DESFECHOS

DESFECHOS

Nathaniel

Limpei a areia do rosto e analisei a cena.

As chamas se transformaram em uma densa fumaça em volta das garo- tas amarradas.

Haveria salvação para elas? Ou Olaf teria conseguido e as deixado ali, mortas por asfixia?

O ódio envenenou meu sangue.
Busquei por Liza e me desesperei ao vê-la caída.
Fui até ela e senti sua respiração curta e fraca em meus dedos. Ao menos

ela respirava.
Passei um braço debaixo de seu joelho e com o outro segurei seu pescoço. Assim a carreguei para a beira da praia, longe da nuvem tóxica.

Chequei os sinais vitais de Liza e liguei para a polícia após pedir uma ambulância.

Sentei-me com ela no colo e enrolei uma mecha de seus cabelos entre

os dedos.
— Vai ficar tudo bem, Liza. Eu voltei.
Fitei seu rosto cansado e observei sua pele nívea e macia como seda. Lembrei de Olaf empurrando-a no fogaréu. A pele de Liza permaneceu intacta.

A compreensão brigava com a descrença em minha lógica.
Coisas demais aconteceram essa noite e nenhuma delas parece crível. — O que está acontecendo com você? — perguntei com a esperança do

vento me responder — Seja o que for, vou lhe salvar, Liz. Mesmo que precise morrer para isso.

O corpo sem vida de Ethan jazia a poucos passos de nós. Provavelmente o último suspiro dele rompeu o elo de Olaf com a cerimônia. E as chamas se ex- tinguiram, pois se Olaf não habitasse um corpo não poderia concretizar o ritual.

De qualquer maneira, Ethan morreu em vão.
Porque Olaf não desistiria e poderia aparecer a qualquer momento. Ethan era inocente, apenas um homem possuído por uma alma negra e

incapaz de se libertar.
Mas quem seria o homem idêntico a ele que apareceu no final da noite?

Na hora pensei que estivesse com a visão duplicada. Humano eu sabia que não era. Suas vibrações superavam as de Olaf: perversas e vazias.

O assobio do vento interrompeu meu raciocínio. Busquei no silêncio mórbido da praia a origem do som e notei algo muito estranho acontecendo na areia abaixo de onde eu me encontrava. Os grãos da areia fizeram um movi- mento circular, como se cavassem um buraco. Levantei para me afastar mas o círculo me seguiu e se aprofundou.

Deitei Liza na areia e me distanciei dela.

Dei dois passos e meus pés foram enterrados. A cada movimento, mais a areia me prendia.

Movi as pernas e a areia cobriu meus joelhos.

Suspirei e tentei entender o que acontecia. Mantive o corpo estático. Funcionou por alguns segundos.

Girei o tronco me preparando para pular, e fui sugado pela areia, soter- rado até a cabeça. Cometi o erro de abrir a boca e engoli centenas de grãos. Eles desceram me ressecando por dentro e parei de respirar.

◆◆◆

Johan

Depois que o anjinho rebelde o deixou. Johan voltou a solidão, sua an- tiga e sempre presente companhia. Companhia essa que ele tanto ansiava em deixar.

Observava o poderoso e vibrante Óculus Mundi, a esfera perfeita, guar-

diã dos mistérios desse mundo. Essa noite ele aguardava uma visita. Nada bem vinda, diga-se de passagem. No entanto, necessária.

Seus planos andavam atrasados, muito atrasados. E ele os postergou de propósito. Assim ganharia tempo para encontrar uma brecha, e teria sucedido se o anjinho rebelde não tivesse ido embora.

Ivanka vigiava cada movimento seu, pois eles firmaram um acordo.

Somente ela o livraria do Estigma Púrpura, já que havia sido ela quem lhe dera o maldito presente, nítido em seus olhos.

Em troca, ele lhe entregaria a alma dourada.

E Johan não podia morrer. Além de ser o último anjo do Conselho — ainda que expulso — na Terra, não finalizou sua missão e, se falecesse, tornaria- se escravo de Ivanka ou pior, ela absorveria seus poderes.

Um trovão reverberou entre as colunas do Templo e Johan sorriu para si. Previsível.
— Chegou cedo, queridinha.
— Não desperdice meu tempo, Johan. Me entregue a garota amanhã à noite ou considere o acordo desfeito — ameaçou em sua voz sedutora. — Sim, queridinha. Amanhã à noite ela será sua.

Johan olhou o céu acima de si e abriu um sorriso plastificado para Ivanka. Por pior que fosse sua índole, sempre se surpreendia com sua beleza. Seu corpo de formas perfeitas lhe aparecia coberto pelo manto azul esvoaçante.

Os cabelos desciam negros e aveludados até os pés.

Os humanos não erram ao dizer que Morte é bela. E pensar que ele mesmo ajudou a criá-la. A grande ilusão do Conselho, crer que poderiam forjar almas puras quando eles próprios tinham o espírito poluído.

No entanto Ivanka não poderia lhe ameaçar, não ali. O Templo o prote- gia e ela jamais poderia atravessar nada além do céu e das areias.

Enquanto permanecesse entre as colunas do Templo, estaria a salvo. Mas a salvo de que? Não há salvação quando a culpa lhe corrói. Somente na Morte existia a ameaça e exatamente na morte era onde residia seu desejo.

Johan refletiu sobre suas escolhas, alisando a longa barba em seu queixo. Por mais nobre que fosse sua causa, se agisse injustamente em próprio benefício, isso o tornaria indigno?

E quem disse que dignidade seria uma de suas preocupações a essa altura?

Não havia mais nada capaz de puni-lo no momento.
As batidas em seu peito eram vazias, ocas.
Antes se resumiam à sua mulher, sua filha e seu menino. 

No momento em que partiram, Johan deveria ter partido também. Ele tentou, mas o Estigma Púrpura era sua prisão e viveu desde então no Templo, aguardando sua missão.

Agora ele precisava concluir os ensinamentos e fazer uma escolha. Para rever seus filhos e sua esposa, Ivanka fez uma proposta.
Baixa, desonrosa e traiçoeira.
Ele jamais confiaria nela. Infelizmente não vislumbrou nenhuma outra opção.

Para salvar alguns, seria necessária a condenação de outros. E duraria eternamente.

A dúvida o fatigava.

Pelo visto, havia ainda algum resquício dentro de si, resquício da praga da honra. De nada lhe serviu antes e de nada lhe serviria agora.

Culpa da maldita consciência.

O forçava a encontrar uma brecha e tomar enfim a decisão: se fosse para trair alguém, que a traída fosse Ivanka.

Johan nunca foi inocente. Mas Nathaniel e Liza eram.
Arrastados impiedosamente pelos planos mal arquitetados do Conselho. Quem sabe sua missão no Templo fosse outra.
E se fosse uma missão de redenção?
Johan assim decidiu.
Não entregaria a alma dourada à Ivanka. Diria a verdade a Nathaniel e quando a maldita descobrisse já não teria volta.O problema seria convencer o rapaz.

Ele parecia demais com o pai. Honrado, corajoso e disposto a sacrifícios. A praga da honra!
Mas Johan tinha um preço. Convenceria Nathaniel a jurar o Voto Fiel e finalmente encontraria o seu descanso, no Jardim dos Anjos.
Somente nessa morte seu peito voltaria a bater.

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Estamos chegando ao final do livro ='(
Será que vocês imaginam o que vem por aí? =O 

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