AGULHAS
AGULHAS
Liza
Os repórteres e suas perguntas nada sutis vinham atrás de mim e Raquel como um enxame de abelhas. Enquanto deixávamos o hospital, ouvíamos as ferroadas:
— Conte para o canal 55, qual é a sensação de descobrir que era noiva de um assassino?
Eles se amontoavam dos nossos dois lados e brigavam no intuito de conseguir respostas. Uma voz soava mais alta do que a outra:
— Vocês têm orquídeas negras em casa?
— Como nunca reparou que seu noivo sumia na madrugada?
— Isso quer dizer que é a nova CEO da Empreendor Inc?
Ignoramos todas as perguntas ao andarmos escoltadas por policiais até a
viatura. Eles nos levariam de volta para nossa casa em Winterhill, mas também não eram nada simpáticos, pelo contrário. Pareciam acreditar que nós tínha- mos alguma coisa a ver com aquilo. Os olhares acusatórios denunciavam seus pensamentos.
Fomos examinadas no hospital e somente após responder uma bateria de perguntas nos deixaram ir embora.
Ben ficaria em observação por algum tempo e Amanda lhe fazia companhia.
Raquel era o silêncio em pessoa ao meu lado na viatura. Não sabia dizer o que se passava em sua cabeça após aquilo tudo.
Difícil deduzir a reação de alguém após ser amarrada e vendada em uma fogueira pelo próprio noivo, para em seguida acordar e o descobrir morto.
E o que eu diria a ela?
Desculpe, irmã, mas fui eu quem o matou. Mas não se preocupe, ele não era seu noivo, só o corpo dele. Seu ex-futuro marido é na verdade uma alma negra querendo me matar.
E eu? O que isso faz de mim? Todas essas mortes se dão porque eu continuo a respirar? Ou nesse caso não, porque são causadas por Olaf?
Mas fui eu dessa vez. Eu. Matei. Ethan.
O nó em meu estômago apertava só de pensar em explicações. A gar- ganta ardia.
E Nathaniel? O que aconteceu a ele?
Meu peito se comprimiu ao pensar no par de olhos verdes desmaiado. A última coisa que recordo antes de acordar na ambulância.
Perdi o fôlego ao imaginar onde ele poderia estar agora.
Será que finalmente o pesadelo Olaf acabou, ou acabava de começar? Já que eu matei Ethan. Meu Deus. Eu. Matei. Ethan.
Roí as unhas. O desespero ameaçava impregnar cada poro meu.
Não era nisso que Noah tanto insistia?
No final minha verdadeira face apareceria e lá estava diante do espelho
retrovisor. O rosto de uma assassina. As palavras de Noah, ditas na Casa do Mago, me assombravam: "Seu lado mais escuro irá aflorar de hoje em diante. Vez atrás da outra..."
Cortei essa linha de pensamento ou desabaria no profundo abismo me seduzindo.
Agradeci quando chegamos em casa. Estava exausta, precisava organi- zar a cabeça e ainda tentaria conversar com Raquel, quem sabe confortá-la de alguma forma.
Sem me dar qualquer chance, ela anunciou assim que descemos do
carro:
— Liza, eu vou ficar bem. Agora só preciso ficar um pouco sozinha. — Tudo bem, Raquel. Se precisar, é só bater na minha porta.
Ouvi seus passos se apressarem escada acima ao entrarmos.
Desabei no sofá da sala e as perguntas vinham em uma turbulência. Onde estava Nathaniel?
E Adrian? Ele não tinha uma missão comigo?
Talvez eu tivesse deduzido errado ao pensar que era me proteger. Se ele desaparecia no momento que eu mais precisava, definitivamente eu não podia contar com sua ajuda.
Muito menos acreditar no que dizia.
Devo ter sido uma idiota esse tempo todo. Manipulada, talvez.
Afinal, de acordo com ele, eu teria a memória de volta depois desse ciclo lunar, mas o eclipse passou e minhas lembranças continuavam vazias. Lembrei-me de repente do objeto esquecido em minha mala. O livro que ganhei de aniversário e as páginas guardadas dentro dele.
Andei depressa até o quarto e, sem paciência, despejei a mala inteira em cima da cama. As páginas saltaram quando o livro caiu aberto. Um livro cofre, uma metade feita de páginas e a outra, um espaço oco e retangular.
