ao fundo da sala circular, sua superfície tremeluzia como as margens de um lago. Ergui o tronco ao fitar o reflexo do outro lado e me aproximei. Enxerguei a mim mesma. Arfei ao ver aquela Liza. Cinza. Envelhecida. Com a pele macilenta. Cabelos ralos e um sorriso debochado no rosto. Mas foi a imagem das órbitas negras que me faria ter pesadelos pelo resto da vida.
— Sabe quem é ela, Liza? Você, por dentro.
— Quem está falando? Isso é mentira! Quero ir embora daqui!
— Me chame de Noah, e se quiser mesmo descobrir a verdade, esteja atenta ao que direi agora.
"A escuridão jaz em você. E, dentro dela, vejo aqueles que morrerão por sua causa.
Dia após dia. A cada vez que recusar o chamado, um inocente será levado em seu lugar. O tempo está correndo. Você deveria ter descido aos jardins, na noite em que completou 21 anos, em Los Angeles.
Há escuridão dentro de mim também, sou uma alma negra, mas não me tema, porque nós somos iguais. Somos parentes de alma e de sangue, Liza. Mentiram para você sua vida inteira."
— Cala a boca! Eu quero sair daqui!
— Foi avisada. E já olhou no lado negro do espelho. Ninguém jamais voltou do mergulho em si mesmo. Agora vá. E veja o mundo como realmente é, sem o véu humano da mentira.
"Ouça o apelo das vozes clamando por libertação. Ouça as almas presas no jardim, e saiba que ajudou a matar cada uma delas. Se entregue ao vazio e liberte-as.
E esteja atenta. Quando o terceiro V em seu pulso se fechar, um dos dois morrerá.
Pois ambas as almas não podem coexistir. O negro sempre absorverá aquele de luz. Se deseja salvá-lo, aceite.
Seu lado mais escuro irá aflorar de hoje em diante. Vez atrás da outra.
Com mais força quando você buscar a luz, até te dominar.
Pois somos acolhidos no escuro. Nos braços do vazio.
Com a promessa da ausência.
Lá, não existe dor. A culpa não se faz presente, pois somos livres.
Lembre-se.
Um a um, serão levados por Morte em seu lugar, a cada dia que continuar a respirar.
A única maneira de impedir que ela carregue um inocente é matando alguém de sua escolha com as próprias mãos.
Uma vida pela outra.
Um grande evento se aproxima. Na noite em que todos estiverem sob o mesmo luar, um amigo morrerá.
Ao compartilharem a mesma aflição, a Morte será convidada. Sua escolha determinará o fim de uma vida, ou outra. Do amigo, ou do inimigo. E dessa escolha, para quem a fizer, não haverá retorno."
♦♦♦
Adrian me soltou quando chegamos ao meu quarto em Nova Iorque e voei para cima dele. Dessa vez, eu não o perdoaria. Ele foi mais rápido. Segurou meus pulsos e andou comigo até a cama me obrigando a deitar no colchão:
— Eu precisava ver a verdade, Liza!
— Não! Você me invadiu. Eu não queria ouvir isso de novo, já aceitei meu destino. Todos morrem por minha causa, Adrian. E mais morrerão!
— Não precisa ser assim, Noah está manipulando você! — Adrian soltou meus pulsos e me segurou pelo rosto com as mãos.
— Eu fiz a minha escolha quando deixei Noah me possuir na praia e matei Ethan, meu próprio irmão, para poupar a vida de Ben. Agora estou manchada. Veja meus olhos, Adrian. Recebi o Estigma Púrpura. — Sacudi a cabeça tentando me livrar e isso fez com que ele aproximasse o rosto do meu.
— Não vou deixar você morrer, tire essa ideia da cabeça. Eu vi sua decisão quando assisti o que aconteceu na Casa do Mago.
— Desde quando o que acontece comigo te importa?
— Ultimamente, é tudo o que me importa! Você não vê!?
Fechei os olhos e deixei a muralha de proteção ruir. Nos abraçamos e ficamos assim por um longo tempo em silêncio. Somente o som de nossas respirações preenchendo o ambiente. E lá no fundo, o sussurro da verdade me dizendo que aquele seria o nosso abraço de despedida.
Quando voltei a ter forças para falar, pedi a Adrian:
— Pode dar uma olhada em Raquel? Tentar descobrir o que ela está fazendo?
