III.| As Feministas
- Quem é que disse que as mulheres são menos capazes do que os homens? Quem é que disse que uma mulher não pode ser juiz ou polícia? Quem é que disse que uma mulher, só por ser mulher, no mesmo trabalho que o homem, só ganha metade? Quem é que disse que o lugar da mulher é em casa, a cozer as meias rotas dos filhos e a engomar as calças do marido?
Numa cave escondida, sem janelas e com uma porta de ferro pesada, um grupo de estudantes femininas escutava as palavras sábias de Maria Isabel. A futura jornalista gesticulava furiosamente enquanto falava com uma eloquência típica de um orador.
- Quem é que disse que uma mulher pode carregar todas as compras da praça, menos o saco do talho?
- E mais! - Interrompeu uma rapariga de cabelos encaracolados. - Porque é que uma enfermeira, uma hospedeira ou uma telefonista não se pode casar? E porque é que uma professora precisa da aprovação do Estado para contrair matrimónio? E qual a necessidade de o Estado ter de considerar o noivo de uma docente idóneo? Já não basta os nossos pais e alguns dos nossos irmãos...
- Temos de prevenir a propagação de ideias perigosas, Luísa. - Afirmou outra aluna, num tom quase de troça.
- A única ideia perigosa que conheço é o "Deus, Pátria e Família"².
- Chiu, Rosário! Nunca digas isso, ou ainda vais parar ao calabouço.
- Mas lá que é verdade, é. - Retorquiu Rosário, encolhendo os ombros.
- Sabiam que até a televisão a cores é uma ideia perigosa?
Um grupo de estudantes boquiabertas recebeu aquele anúncio pronunciado pela língua de Isabel, como quem não quer a coisa. Televisão a cores? A cores? Mal havia televisão, quanto mais a cores! Limitavam-se as transmissões a dois canais, ambos da RTP, fortemente controlados pelos Serviços de Censura. Os aparelhos de radiofonia eram escassos, pelo que muitas das vezes as famílias, os vizinhos e as aldeias se reuniam para assistir a pouca televisão que havia, e a preto e branco.
- Como é que soubeste isso? - Questionou uma das alunas, cética.
- Eu estudo Jornalismo. Chegou-me aos ouvidos que vetaram a publicação da notícia que referia a introdução da televisão a cores na França. E depois o catedrático diz que sou revolucionária por dizer que objetividade é o que não existe nos jornais...
- Portugal é um verdadeiro atraso de vida. - Rematou uma jovem de saia aos quadradinhos. - Ainda me lembro de, em criança, o meu tio me trazer da França uma boneca que falava como presente de Natal. Onde é que se vêem bonecas dessas cá?
- Mas depois uma mulher só pode ir ao estrangeiro com autorização escrita do marido. E mesmo para um homem, não é fácil atravessar a fronteira por dá cá aquela palha. - Disse Rosário, com a voz exasperada.
- Eis o patriarcado que tanto a sociedade gosta. Votar vai pelo mesmo caminho...
- Votar... - Riu-se Maria José, levantando-se do banco em que permanecera em silêncio de cigarro na boca até então. - Mas alguém acredita naquelas eleições de um partido só? A União Nacional³ tira todos do caminho. É porque é comunista, é porque é isto, é porque é aquilo, é porque é aqueloutro... Não arranjaram logo caldinho para o meu pai passar o dia inteiro das eleições no posto da GNR por causa de uma multa? Uma multa! E tinham logo de se lembrar de implicar no dia das eleições... Se é coincidência, é preciso ter pontaria, credo!
- Do que é que vale só podermos votar se formos viúvas e tivermos o exame da quarta classe se já sabemos quem é que vai ganhar? - Suspirou Luísa.
- Ora aí está mais uma... Quantas mulheres é que têm o luxo de poder estudar? Basta olharem para o lado nas cadeiras da faculdade!
- E até somos muitas, Rosário, se compararmos com há uns anos atrás. Onde é que no tempo da minha mãezinha se imaginava uma mulher na universidade? Impensável!
- A sociedade acha que somos umas ignorantes e umas ingénuas...
- E indefesas! - Completou Maria Manuela. - Tão indefesas que nem parece bem uma moça andar sozinha na rua à noite.
- Mas nós somos resistentes, somos pioneiras. - Articulou Isabel. - Sonhamos com o dia em que todos os caminhos estarão abertos às raparigas e às mulheres. E é por isso que chegámos aqui, onde estamos hoje. Estudamos para que sejamos letradas, pessoas melhores e mais sábias, capazes de nos opormos às injustiças. Defendia um pedagogo suíço que as mulheres devem receber educação porque as mães são as primeiras mestras da criança que um dia se fará adulto. As mulheres são o motor do mundo. E assim eu, Maria Isabel Monteiro, líder da Sociedade Não Oficial do Dedal Enfadado e da Panela Furibunda, dou por terminados estes desabafos e esta convenção.
Notas:
² Lema salazarista
³ O único partido político permitido em Portugal durante o Estado Novo
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