Minha mãe definitivamente comprou esse presente com o propósito de me contar alguma coisa.
O nervosismo pesou em mim como uma nuvem carregada.
Segurei as folhas entre as mãos trêmulas e sentei no meio das roupas jogadas sobre a cama.
Contei até três e li as palavras de minha mãe. Não precisei de muito tempo para entender o porquê de Adrian ter escondido isso de mim.
Mesmo sem lembrar dela, suas palavras me cortaram como lâminas. O sofrimento era tangível em suas anotações. No início, ela falava de sua gravi- dez, dizia que foi possuída por uma sombra negra e se referia a mim como uma doença. Tinha medo que eu fosse um monstro.
Mas se ela engravidou assim, em um beco escuro, então Paul não era meu pai biológico? Quem era? Ou pior, o que era?
Tentei concluir esse raciocínio mas não pude.
O recado de Ethan, deixado no túmulo, me atingiu com força: nós somos três.
Arrepiei dos pés à cabeça. O estômago protestava, embrulhado.
A primeira página terminava com a frase que ficaria marcada em minha mente. Palavras que bateram com violência e me atingiram por todos os lados.
Minha mãe recebeu uma visita ainda no hospital, que lhe revelou o meu futuro:
Fui tomada por uma crise de falta de ar, mas ignorei o pânico e me forcei a continuar a leitura.
"13/06/1978 — 21:53
Saint Agnes Hospital — Baltimore — Maryland
Só hoje, dois dias depois, me explicaram que tive um parto complica- do. Parece que precisaram desse tempo para estabilizar o bebê.
Não me detalharam nada. Apenas mencionam surpresas inesperadas após a cesárea.
21:53 e ainda não vi a menina. Por que toda essa demora? Seria ela mesmo um monstro? Uma doença trazida por mim a esse mundo?
Talvez fosse melhor assim, se ela morresse nada disso poderia se concretizar.
Não! Não posso pensar isso de minha filha. O monstro sou eu. Paul, por favor, preciso tanto de sua ajuda.
Mesmo que não me ame mais, será que ficaria ao meu lado? Será que ouviu o recado na secretária?
Eu nem sabia se ainda era o mesmo número, mas precisava tentar. Deus! Por que isso aconteceu comigo?
"Ao completar vinte e um anos, ela será evocada."
Então Noah disse a verdade na Casa do Mago.
Ajude-me, Senhor, não posso suportar isso sozinha.
Minha veia pinica com essa agulha espetada em meu braço. Estou angustiada.
Precisava ver o bebê, contar tudo a Paul e sair dali, ir para longe do hospital e longe de minha mãe.
Percebi tarde demais que ela me via como uma incubadora, agiu ao meu favor somente para ter o bebê para si.
Queria ligar para Paul, garantir que ele ouvira meu recado, mas minha mãe não deixava meu lado.
Vigilante de meus movimentos, provavelmente tramando uma manei-ra de me fazer voltar para Londres, ou pior, de levar meu bebê.
Não! Eu ficaria onde Paul estivesse!
E ela era minha filha. Minha. Filha.
Aposto que se a olhassem de fora, a tomariam por uma mãe dedicada. Pobre senhora! — diriam. — Cuidando sozinha de uma filha degenerada!
Pobre de mim, pobre de minha filha, a recém nascida condenada, neta de uma louca e filha de uma desesperada."
Por que ninguém mencionou nada sobre uma avó em Londres?
Ela era a única parente viva que eu tinha além de Raquel e poderia me contar sobre o passado. Será que me receberia?
Ou teria raiva de mim?
Coitada da minha mãe, como alguém poderia ser tão ruim assim? E com a própria filha...
Peguei sem ar a página seguinte e aproximei as letras miúdas do rosto, seria melhor ler tudo de uma vez e acabar com o sofrimento:
"14/06/1978 — 11:25
Saint Agnes Hospital — Baltimore — Maryland
Ainda não vi minha menina. Não sei a razão disso demorar tanto.
Os médicos não me dizem nada e durmo a maior parte do tempo. Suspeito que estão me mantendo sedada e não tenho ninguém para me ajudar. Estou fraca, me sinto doente. Mal consigo manter os olhos abertos. Quanto mais fortes minhas orações, maiores se tornam as minhas tormentas.