— Depende. Vai ficar aqui me esperando?
— Vou, Adrian. Eu tinha pensado em ir até Londres, falar com minha avó após o que li no diário, mas cheguei à conclusão de que será inútil.
— Não é com isso que estou preocupado. Vai me deixar te ajudar? Promete que não vai fazer essa besteira que vi na sua cabeça?
— Prometo. — fui o mais sincera que pude e mantive a expressão serena. Ele me olhou por um longo tempo antes de parecer convencido e assentiu.
Antes que ele saísse, perguntei sobre o que havia de fato acontecido no meu quarto em Winterhill. Fiquei preocupada com o que Ben e Amanda se deparariam ao chegar em casa. Eles não precisavam de mais problemas depois de todo o ocorrido na praia. Meu peito doeu ao lembrar de Ben ferido, e por saber que ele ainda enfrentaria uma longa recuperação. Todos ao meu redor se machucavam. E sempre por minha causa.
Adrian me explicou que deixou Olaf prendê-lo daquela forma para pegá-lo de surpresa e me dar tempo de fugir.
Ao ver que eu mataria o homem que me sufocava, se livrou de Olaf momentaneamente e me levou ao aeroporto. Adrian garantiu que o próprio Olaf se encarregaria de levar aquele corpo com ele, visto que era seu hospedeiro.
Não tive outra escolha, a não ser acreditar. O alívio me dominou quando eu soube que afinal, não o matei. Uma vida a menos em minhas mãos.
E pelo menos a casa estaria intacta, porque eu provavelmente a teria incendiado. Com exceção do espelho quebrado e o sangue pelo chão. Imaginei a reação de Amanda ao chegar e se deparar com o estrago.
Adrian me deixou sozinha, ergui o tronco na cama e voltei a fitar a marca em meu pulso.
A previsão de Noah se concretizava. E meu pior medo viria em breve.
Mas existia algo que eu precisava fazer antes de qualquer outra coisa.
Mesmo desesperada para descansar, comer e dormir, eu sabia que não seria capaz de nada disso enquanto não concluísse a leitura. E teria que ser rápido. Antes que Adrian retornasse.
Minha mãe tinha algo importante a me dizer e eu precisava descobrir o quê.
Tirei as páginas amassadas da calça jeans e espalhei as folhas pela cama. Organizei-as por data e me preparei para o pior.
Pela reação de minha irmã, não devia ser nada bom.
Não demorei para compreender o desespero de Raquel. Ela descobriu que foi abandonada na porta, que sua mãe era outra. Leu toda a história macabra, como eu. Não acreditei que meu pai, tivesse sofrido algo tão semelhante ao que houve à minha mãe.
O que há de errado conosco?
Após pular as partes que já havia lido, deitei na cama e tomei fôlego:
"22/04/1982.
Baltimore — Maryland
09:23
Parei de escrever detalhadamente. Estou cansada. Minhas mãos tremem.
Colocarei de agora em diante apenas dados e fatos.
Algo que talvez possa ajudar Liza no futuro.
Ou que me ajude, pois provavelmente não terei coragem para lhe contar.
Os episódios macabros ganham intensidade conforme Liza se torna mais velha.
Morro de medo do dia de seu aniversário.
Sequer posso comemorar a vida de minha filha.
Não sei o que farei quando ela envelhecer. Liza suspeitará. Com certeza me perguntará por que sempre viajamos no seu aniversário.
Não posso acreditar no que minhas próprias mãos escrevem.
Não gosto de imaginar o que poderá acontecer quando completar 21 anos.
Aniversário de 3 anos:
Me ligaram da creche assustados. A diretora me contou que Liza, durante uma atividade em grupo, ficou uma hora falando sozinha. Por mais que a sacudissem e tentassem atrair sua atenção, ela mantinha o diálogo de palavras desconexas com alguém invisível à sua frente. Até que se aproximou de um menino, esperneou como se algo muito ruim se aproximasse dela e de repente, desmaiou.
Ela deixou as outras crianças com medo.
Aniversário de 4 anos:
Hoje Liza foi convidada a se retirar da escola e sugeriram acompanhamento médico.
Ela desenhava em dupla com sua amiguinha, até lhe furar a mão com o lápis sem aviso e gargalhar enquanto a menina chorava.