Por favor, Deus, seja justo comigo!
Pisquei os olhos para a luz forte e branca do hospital e me assustei ao ver uma presença ofuscante de pé em meu leito.
Ela segurou minha mão e me olhou alguns instantes.
Minha mente frágil e cansada a reconheceu. Fora ela quem veio até mim no dia do nascimento e anunciou que minha menina seria evocada aos 21 anos.
Solucei e não encontrei palavras entre meu choro. Adormeci em seguida ainda sob o efeito da anestesia, naquele dia associei sua fala a uma alucinação.
Não sei se ela era mesmo uma mulher. Pensei que estava morrendo quando a vi. Ela parecia um anjo, uma espécie de espírito brilhante. Apesar do seu rosto sereno, suas palavras sussurradas em minha mente foram de terror.
Olhando seu rosto translúcido agora pouco, percebi que essa lembrança fora real e aquela palavra me atingiu como uma bala: evocada.
Sem piedade ela me contou que meu pesadelo se multiplicou em meu ventre e se dividiu em três. Ela e mais dois meninos.
Eu tive três filhos.
Como isso era possível?
"Você ainda pode cuidar da menina, Marie, os três bebês foram separados como eu temia, mas a menina é a chave, proteja-a.
Cada um guarda um destino e o dela é crucial, não deixe que a levem." Me sentei aflita e ela desapareceu no ar, não pude lhe fazer as milhões de perguntas me assolando.
Será que minha mãe, Sarah, sabia de tudo o tempo todo?
Por isso ela ia comigo em todas as consultas. Deve ter comprado o médico para não me revelar o que via nos exames de ultrassom.
As surpresas inesperadas de meu parto eram mais dois bebês.
Dois meninos.
Quem os levou? O que fariam com eles?
Será que todos nesse hospital estavam mancomunados?
Por que me disseram que era só uma menina?
A paranoia me atormenta.
Não sei se sairei viva daqui e não tenho forças para lutar sozinha. Estiquei minhas pernas para fora da cama e senti o chão frio em meus pés.
Eu tinha que sair dali, tinha que pegar minha menina e fugir antes que fosse tarde.
Um médico apareceu quando cheguei ao corredor cambaleando. A última coisa que vi foi sua seringa."
Lembrei-me da frase talhada no túmulo do anjo de prata no cemitério e levei as mãos à boca para abafar um grito.
Ethan tentou me dizer: nós somos três.
E os três não poderiam ser eu, Ethan e Raquel. Ela era dois anos mais nova.
Não. Eu não podia acreditar nisso.
Mas eles eram idênticos, não havia como negar.
E se tínhamos o mesmo sangue, o que isso fazia de mim?
Meu Deus!
Noah disse mesmo a verdade.
Meu destino não podia ser tão cruel.
Eu. Matei. Meu. Irmão.
Recordei da súplica em sua voz, segundos antes da vida deixar seu corpo na praia: Tudo bem, irmã, só assim estarei livre.
Havia ainda algumas folhas, mas de repente o papel pesava como uma tonelada. As lágrimas escorreram violentamente e quase sufoquei com o próprio pânico.
Coloquei as folhas por cima do livro e deitei sobre as roupas jogadas na cama cobrindo meu rosto com o travesseiro.
Gritar seria inútil para me aliviar da agonia.
Lutei para ignorar o buraco aberto aos meus pés, pois antes de agir em busca do meu próprio fim, eu precisava da certeza.
Com ou sem memória de volta, isso não faria diferença agora.
Só uma pessoa poderia me confirmar essa história e eu acabava de descobrir onde encontrá-la: Londres.
◆◆◆
Raquel
Ia falar com sua irmã mas estacou na porta. Nunca a viu daquele jeito. Descontrolada. Desconsolada.
Raquel observou Liza pela fresta. Ela segurava os pedaços de papel
como se fossem preciosos. Arregalou os olhos, franziu a testa, chorou e se jogou na cama, depois cobriu o rosto com o travesseiro.
Algo lhe disse que se pedisse para ler, sua irmã não deixaria.
Lógico, mesmo desmemoriada conseguia manter a postura protetora. Irritante. Depois de tudo que presenciou naquela praia, de todo esse
tempo com Ethan agindo como um estranho, suspeitava que muitas verdades foram ocultas desde que seus pais desapareceram.
Bolava um meio de pegar aquelas páginas. Seu instinto berrava, sabia que ao ler descobriria alguma coisa importante.
A oportunidade apareceu logo em seguida.
A campainha tocou e Raquel se esgueirou rapidamente de volta até seu quarto. Viu Liza passar pelo corredor e escutou seus passos ressoarem na escada. Raquel aproveitou a chance. Correu até a cama e agarrou as folhas.
◆◆◆
Liza
Nem precisei conferir pelo olho mágico para saber de quem se tratava. Sua presunção vinha até mim pelo ar, como uma onda magnética venenosa. Sequer tive tempo de me recompor. Sequei as lágrimas no rosto, respirei fundo algumas vezes e desci as escadas lentamente após ouvir a campainha. Depois de desaparecer sem explicações, Adrian merecia no mínimo esperar.
Que vingança patética, Liza! Ele se faz de amigo, engana você por me- ses e é assim que você dá o troco?
Fui obrigada a concordar com minha razão. Eu queria terminar de ler o diário e Adrian, como sempre, aparecia nos momentos mais inconvenientes.
Mas dessa vez ele não iria me impedir de terminar.
A verdade é que eu não lhe devia nada. Tinha todo o direito de nunca mais falar com ele, de fechar a porta na sua cara ou até chamuscar suas asas.
Mas ele não me deixaria em paz, eu sabia disso. Surpreendi-me até por ter tocado a campainha, em vez de aparecer de supetão ao meu lado.
Talvez ele não estivesse a fim de testar minha paciência.
Já abri a porta perguntando:
— O que veio fazer aqui? — procurei por repórteres atrás dele e aliviada constatei que a polícia cumpriu a promessa de ocultar o nosso endereço. — Vim ver como você está.
— Bem. E mais uma vez, não graças a você. Acha que vai me convencer com esse olhar triste ensaiado?
— Eu entendo sua raiva, Liza. Mas posso explicar.
— Cansei, Adrian. Suas explicações dizem tudo, menos o que eu pre- ciso saber.
Seu suspiro saiu em um assobio, ele baixou os olhos para os pés:
— Você leu o diário, não foi?
— Ainda não terminei, graças à sua interrupção. Mais alguma pergunta?
Tenho mais o que fazer.
Bati a porta antes dele responder. Ele não merecia que eu esperasse. Não sabia ao certo, nem porque me dei ao trabalho de abrir.
Subi o primeiro degrau, indo de volta ao meu quarto, e sua voz irrompeu
em meus pensamentos:
"Liza" — pediu choroso
"Vá embora, Adrian." — Continuei subindo a escada.
"Há muito mais que você precisa saber. Coisas que sua mãe não fazia ideia."
"Claro, como se você pretendesse me contar. Saia daqui Adrian. Agora!"
"Você não vai para Londres."
— Você não pode me impedir! — berrei furiosa.
Ele mal chegou e já agia novamente com seu jeito autoritário. A decisão de ir até Londres existia no meu íntimo, obviamente invadido por ele.
Cheguei à porta do meu quarto e o senti nas minhas costas. Como previ, ele abandonou a postura educada e apareceu atrás de mim sem convite.
Ia me virar para empurrá-lo, mas travei ao olhar para a cama.
O livro estava lá, mas onde foram parar as páginas do diário?
Só havia mais uma pessoa na casa e Adrian não teria como pegá-las enquanto falava comigo. Ele não podia estar em dois lugares ao mesmo tempo. Raquel.
Mas como ela saberia das páginas?
Céus, ela deve ter me visto lendo. No momento do pânico esqueci de fechar a porta e ela me viu!
Só poderia ser isso.
Bati na porta do seu quarto ao final do corredor.
Sem resposta.
Girei a maçaneta.
Ninguém ali.
Vazio.
— Raquel! — gritei enquanto abria as outras portas pelo corredor, ape-
sar da certeza de que não a encontraria.
Por onde ela teria fugido se eu falava com Adrian na porta da sala?
O quintal, a saída dos fundos!
Desci os degraus pulando-os de dois em dois e do início do corredor que dava para o fundo da casa, vi que era tarde.
Ela abriu a janela e olhou seriamente para mim, antes do taxista arrancar
com o carro.