A busquei correndo na escola. Ela me abraçou e me pediu desculpas.
"Foi a mulher de cabelo preto que mandou, mamãe. Foi a mulher de cabelo preto que mandou."
Eu precisava apagar essa parte dela, matar esse monstro que ali vivia.
Como minhas orações não surtiam mais efeito, deixei de ir à igreja nesse dia.
Aniversário de 5 anos:
Paul e eu levamos Liza ao aquário. Decidimos que seria melhor afastá-la dos outros nos dias de seu aniversário. Até de Raquel. A deixamos com uma babá de confiança.
O dia correu bem, até Liza fugir de nós. Ela foi absurdamente rápida para uma menina de 5 anos. Quando a alcançamos, ela olhava compenetrada para o aquário de águas vivas. Antes que eu pudesse pegá-la, deu um passo à frente e espalmou as mãos no vidro. O aquário se estilhaçou em centenas de pedaços. Eu e Paul queimamos os braços quando as águas-vivas resvalaram nossa pele.
Liza saiu intacta.
Aniversário de 6 anos:
Dessa vez ficamos em casa. Raquel passou o dia na rua com a babá.
Eu e Paul pesquisávamos doenças neurológicas, buscávamos referências de médicos, qualquer coisa que oferecesse ajuda, quando a ouvimos nos chamar.
"Mamãe, papai! Mamãe, papai!"
Sua voz, veio da cozinha. Ao chegarmos lá, vimos o fogão ardendo em chamas.
"Olha mamãe, fogo!"
Quando ela baixou os bracinhos, o fogo se apagou.
Abandonamos a ideia do médico.
07 anos de Liza
Fui obrigada a visitar um instituto neurológico.
Os professores de Liza insistiram e após alguns exames, os médicos indicaram tratamento para minha filha.
Foi horrível!
Quiseram prendê-la numa cama. Dar-lhe choques.
Liza revirou os olhos, falou outra língua e se debateu.
Puseram eletrodos a força em sua têmpora e não resisti mais.
A arranquei das mãos deles e fugi daquele lugar tenebroso.
Me perdoe, filha. Me perdoe pelo que quase fiz a você.
Mas você é fruto de algo negro. Perverso.
Eu apenas queria te libertar.
08 anos de Liza
Deus, por favor, não nos abandone.
Hoje ela fez objetos voarem pelo quarto e desmaiou.
Quando acordou, não se lembrava de nada.
09 anos de Liza
Hoje, foi o pior dia de todos. Estou chorando. Queria gritar mas não posso.
Ela... ela... Não consigo. Não irei mais escrever.
10 anos de Liza
Agora ela desmaia depois dos episódios. Quando acorda, não se lembra de nada.
Nesse caso, a perda de memória vinha como benção. Como poderia eu lhe explicar o que isso significava?
Ano após ano, marcada em cada aniversário. Explosões, mortes, sangue, gritos, dor.
Como se cada crise macabra a levasse ao seu destino.
Paul comparou Liza a uma granada prestes a explodir. Eu prefiro compará-la a uma granada, prestes a desativar."
Levantei atônita da cama. Amassei as folhas em minha mão. Andei de um lado para o outro.
Esfreguei o rosto com força tentando aliviar a frustração e gemi ao tocar o corte entre as sobrancelhas.
Precisava recuperar o raciocínio antes de continuar.
Enchi a banheira com água quase fervendo e mergulhei na calma quente e confortadora que ela fornecia.
Mantive uma mão para fora da água, assim não molharia as partes ainda não lidas. Escorreguei o corpo para afundar a cabeça e prendi a respiração alguns segundos debaixo d'água.
Ignorei a ardência do corte em minha testa e do meu pulso rasgado.
Emergi o rosto, enxuguei os olhos e li as próximas páginas. Imaginei que não poderiam revelar nada pior que as anteriores, mas me enganei profundamente.
_________________________________________________________________________________
Capítulo dose dupla amores, desculpem pelo atraso.
Gente, está tão pertinho do fim =/
Quem vai fica com ressaca literária aí?
beijosss e feliz dia dos namorados!
Participem lá do evento no facebook:semana dos apaixonados
Hoje à noite vou sortear 1 exemplar de O Penhasco, 1 exemplar de O Templo,
2 almofadas, 2 chaveiros, 20 marcadores, botton, bolsinha e carta do Nate
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top