***
Raquel
Ela ordenou ao taxista que corresse e pensou onde se esconderia. O trajeto de duas horas até o aeroporto lhe seria o suficiente para concluir a leitura. Agradeceu pelo tempo à sua frente e principalmente por estar sozinha. Porque a cada página concluída, precisava conter um berro de desespero e pausar alguns minutos, reunindo coragem para recomeçar:
"14/06/1978 — 00:03
Saint Agnes Hospital — Baltimore — Maryland
Mal sou capaz de manter o tronco ereto na cama. Essas injeções são venenosas, isso não pode ser um tratamento.
Tentei perguntar, mas minha mãe não fala direito comigo. Por mais que eu implore ela insiste, diz que apenas uma menina nasceu e mente para mim. Diz que a bebê está doente e pode morrer, diz que eu adoeci também, e por isso os médicos não me deixam vê-la e me mantêm sedada, mas é mentira. Eu sei, pois o espírito brilhante ou anjo me contou. E, se ela nasceu das sombras que invadiram meu corpo, não morreria assim, poderia muito bem estar destinada para a luz.
Esse pensamento me enche de esperanças.
Eles querem me convencer do contrário para que eu não procure minha menina.
Não entendo por que não me matam de uma vez.
Me amarraram na cama, alegando ser para meu próprio bem. O médico disse que tentei me matar, querem me fazer passar por uma louca e me desacreditar.
Me assustei com uma gritaria no corredor, não consegui distinguir o que as vozes diziam até ver aquele rosto me olhando da porta. A única coisa capaz de me deixar feliz em meio a esse caos.
Deus ouviu minhas preces! Paul finalmente apareceu, acompanhado de policiais e um mandato de justiça.
Não sei como ele conseguiu, mas recebi alta do hospital e pude sair com minha menina.
A batizei de Elizabeth.
Ele e minha mãe brigaram feio, o ouvi dizer que tentou me visitar, ligar para mim mas ninguém permitia sua entrada.
De alguma maneira Paul provou que eu era mantida sob sedação e a menina estava bem. Minha mãe foi inocentada, claro, ela daria um jeito como sempre o fez.
Buscamos pelos outros bebês mas haviam desaparecido, não existia nenhuma prova de sua existência, nenhum registro.
Nada."
Desejou perder a memória como sua irmã, mas talvez nem assim pudes- se esquecer aquelas palavras.
Ficariam entranhadas em sua pele, corroeriam seu sangue.
Sua mãe teve trigêmeos. Raquel possuía dois irmãos perdidos pelo mundo e sua avó, única parente viva, de acordo com sua mãe, era um monstro.
Se equilibrou segurando a maçaneta do carro quando o motorista fez uma curva fechada e se preparou mais uma vez, antes de ler a página seguinte:
"11/06/1979 — 10:03 Baltimore — Maryland
Hoje Liza fez um ano. Pensei em destruir esse diário mas talvez ele sirva como lembrete de não confiar nas pessoas, e tenho o desejo de continuar a escrever, dessa vez com boas lembranças.
Após contar tudo a Paul, no dia em que me resgatou do hospital, implorei por seu perdão. E ele o fez. E de alguma forma a luz voltou a minha vida, pois Paul me amava de verdade.
A dureza de suas palavras naquele dia me fizeram perceber o quanto minhas ações o fizeram sofrer. E as escrevo aqui para nunca mais esquecer, para nunca mais duvidar.
"Marie, sabe qual é a pior parte disso? A sua dúvida.
Saber que duvidou de que eu acreditaria em você e que duvidou de meus sentimentos.
Você faz a menor ideia do que é ser largado ao abandono?"
Eu não tenho ideia, mas graças a Deus não há motivo para pensar nisso. Nos casamos e somos felizes. E Liza é uma dádiva em nossas vidas. Não sei como pude pensar nela como um monstro.
Claro que eu ainda checo as trancas todas as noites antes de dormir e irei sempre pensar nos meus meninos, mas pelo menos estamos bem agora e somos uma família.
Nunca mais falei com minha mãe e nem pretendo. Mudamos de endereço e espero que não nos procure. Ela sim é o verdadeiro monstro."
"15:34
Celebrei precipitadamente.
Acabo de levar o maior susto da minha vida. Prefiro não registrar aqui, não sei o que podem fazer à Liza se lerem.
Paul, como eu, não sabe a quem pedir socorro.
Compramos um filhote de labrador para dar à Liza de presente, ela sempre ria tanto ao ver cachorrinhos na rua.
Céus, minhas mãos estão tremendo!
Essa tormenta nunca encontrará seu fim?
Estou trancada no banheiro, Paul está com Liza. Não quero que me vejam chorando. Pobrezinha, ela não tem culpa.
Mas Deus, isso foi horrível demais!
O labrador champanhe foi até Liza deitada no tapete e lambeu seu rosto. No início ela gargalhava, até que o segurou pelo focinho com força. O bichinho chorou tentando se soltar.
Me aproximei para pegá-lo e ao ver o que aconteceu, e tudo o que fiz depois foi gritar e dar as costas. Não ia conseguir olhar aquilo. Paul correu até a sala e levou as mãos a boca. O vi passar por mim com o filhote no colo e fechei os olhos.
Liza começou a espernear atrás de mim mas fiquei congelada. Paul notou meu estado e saiu com ela porta afora.
Enrolei o tapete manchado de sangue e o joguei fora, depois vim me trancar aqui.
O bichinho morreu, vi sangue escorrer por seus olhos e depois...
Não. Não posso continuar a escrever."
"03:15 — 12/06/1979
O pesadelo não terá fim pelo visto.
Foi ilusão acreditar em felicidade. A justiça nunca vence.
Estou consumida pelo medo.
Quase tive um ataque cardíaco agora. Como se o episódio do cachorrinho não fosse o bastante.
Mesmo depois um ano, ainda temo a noite.
Temo as sombras que se ocultam na escuridão com a ausência do sol. E temo principalmente as verdades, me pegando de surpresa e sem piedade.
Dessa vez não teve a ver com Liza.
Suspeitei no início, imaginei que tivessem vindo buscá-la antes do tempo, mas não.
Despertei ao ouvir a campainha, eram três da madrugada. O pânico machucou meus ossos no tempo em que percorri a distância do quarto até a porta da sala.
Fechei os olhos assustada, me esqueci naquele momento que assim não enxergaria pelo olho mágico.
Por fim me convenci: invasores não tocam a campainha.
E julguei que trancas e portas, não ofereciam barreiras ao grande mal causador de meu medo. Se assim desejasse, ele me pegaria até enquanto eu estivesse dormindo.
Abri os olhos e ao colar o nariz na porta, tive a visão arredondada de uma mulher virando de costas. Me apressei em abrir para chamá-la mas me detive ao ver um embrulho no chão.
Não.
Isso não podia ser o que eu imaginava.
Não podia.
Mas era.
Senti duas mãos se apoiarem inseguras em meus ombros, de esguelha vi Paul atrás de mim, ele tinha a respiração pesada, arfava.
O que é isso? — apontei para o embrulho no chão ainda de costas para ele.
Paul me virou gentilmente a fim de me encarar e mesmo no escuro, li o medo estampado em seu rosto.
Como ele pôde esconder isso de mim?"
Raquel era uma estátua de olhos arregalados. Sem movimentos e sem reação.
Os sentimentos subiram e desceram por sua garganta.
A primeira frase da página seguinte, fez o vômito parar na sua boca.
Antes de ler o restante, enfiou as folhas no bolso e pediu ao taxista:
— O senhor pode dar uma parada?
— Estamos no meio da estrada menina. Não posso. — Sua voz saiu como um resmungo.
O sangue deixou o rosto de Raquel. Sua cabeça rodava e precisava desesperadamente de ar fresco.
— Teria então algum saco para eu vomitar?
O carro entrou no acostamento e freou bruscamente. O motorista bufava no volante.
Raquel abriu a porta e girou as duas pernas para fora. Em seguida abaixou o rosto entre os joelhos para forçar o vômito. A brisa gelada do vento lhe arrepiou.
Isso não podia ser verdade. Sua mãe não teria lhe enganado a vida in- teira. Ela não faria isso.
Faria?
Para a tristeza de Raquel, a dúvida foi substituída pela certeza, assim que as palavras da página seguinte, pipocaram como um letreiro em sua mente. Um letreiro de crueldade.
O vômito finalmente liberou sua garganta, mas não lhe trouxe alívio.
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Chegamos na reta final da história! O que acharam da revelação do diário? =O
Beijosss e até terça
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